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terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Vida desprezada

Todos os dias mergulham nas minhas mãos temas e anzóis que me permitem escrevinhar histórias e ficar preso a muitas outras. Tropeço nelas como um bêbado nas pedras da calçada. Algumas fazem-me rir e outras fazem-me chorar, afinal não é mais do que o comportamento típico de um bêbado quando combina a natureza do seu estado de espírito com a qualidade do vinho que emborcou. São tantas as ofertas que chego a ponto de as deixar fugir, talvez para não ficar dependente, talvez por não querer sofrer, talvez por mero esquecimento, talvez por nada de tudo isto. 
Olhei. Homem simples, velho na aparência, sofrido no olhar, lento no pensar, educado no falar e humilde no vestir. Olhei e cumprimentei-o. Já nos conhecíamos. A última vez que o ouvi foi há um ano, na altura foi fácil diagnosticar vários problemas, entre os quais uma grave hipertensão. Já sei de antemão que muitos trabalhadores "guardam religiosamente" os seus problemas, infelizmente. Apercebi-me que tudo estaria na mesma. Um atrás de outro mantinha-se tudo inalterado. De todos os fatores o que mais me preocupava era a sua hipertensão, grave, muito grave. Tudo na mesma. Perguntei-lhe se não tomava medicamentos, se não fazia tratamento. Disse-me que sim, que fazia, mas perante aqueles valores, muito preocupantes, acabou por dizer que ultimamente não tinha tomado com a regularidade necessária. Adiantou-se na explicação ao dizer que não tinha dinheiro e que a farmácia não lhe fiava. Mas assim, disse-lhe, vai ter graves problemas em breve. O medicamento que toma é caro, perguntei-lhe. Respondeu-me que sim. Não tive tanta certeza de que o medicamento fosse assim tão caro, apesar de não me ter dito qual era. Mas antes que continuasse a conversa, adiantou-se, coçando a cabeça, onde pairavam tufos de cabelos brancos secos e desnutridos, dizendo: - Na sexta-feira recebo e vou à farmácia buscar o medicamento. Olhei para a sua face triste, olhei para os valores da pressão arterial, olhei para a idade, olhei para o futuro, olhei para todos os lados e fiquei sem ver onde andava a solução. Saiu cabisbaixo arrastando consigo uma humildade ultrajada pela pobreza de uma longa vida e pelo desprezo de uma sociedade que nunca se irá lembrar dele.
Fiquei com a sensação de ser um médico a quem roubaram o coração.

1 comentário:

jotaC disse...

Para uma alma sensível imagino a sua angústia, caro Professor Massano Cardoso!. Mas, infelizmente, é o pão nossso de cada dia...