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terça-feira, 4 de abril de 2023

“Ouvir em silêncio” …

O senhor entrou alquebrado. Em menos de um minuto explicou-me a razão. A sua mulher morreu há duas semanas. Parei de imediato o meu relógio e aguardei que falasse. Aprendi desde há muito que devo ficar em silêncio perante a dor. A dor grita. A dor quer libertar-se. A única saída é falar, contar, comentar e ter alguém para ouvir. 

- Foi tudo muito rápido. Começou com vómitos, falta de apetite e muito cansaço. Descreveu com pormenores as idas aos médicos, ao hospital, até que um exame revelou ter um cancro no fígado. – Se fosse só no fígado! Também já tinha nos pulmões e sabe-se lá mais aonde. Fui vê-la várias vezes ao hospital, mas não lhe dizia nada. Um dia telefonou-me. Perguntou-me se era a “doença ruim”. Desesperado disse-lhe que sim. No dia seguinte fui até ao hospital. Não sabia o que fazer ou dizer. Disse-me que estava mal. Muito mal. Nessa semana fez anos, cinquenta e quatro anos. Passados quatro dias faleceu. Nesse dia, começou a dizer-me muito baixinho, “Quero morrer. Quero morrer”. Morreu agarrada à minha mão. O seu sofrimento era mais do que visível. Sentia-se de uma forma particular. – Agora sou viúvo! A minha mulher faz-me muita falta, não para cuidar de mim, tomar conta da casa ou fazer a comida. Nada disso. Faz-me muito falta porque era a minha companhia. Não tivemos filhos. Estou só. Agora não sei o que vai ser da minha vida. Pouco ou quase nada lhe disse. Absorvi com muito respeito a sua dor, a ponto de ter necessidade de contar esta história, porque a dor que me provocou precisa de ser também libertada. Já ouvi histórias deste género ao longo da vida. Muitas! No final, agradeceu vivamente por o ter escutado e pediu-me desculpa por me ter incomodado. Reagem sempre da mesma maneira, agradecem e pedem desculpa. 
Ouvir em silêncio ajuda imenso. Silêncio sem tempo é uma porta aberta para eliminar a dor…

1 comentário:

Bartolomeu disse...

Um episodio contado, que nos coloca perante questões pertinentes:
Enquanto para alguns a vida não faz qualquer sentido, para outros, a vida faz todo o sentido. Se deixarmos que o nosso pensamento regrida ao "ponto de partida", o da ejaculação e da corrida de girinos, desenfreada até ao útero, o sentido pode até considerar-se um pouco cómico, talvez até, um tanto aleatório. Mas quando refletimos sobre todas as etapas que se seguem e o efeito das guinadas que cada vida sofre, tanto para o que se julga bem, como para o mal, não conseguimos ultrapassar, o sentido da inevitabilidade. Embora continuemos incessantemente a militar no partido do autoconhecimento e do auto entendimento.














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