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domingo, 2 de setembro de 2007

“Tocam os sinos na torre da Igreja…”

Recordo-me dos primeiros tempos da televisão. À noite, as pessoas, assim que acabavam de jantar, peregrinavam ao café transformado em verdadeiro santuário com a única televisão do sítio no novo altar. Eu também ia na companhia dos meus pais, mas como tinha de levantar cedo, por causa da escola, não via praticamente nada, a não ser certos programas, caso do teatro semanal, o programa do João Villaret ou as Charlas Linguísticas, por exemplo, de que gostava imenso. Nestes casos, permanecia quase até ao fecho da emissão. No dia seguinte é que era o pior, é o acordavas!
Num dos programas do Villaret ouvi-o declamar o poema “A Procissão” no qual falava "Tocam os sinos na torre da Igreja…” . Fiquei de boca aberta pela beleza e entoação com que declamava, ainda por cima de sinos que eu adorava.
Desde muito novo aprendi com a minha avó a contar ao som das badaladas, a aprender as horas no relógio da torre, a conhecer os toques dos finados, dos casamentos e baptizados, das “Ave Marias”, das "Almas” ou das “Trindades”. Estas últimas obrigavam-me a correr para casa a tempo de fazer os deveres da escola. Sabia distinguir os sons de outros sinos, o da Misericórdia, o de Óvoa e até o do Coito que se ouviam muito bem em certos dias, prenunciando mudança de tempo. Até comecei a fazer meteorologia, porque a minha avó dizia, ao ouvir o sino de Óvoa, “amanhã vai chover”. E chovia! Mais tarde encontrei a explicação nas aulas, segundo o professor, quando a humidade no ar aumentava, os sons propagavam-se mais facilmente.
Toda a vida se fazia ao redor do sino. A camioneta partia ao som da última badalada das seis (no toque de repetição), os homens começavam, interrompiam ou largavam o trabalho às suas ordens. Quando tocava a finados era um corrupio até se saber quem é que tinha morrido. Em pouco tempo todos ficavam a saber a desdita. Também se sabia se o padrinho tinha dado ou não uma valente gorjeta ao sacristão. Havia alturas em que o toque nunca mais parava, chegando mesmo a irritar, denunciando a festividade e, sobretudo, o tamanho da generosidade. Se as solenidades se desenrolassem da parte da tarde, já não haveria problemas! Como é que o sacristão subiria à torre? Só se fosse de gatas!
O sino e o relógio também serviam de teste audiométrico e de tabela optométrica. Muitos comentavam que, quando eram mais novos, conseguiam ouvir o sino ou ver as horas a certa distância, a qual se ia encurtando à medida que envelheciam.
O toque a rebate era o que me incomodava mais. Poucas vezes o ouvi, porque os bombeiros utilizavam a sirene. No entanto, recordo de dois momentos em que, devido à falta de energia eléctrica, tiveram de socorrer do sino.
Alternava a estadia entre a casa dos meus avós na vila e em casa dos meus pais, na estação, a 2,5 km de distância. Uma noite de Fevereiro, muito fria, ouvi o toque de aflição da igreja. Levantei-me e vi pela primeira vez um nevão, raro naquelas bandas. A lua cheia fez a sua entrada iluminando os vagões, as linhas e todo o casario da vila, que se destacava ao longe, no monte, coberto de neve, onde se poderia identificar uma mancha rubra. A brancura da neve, a mancha vermelha das habitações a arder, a falta de energia eléctrica e o som do sino produziam uma combinação arrepiante. De manhã, a tragédia não deixou gozar a beleza do nevão. A segunda vez estava em casa dos avós e, mais uma vez, faltou a electricidade. O sino toca a rebate, a curta distância, a meio da madrugada. As pessoas correm aflitas, até que ouvi alguém a dizer, no meio dos Aldrogãos, que era a fábrica de serração na estação que estava a arder. A casa dos meus pais estava praticamente pegada à fábrica. Arrepiei-me mais uma vez e encolhi-me aterrorizado por saber que a casa devia também estar a arder. O meu avô meteu pés a caminho e, passado algumas horas, já a manhã tinha despontado, regressou, dizendo que a casa tinha sido poupada. A fábrica desapareceu para sempre, acompanhada de muita miséria para os que lá trabalhavam.
Aprendi com os anos a viver ao som do sino. Mesmo hoje, gosto de ser guiado por ele. O pior é que as novas manias tecnológicas, e o apertar dos botões de comando na sacristia, não têm tido grande sucesso. O sino deixa muitas vezes de tocar, ou quando toca fica desorientado, marcando as horas com “meias-horas”, os mostradores do relógio apontam cada um para o seu tempo, e às vezes um está parado, enquanto o outro funciona! Já aconteceu, inclusive, que o toque de casamento se pareceu mais a um toque envergonhado de finados! Quando tocava a finados, o som era forte, triste, mas, curiosamente, transmitia uma estranha tranquilidade. A este propósito recordo-me de um doente a quem diagnostiquei um cancro do cólon. Infelizmente as coisas não correram muito bem. Algumas semanas após a operação chamou-me a sua casa. Era Sábado, fim de tarde com um sol ainda radioso mas frio. Entrei na modesta habitação, dirigindo-me ao quarto e, enquanto o sino tocava – estava a sair um funeral -, perguntei-lhe como estava. Respondeu: - Oh senhor doutor, não tarda muito para o sino tocar, também, por mim. Fiz e disse o que considerei mais apropriado à situação. Passados uns dias, o sino estava a dobrar por ele...
É curioso conhecer tão bem o toque de um sino que um dia irá tocar sem que o possa ouvir. Preferia que o tocassem à maneira, porque, pelos vistos, o tal sistema electrónico não é de confiança, mas também não é de excluir que o padre, amante de choques tecnológicos, possa vir a adquirir um CD com toques meio foleiros e um altifalante qualquer! Deus queira que não...

