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sábado, 20 de agosto de 2011

Sons

Noite de verão, agradável, não muito quente, porque a meio de agosto começa a sentir-se, ao princípio da noite, uma brisa que arrefece e que a ribeira sabe aproveitar para, de forma silenciosa, se manifestar, em contraste com o cantar e às vezes a gritaria nervosa do inverno. As doze há muito que foram tocadas na torre, e os cantares da festa, que inundaram o espaço e as almas dos foliões, silenciaram-se, dando lugar aos assobios, ao queimar da pólvora e ao crepitar das explosões dos efeitos do fogo-de-artifício. Calou-se o fogo, mas ainda faltava um derradeiro som, o do morteiro. Um assobio mais longo e agudo fez-se ouvir, seguido do característico pequeno trovão. Acabou-se a festa, e eu entrei no silêncio.
O som do morteiro fez estragos, comecei a recordar outros sons, os dos comboios a entrarem na estação, obrigando os carris a ranger de dor e de raiva, as locomotivas a vapor, as grandes, poderosas, espumando como se fossem touros desejosos de largarem à desfilada, fazendo inveja às mais pequenas, as da via estreita, cujos apitos agudos faziam lembrar vozes de pré adolescentes. Os toques da sirene da fábrica de serração, a indicar as horas de entrar, de almoçar e de despegar, acompanhados dos barulhos das conversas dos operários, do pigarrear matinal, das buzinas e campainhas das bicicletas, logo substituídos pelo matraquear das máquinas, das cintas, do cortar prolongado e irritante dos troncos de árvores, ou do seu apagar para a hora de almoço, ou fim do dia, obrigavam-me a levantar, a ir almoçar e que eram mais do que horas para fazer os deveres de casa. Um relógio laboral que marcava a vida com o relógio da torre, o ritual dos comboios, a azáfama dos passageiros, o lançar ritmado das travessas transportadas às costas pelos carregadores, fazendo lembrar Cristos transformados em Sísifos, que mais pareciam condenados às galés do que seres livres, não emitiam sons, nem de dor nem de mágoa, mas à hora devida, o acumular de muitos meio quartilhos libertavam as línguas e, então, sabia que eram humanos. O som matinal da campainha da bicicleta do padeiro despertava-me o desejo de comer o pão fresco e ainda quente; o pregoar e as buzinadelas do peixeiro obrigavam-me a correr na expectativa de poder ver, debaixo do oleado, eventuais polvos no meio daquela salganhada toda; a corneta do petroleiro associava-a ao cheiro do café de cevada e aos brindes, cavalinhos de baquelite, de várias cores, cujas patas e cabeça balanceavam ao toque; o linguajar, ameaçador para mim, claro, dos ciganos a tentarem vender os seus produtos, dizia-me para não me aproximar muito, tinha medo de ser levado com eles por não comer a sopa. Outros sons, alguns arrepiantes, oriundos da vizinhança, e intensificados pela noite, verdadeiros gritos de dor, filhos de agressões de homens brutos e bêbados, perturbavam-me o sono. O que eu gostava mais era das salvas matinais de vinte e um morteiros a anunciar os dias festivos, mesmo sendo cedo não ficava minimamente perturbado, porque, assim que terminasse o bombardeamento, voltava a adormecer, mas o toque longínquo da sineta da quadrilha do compasso, sinal de que o dia seria dedicado a amêndoas, muitas e boas, ou não fosse a Páscoa sinónimo de fartura e de doçarias, despertava-me uma estranha gula. No verão ouvia-se ao longe sons musicais, frequentemente aos soluços, de acordo com a vontade do vento, denunciando agradáveis arraiais pelas aldeias vizinhas. Por vezes, os sinos entristeciam e faziam entristecer com os seus toques de dor, associando-se ao som da matraca que abria o cortejo da morte, outras não, até parecia que se tinham embriagado, tão alegres e repenicados eram os seus toques, já o mesmo não posso dizer da sirene dos bombeiros ao confirmar tragédias mais ou menos graves, de acordo com os diferentes toques e que mobilizava as pessoas num sufoco, fosse qual fosse a hora, de dia, de noite, com as pedras das calçadas e das ruas a ribombarem angústia e, por vezes, algum alívio. Quantas vezes, à distância, conseguia ouvir o barulho da canalhada a ecoar pelo vale, fazendo-me inveja por não poder mergulhar, também, nas águas tépidas e límpidas do rio, ou os estranhos e sonoros ruídos que ouvia no final do ano, associando-os a coisas novas e boas, que nem sempre ocorriam. Tantos sons! Até parece uma sinfonia, sinfonia da nostalgia, dando origem a novos sons que emergem da combinação de sons do passado, sons que não se esquecem e que a noite nunca conseguirá silenciar...


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