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quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Conversas neuróticas

Hoje fui a um café e sentei-me numa mesinha a ler o jornal enquanto esperava o pastel de nata com a bica. Perto do meu lugar estavam duas velhotas a conversar e não pude deixar de ouvir o que diziam. Falavam sem parar de um ror de desgraças, as doenças, a falta de dinheiro, a casinha a precisar de obras, o custo dos transportes, o divórcio dos filhos, sei lá que mais, só infelicidade. O curioso é que falavam disso animadamente, como se estivessem a contar feijões, um suspiro de vez em quando, mais para dar ênfase ao que diziam e suscitar a atenção da outra do que uma coisa sentida. Parecia um concurso a ver quem é que tem mais coisas más para contar, género “ai você tem preocupações, pois olhe que eu ainda estou pior…”
Fiquei a pensar que aquele tom está claramente fora de moda, gente mais nova ou com mais desafogo económico, pelo menos aparente, não teria já o impulso daqueles relatos. Levariam certamente para casa as suas angústias não partilhadas, mas aos outros o que se conta é sucesso, bem estar, compras e casamentos felizes ou divórcios que deixaram todos melhor. Passou a ser uma vergonha não entrar nos rankings da Felicidade Total, esse esforço permanente de superar, de ir mais longe, ter mais saúde, mais dinheiro, mais sucesso, tudo muito organizado e limpo, um inconformismo que dá lugar a outro tipo de infelicidade que é o de nunca se chegar a aproveitar bem o que se tem.
A felicidade passou a ser uma espécie de alvo móvel, uma coisa só relativa, quando se quer clicar em cima do sim ele salta e o único que se deixa apanhar é o não, seguido do temível “…e o que é que já fez para ser mais feliz?”. Com sorte, vem uma infinidade de receitas milagrosas agarradas, reparamos que já experimentámos algumas, il faut tout recommencer
Porque é que estou a dizer isto tudo? Não sei, acho que é só uma grande neura, foi de ter estado a ouvir falar de desgraças...

8 comentários:

CCz disse...

Há anos, num documentário, alguém disse "Hollywood mudou o conceito de felicidade".
Antes de Hollywood, a felicidade e o amor, eram construções. Eram o resultado de trabalho árduo e continuado.
Depois de Hollywood, são coisas que se acham, que se encontram, que se descobrem.

No sábado passado ouvi uma expressão interessante. Os sentimentos negativos consomem e dominam as pessoas, e muitas vezes elas optam por manter, por alimentar a "refeição".

Ainda hoje, no livro de António Damásio "O sentimento de Si" li que: os humanos, tal como os outros animais têm emoções. Depois sentem os sentimentos, e só se libertam do seu poder quando, com o advento do sentido do si, os sentimentos tornam-se conhecidos do individuo que os experimenta. Só quando nos apercebemos dos nossos sentimentos, só quando nos afastamos do nosso corpo, emergimos e olhamos para o nosso interior... é que podemos cortar os jogos psicológicos em que nos refugiamos para culpar o mundo.

Suzana Toscano disse...

Excelente comentário, caro Ccz,e muito bem lembrado António Damásio a este propósito. Parabéns e obrigada.

Bartolomeu disse...

"il faut tout recommencer…"
Será esta a chave do segredo da felicidade?
Afinal, "recommencer est finalement ce que nous faisons chaque jour, inconsciemment quand nous réveillions"
Xiiii ha bem uns 37 anos que escrevi em francês pela última vez, estarei a recomeçar?
;))))
Afinal a conversa das velhotas e a demora do pastelinho de nata, tiveram proveito.
Obrigado Drª. Suzana, por esse olhar, tão humanamente neuroso.
;))

Luís Guerreiro disse...

A chamada Lei de Murphy diz o seguinte: Se há duas ou mais formas de fazer alguma coisa e uma das formas resultar em catástrofe, então alguém a fará.

E isto talvez demonstre a aptidão natural do ser humano em ser insatisfeito e queixar-se. Ou a sua tendência para reparar no que não está bem. O que, vistas bem as coisas, acaba por ser algo positivo: fez-nos evouluir. Não satisfeitos com o desconforto das carroças, decidimos construir carros. Não satisfeitos com a sua lentidão e limitações geográficas, toca de fazer aviões. E por aí fora, desde os primórdios da espécie até os dias de hoje.

