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sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O casaco de Inverno

Antes de sair de casa espreitou pela janela para ver o tempo que fazia lá fora, como se tinha habituado a fazer desde que vivia sozinha. O marido tinha aquele mesmo ritual, era sempre o primeiro a levantar-se, muito cedo, ainda a noite resistia a retirar-se, olhava o céu escuro e ditava a sentença, como se fosse ele a definir a força dos astros, hoje vai estar sol, logo vai chover, tem cuidado com o frio. Nunca tinha realizado como aquele pequeno gesto marcava tanto espaço, lembrava-se dele todos os dias a dizer isso, virando um pouco a cara de lado para ela ouvir, enroscada no morno da cama, mas com os olhos ainda perscrutando o céu, como se ponderasse até ao último momento uma decisão importante.
Depois da morte do marido saiu vários dias com a roupa errada, ora muito quente, ora demasiado leve, faltava-lhe aquele cuidado tímido, percebia agora que era uma forma discreta dele se preocupar com ela, de velar por que se agasalhasse, talvez mesmo de a proteger ao longo do dia, enquanto cada um trabalhava sem tempo para se encontrarem antes de anoitecer de novo.
Vai estar frio, pensou, aquele cinza metálico não engana, repetia as palavras dele, tal e qual, surgiam-lhe na memória com aquela nitidez e, no entanto, julgava que sempre as tinha ouvido ao longe, sem prestar atenção, tomava-as na altura mais como um monólogo do que como um conselho atento que lhe era dirigido. Mas as palavras dele voltavam e ela sorria com gratidão, como se lhe respondesse no diálogo secreto que só agora desvendava com clareza.
Abriu o armário para tirar o casaco de fazenda forrado a pele sintética, o mesmo que há mais de dez anos vestia no pino do Inverno. Olhou-o com desânimo, os ombros já esbatidos, aqui e ali um fio puxado, os botões mal presos nas linhas gastas. Sentiu frio na decrepitude do tecido. Quando o comprou foi por insistência do marido, na altura era um luxo e ele insistiu, dura-te vários anos e acaba por sair em conta se o estimares bem, vais ver que te faz jeito. E lembra-se também de como as colegas lhe disseram como ficava elegante, durante uns tempos esperava ansiosa que as manhãs se anunciassem frias só para se sentir tão bem no seu casaco novo. Mas depois os filhos precisaram de ajuda para fazerem as suas vidas, a seguir veio a doença do marido, o dinheiro a rarear, a casa a pedir remendos, e passou a poupar o casaco com a ideia de o fazer durar até poder comprar outro, logo que a saúde dele lhes desse folga para outras despesas. Havia de comprar outro, pensou desgostosa, a antecipar o olhar de desdém com que as colegas iam reparar na sua pobreza.
Punha-o agora nos ombros e ajustou a gola, para lhe devolver a forma antiga. Talvez com o cachecol de lã ficasse melhor, é isso, era assim que ele gostava, parece que são as mãos dele de novo a abrir o tecido, a alisá-lo e a compor o conjunto, curioso, também isso ela tinha esquecido, como ele era atencioso sem se fazer notar, ficava à espera que ela estivesse pronta, deitava-lhe um olhar aprovador e depois um beijo leve a roçar os lábios, até logo, chego às 8, pegava na pasta e saía, com o sobretudo pesado que sempre lhe conhecera.
Olhou-se ao espelho, o casaco agora abotoado a aconchegá-la muito junto, sentia-o de novo suave e quente, tão familiar como a presença atenta e carinhosa do marido, como se só agora se reconciliasse com a morte dele e com a solidão zangada em que se instalara com azedume.
Saiu para a rua a passo firme e, nessa manhã fria, esperou sem pressa pelo autocarro, sentindo-se abrigada de todas as intempéries ao abraçar-se no casaco velho com a ternura de quem retém um ente querido.

10 comentários:

Catarina disse...

Normalmente, como bem se deve recordar – porque eu não vos deixo esquecer :) – não me fico por meia dúzia de palavras!

Mas agora fico-me.
Escrevo apenas: emocionante, comovente!

Suzana Toscano disse...

Uma boa noite para si, Catarina, fico contente que tenha gostado.

Bartolomeu disse...

Drª Suzana;
dois adjectivos: fantástico; maravilhoso!

Transporta-me para ti um vento forte
Sussurra-me a brisa morna, o teu nome
De ti, nuca nos separou a morte
Dos teus lábios, sinto ainda a mesma fome

Anónimo disse...

Subscrevo, Suzana, a apreciação da Catarina e Bartolomeu. Foi um imenso prazer ler este seu texto, na senda de outros, seus. É daqueles que nos sabe bem ler, até porque o sabor perdura. Obrigado por o partilhar.

demascarenhas disse...

Suzana, como sempre, um texto magnífico. Tocante. Um grande momento. Obrigado.

jotaC disse...

Cara Dra. Suzana Toscano:
São elogios bem merecidos os que aqui lhe são feitos e, diga-se em abono da verdade, não são demais.
Gosto da maneira peculiar de escrever, e quando conta episódios de vida como este sinto-me arrastado a seguir o fluir da escrita, volto atrás mais de uma vez para apreciar a articulação das palavras que dão corpo ao texto…

Pinho Cardão disse...

Cara Suzana:
Parabéns!...

Suzana Toscano disse...

Muito obrigada a todos, é um enorme prazer ter estes leitores!

Massano Cardoso disse...

Sabe bem e alimenta de forma ímpar a alma de quem sabe o que é a vida...

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Suzana
É bom ler as histórias de vida que tão bem conta. "Ler" emoções e sentimentos transporta-nos para o que é realmente mais importante na vida...