De quando em vez, ao acordar, penso na morte. Começa a ser frequente, mas não estremeço e nem sinto medo, apenas uma estranha sensação de paz. Curioso associar a morte à paz ou a paz na morte ao nascer de um novo e belo dia.
Sou depositário de muitas lembranças que arrecadei ao longo da vida. Muitas estão relacionadas com a morte, esse estranho fenómeno com quem comecei a conviver, e até a tocar, desde muito novo. Muito novo mesmo.
Por causa de ter despertado a pensar na morte, recordei uma conversa tida há alguns anos. Já era muito tarde, foi num daqueles dias tristes em que o sol adormece demasiado cedo.
O meu velho amigo, após se sentar com alguma dificuldade, perguntou-me se conhecia fulano.
- Quem? Não estou a ver.
- Não o conhece?! Ele trabalhou comigo muitos anos na fábrica, e, com um gesto largo, apontou na noite escura como o breu para o lado de lá do rio, como a querer comprovar a sua identidade. Ficou em silêncio durante breves segundos. Depois reiniciou a sua narrativa.
- Vivia na quinta mais a mulher, que estava muito adoentada, coitadita. Eram ambos velhotes.
- Está bem! Mas o que é que aconteceu? Perguntei, antevendo o pior, porque o estilo de linguajar, aliado à idade avançada, só podia ser o prelúdio de um passamento.
- Na véspera do Ano Novo tiveram de chamar o 112. A mulher não se sentia bem e levaram-na para o hospital. Ela andava em cadeira de rodas. Estava muito doente, coitadita. Depois, quando regressaram tiveram de lhe dizer que tinha morrido. Veja lá como são as coisas. O marido, quando ouviu, sentiu-se mal e não é que também acabou por morrer. Como são as coisas, senhor doutor, como são as coisas. Afligiu-se e morreu. Eles davam-se muito bem. Viviam sozinhos, isolados na quinta, mas eram boa gente. Gente de trabalho, de muito trabalho, e honesta, muito honesta. Acabaram por ser enterrados no dia do Ano Novo e na mesma cova. Viveram juntos, morreram no mesmo dia e foram sepultados na mesma cova.
- Sabe, ainda bem, apesar da tristeza da notícia da morte de alguém, fico aliviado. Não sofreram com a separação, e a dor também acabou por ser enterrada com eles, homem, mulher e a dor da separação sepultados ao mesmo tempo. Uma bela forma de começar o novo ano. Viveram juntos, morrem praticamente juntos e vão dormir juntos para a eternidade. Onde foram enterrados? Disse-me o local.
- Mas não deverão ter tido grande acompanhamento. Praticamente ninguém os conhecia.
- Não faz mal. Eu tenho alguma ideia deles quando era pequeno, mas vou registar este episódio, pode ter a certeza, nunca mais o esquecerei pela emoção que me despertou e por saber até onde pode ir o coração das pessoas que se amam.
Almas desconhecidas que se libertaram da vida sem serem alvo de grandes atenções.
Dedico-lhes esta descrição e lembrança. Sempre pode ser considerada com uma forma de oração ao nascer de um belo dia de sol com a morte a bocejar e sem querer fazer mal.
Sou depositário de muitas lembranças que arrecadei ao longo da vida. Muitas estão relacionadas com a morte, esse estranho fenómeno com quem comecei a conviver, e até a tocar, desde muito novo. Muito novo mesmo.
Por causa de ter despertado a pensar na morte, recordei uma conversa tida há alguns anos. Já era muito tarde, foi num daqueles dias tristes em que o sol adormece demasiado cedo.
O meu velho amigo, após se sentar com alguma dificuldade, perguntou-me se conhecia fulano.
- Quem? Não estou a ver.
- Não o conhece?! Ele trabalhou comigo muitos anos na fábrica, e, com um gesto largo, apontou na noite escura como o breu para o lado de lá do rio, como a querer comprovar a sua identidade. Ficou em silêncio durante breves segundos. Depois reiniciou a sua narrativa.
- Vivia na quinta mais a mulher, que estava muito adoentada, coitadita. Eram ambos velhotes.
- Está bem! Mas o que é que aconteceu? Perguntei, antevendo o pior, porque o estilo de linguajar, aliado à idade avançada, só podia ser o prelúdio de um passamento.
- Na véspera do Ano Novo tiveram de chamar o 112. A mulher não se sentia bem e levaram-na para o hospital. Ela andava em cadeira de rodas. Estava muito doente, coitadita. Depois, quando regressaram tiveram de lhe dizer que tinha morrido. Veja lá como são as coisas. O marido, quando ouviu, sentiu-se mal e não é que também acabou por morrer. Como são as coisas, senhor doutor, como são as coisas. Afligiu-se e morreu. Eles davam-se muito bem. Viviam sozinhos, isolados na quinta, mas eram boa gente. Gente de trabalho, de muito trabalho, e honesta, muito honesta. Acabaram por ser enterrados no dia do Ano Novo e na mesma cova. Viveram juntos, morreram no mesmo dia e foram sepultados na mesma cova.
- Sabe, ainda bem, apesar da tristeza da notícia da morte de alguém, fico aliviado. Não sofreram com a separação, e a dor também acabou por ser enterrada com eles, homem, mulher e a dor da separação sepultados ao mesmo tempo. Uma bela forma de começar o novo ano. Viveram juntos, morrem praticamente juntos e vão dormir juntos para a eternidade. Onde foram enterrados? Disse-me o local.
- Mas não deverão ter tido grande acompanhamento. Praticamente ninguém os conhecia.
- Não faz mal. Eu tenho alguma ideia deles quando era pequeno, mas vou registar este episódio, pode ter a certeza, nunca mais o esquecerei pela emoção que me despertou e por saber até onde pode ir o coração das pessoas que se amam.
Almas desconhecidas que se libertaram da vida sem serem alvo de grandes atenções.
Dedico-lhes esta descrição e lembrança. Sempre pode ser considerada com uma forma de oração ao nascer de um belo dia de sol com a morte a bocejar e sem querer fazer mal.
Sem comentários:
Enviar um comentário