Eu vejo as coisas por uma óptica diferente da de Murphy: na civilização quase tudo corre perpétua e simultâneamente bem, só que ninguém dá por isso.

invisivel disse...

Cara Dra. Suzana Toscano:

Ao ler este post interrogo-me de como uma conversa tão trivial e típica dos nossos velhotes dos dias de hoje, deu origem a este excelente texto que originou igualmente excelentes comentários de que destaco os do CCz e Luís Guerreiro!.

De facto, a partilha de sentimentos, a partilha de segredos, a partilha das nossas desgraças, e a partilha das nossas emoções com os outros, estão “fora de moda”. Não porque sintamos a necessidade de não o fazer, mas porque ao fazê-lo, receamos parecer “frágeis” aos olhos de outros. Daí, como muito bem diz, levamos para casa ou calamos bem fundo as nossas angústias, e partilhamos apenas as nossas pequenas histórias de sucesso.

No entanto, atrevo-me a dizer que este texto revela-nos uma contradição interessante: - Se por um lado me leva a concluir que a partilha com os outros de alguns dos nossos estados de alma, está em desuso, por outro lado leva-me também a concluir que essa necessidade continua ainda latente em nós; daí a Dra. Suzana partilhar este estado de “neura”.

Subsistindo, portanto, esta contradição, talvez o melhor seja partilharmos os sucessos e as desgraças de igual modo, nem que seja com pastéis de belém à mistura!
:)

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Suzana
Já reparou que nós portugueses respondemos invariavelmente às perguntas que nos fazem do tipo "Então está tudo bem?" ou "Então como é que vai isso?",
da seguinte forma: "Vai-se andando" ou "Cá estamos, mais ou menos".
Temos uma especial tendência para a resposta traduzir um estado espírito algo neurótico, de que a vida é difícil e é tudo muito complicado, mesmo que as coisas estejam a correr razoavelmente bem, sem problemas.
Em contraste, o que também não é totalmente verdade, aparentamos uma vida bem sucedida, na qual não falta o apartamento modelo, o carro do último grito cheio de acessórios, as férias de sonho em Cuba com tudo incluido ou o casamento de uma sobrinha que custou 20.000 €, tudo evidentemente sem qualquer endividamento.
Mas depois, como a coisa não bate certo, vem as desgraças vividas dentro de casa e contadas aos Avós que preocupados contam as pequenas amarguras familiares aos vizinhos.
A felicidade vive-se como uma moda ainda que para sermos "felizes" tenhamos que passar por muitas infelicidades. E assim vamos cantando, rindo e chorando... Vamos, salvo seja. Falei no plural, mas esta não é propriamente a minha concepção de felicidade!

PA disse...

Cara Suzana, fiquei a meditar no que escreveu. Deixe-me que lhe diga, que há neuras que inspiram. A sua foi uma delas.
Magnífico texto, pela partilha do seu estado de alma naquele momento, mas sobretudo pelo modo como o fez...

Não há receitas milagrosas, para a Felicidade. É verdade Suzana.

Toda a minha vida procurei a Felicidade.
Até a um certo momento da minha vida, pensei que nunca tinha sido feliz. Pior ainda, pensei que nunca o seria.

A certa altura leio esta frase de GANDHI:

“Não existe um caminho para a felicidade. A felicidade é o caminho.”

Eu estava enganada. Sempre tinha sido feliz.

Vou caminhando, Amiga, às vezes, sou rápida, outras, caminho de forma mais lenta.
Mas não paro.

Um abraço.

Suzana Toscano disse...

Cara Pezinhos, creio que isso aconteceu a muita gente, às vezes é preciso um bom abanão para se passar a dar valor ao muito que se tem e acabar essa pena de si próprio às vezes sem razão nenhuma. No fundo é um processo de crescimento, de autoconfiança, quando começamos a ligar menos à opinião dos outros e afirmamos a nossa personalidade, parece que tudo começa a ganhar cor. Não é?ISso pode acontecer em qualquer idade, o ideal é que seja mais cedo mas o que é preciso é que acabe por se encontrar a tal frase... e oq ue o caminho se abra à nossa frente,m esmo a pedir para ser caminhado! :)