7 comentários:

Bartolomeu disse...

O Professor Agostinho da Silva, presenteou-nos com uma frase que encerra um pensamento, tão pretinente quanto a reflexão a que nos conduz este seu maravilhoso texto, caro Professor Salvador.
Dizia ele, utilizando a imagem do homem da montanha que chega À cidade e se detem perante a montra de uma grande loja de electrodomésticos... "que quantidade de coisas desnecessárias de que o homem aprendeu a depender"
Criamos o habito de depender daquilo que é absolutamente dispensável, na medida em que pensamos perigrar a nossa existÊncia se as não possuírmos. Aquilo que efectivamente ganhámos com essa "dependência" do dispensável, foi unicamente a capacidade de alheamento do social e a desvalorização do comunitário.
Tenho esperança de que ainda se recupere essa "programação" que nos equipa desde a concepção.

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Professor Massano Cardoso
À medida que ia lendo o seu conto, os sinos da minha aldeia iam cantando. O problema é que vão faltando os sacristãos que se ocupam de tocar os sinos. Uma verdadeira arte que para se não perder precisava de ser transmitida. Mas vai sendo cada vez mais difícil manter esta tão antiga e maravilhosa tradição.

Tavares Moreira disse...

Mais um belíssimo texto, caro Professor.
A descrição que faz é perfeita, e de tal modo que, como diz a Margarida, nos conduz a percorrer instantâneamente o longo tempo que já nos separa do toque dos sinos que marcava o ritmo da vida das nossas vilas e aldeias!

Anónimo disse...

Excelente texto Professor.
A evocar momentos que o tempo vai afastando mas a memória faz regressar.
Aqui fica o local na rede onde se pode recordar o génio de Villaret: http://www.rtp.pt/web/historiartp/1950/villaret.htm

Suzana Toscano disse...

É um verdadeiro prazer "ouvir" este belo texto! Tenho a sorte de morar num bairro em que se ouvem os sinos da igreja, mas o meu ouvido citadino não me permite distinguir a não ser as badaladas que chamam para a missa...é pena o prof. Massano não nos poder dar aqui as diferentes melodias...vou ter que apurar o ouvido por minha conta e risco!

Al Cardoso disse...

Que nostalgia me veio a mente com esta entrada sobre o toque dos sinos, bem haja, fez-me mentalmente voltar a minha terra natal.

Um abraco do d'Algodres.

Rui Ferraz disse...

Professor:
As suas lições não se confinam às salas de aula da Faculdade.Obrigado por nos proporcionar momentos como aquele.
Um abraço, do admirador e amigo