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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

"Ouvir"...

Mais um dia de trabalho, um dia frio e um dia quente. Frio, porque o tempo assim o determina, quente porque as almas aquecem quem as ouve. Eu sentia o frio da sala, brutal para os meus hábitos, até que o senhor, um pedreiro, começou a ser observado. Depois de algumas perguntas, tive de lhe perguntar pela família, se havia doenças "pertinentes". Uma pergunta de retórica que se faz sempre, embora neste caso tivesse ficado indeciso se deveria ou não fazer. Pressenti que o senhor me iria contar algo doloroso. Mas era tarde, a pergunta já vogava tão fria como o ar que respirava. - Sim. Morreu uma filha minha. Tremi mais pelo incómodo que estava a provocar do que pelo frio ambiental. Antes que continuasse, atalhei se tinha mais filhos. Nem me deixou concluir a pergunta, adivinhando-a, disse que era filha única e que tinha morrido aos 24 anos. Lancei a esferográfica para cima da secretária, encolhi-me e esperei o relato. Tudo começou aos 18 meses, um tumor da bexiga, tratado, com sequelas, com tentativas falhadas de reconstrução, com um quadro de grave insuficiência cardíaca aos sete anos, transplante aos catorze, um pequeno e maravilhoso período de "saúde" durante alguns anos, poucos, e depois o regresso ao calvário, com graves peripécias, sofrimento, paragens cardíacas, sofrimento, coma induzido, regresso à consciência para comemorar um aniversário, regresso à antecâmara da morte e finalmente o momento do passamento, tudo documentado com pormenores, datas, horas, protagonistas, locais, uma descrição que me levou a todos aqueles espaços, a ouvir as conversas havidas com os colegas e a adivinhar a angústia da família, sobretudo dos pais. Via, ouvia e confabulava. Algumas das datas perturbaram-me, coincidiam com certos momentos que consegui recordar perfeitamente. Naquelas datas festejava com os meus, e mal sabia que, não muito longe, outros sofriam na razão inversa. Mal sabia, porque desconhecia. Eu sei que acontece sempre isso, quando uns estão felizes outros sofrem e choram. Eu sei que isso está sempre a acontecer, como neste preciso momento, mas não me recordo desses momentos, porque não os conheço. Só me lembro deles quando me confrontam a alegria vivida com a tristeza sofrida. Hoje foi um desses dias. Ouvi mais uma história que acabou por se cruzar com a minha. Hoje, ouvi mais uma história, de dor, muita dor, não sou capaz de a quantificar e muito menos de a imaginar. Estive sempre calado. Perdi a noção do tempo e do frio. Limitei-me a ouvir e a registar algo que, por mais vulgar ou frequente que seja, nunca irei conseguir perceber. Talvez percebendo o meu estado de espírito, silencioso e perdido no tempo, o pedreiro, na sua humildade, terminou a exposição, dizendo que a vida é mesmo assim, não há nada a fazer, mas que dói, dói, e muito. Foi então que reparei que já não se sentia frio no gabinete.

1 comentário:

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Professor Massano Cardoso
Com é importante relativizarmos o que não é realmente importante. Como é importante não esquecermos que a alegria e a felicidade convivem paredes meias com a dor e o sofrimento...