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sábado, 24 de dezembro de 2011

Recordação de Natal

Trata-se de um texto editado na véspera do Natal de 2005, também um sábado (passaram já 6 anos, continuamos na 3ª República, apesar dos esforços do pessoal aqui da Quarta…), e do qual, vá lá saber-se porquê, alguns dos leitores mais antigos do 4R por vezes se lembram e me vão recordando. E até me pedem para o republicar. Por isso, aí vai ele.
Esta historieta, de um Portugal que já não existe, só a poderá entender quem, como o Ferreira de Almeida ou o Massano Cardoso tenham vivido fora das grandes cidades e tenham conhecido a vida das pequenas terras.
Quando era muito miúdo, um dos homens a dias que trabalhava na agricultura, em casa dos meus pais, era o Sr. Emídio, mais conhecido pelo Emídio Ferreiro, em alusão à sua outra profissão. De todos os homens a dias, era do Sr. Emídio que mais gostava.
Se andava a pôr couves, eu lá estava a tentar ajudá-lo, se plantava alfaces, eu lá estava a dar-lhas à mão, acompanhava-o nas semeaduras, nas regas, nas mondas e nas colheitas.
O Sr. Emídio contava-me histórias, sobretudo da 1ª Grande Guerra, onde esteve, em 1917. Descrevia as trincheiras, os ataques de baioneta, a agonia dos feridos, enaltecia os actos de valentia e condenava os cobardes que procuravam fugir.
O Sr. Emídio tinha sido 1º cabo e dizia-o com muito orgulho da posição hierárquica que tinha atingido. Para mim, nessa altura, ser 1º cabo era o posto máximo da carreira militar, o chefe supremo.
Mas contava-me outras histórias e descrevia-me a grande cidade de Lisboa por onde tinha passado uns anos, com tanto entusiasmo que da primeira vez que vim a Lisboa quis ir ver os sítios de que me falava o Sr. Emídio.
Por essas alturas, o meu Pai andava a fazer obras para aumentar a casa.Em pedra, claro.
Para o trabalho da pedreira e dos pedreiros era preciso ter os guilhos, os picos e demais ferramentas bem afiadas: disso se encarregava o Sr. Emídio na sua forja.
Deste modo, passei a ir também à forja do Sr. Emídio, onde o via a dar ao fole, espevitando o braseiro, de forma a pôr o metal ao rubro para ser moldado, com fortes marteladas, em bicos bem afiados que penetrassem na rocha.
Era aliás esse o braseiro a que o senhor abade da minha terra aludia, meio sério, meio a rir, quando falava aos miúdos do inferno: portassem-se mal e lá cairiam no inferno, onde o fogo era bem pior que as brasas a arder da forja do Sr. Emídio!...
Afeiçoei-me ao Sr. Emídio. Em determinado Natal, pedi ao meu Pai para dizer ao Sr. Emídio para fazer a consoada connosco.
Não muito convencido, mas depois de me ver muito triste, o meu Pai lá se resolveu: oh! Emídio, venha logo comer o bacalhau cá a casa!...
Que não, dizia e repetia o Sr. Emídio.
Mas eu lá o convenci e ele veio com a mulher, a Srª Nazaré.
Em vários anos seguintes, repetia-se a cena e lá estava em casa também o Sr. Emídio.
Pela lei da vida, o Sr. Emídio morreu há muito. Mas não há noite de Natal em que não me venha do Sr.Emídio uma doce e nostálgica recordação.

Nota: Dos comentadores da primeira hora e desse texto, continua a honrar-nos o ilustre Tonibler. Menos constante, a Anthrax. Mas "la donna è mobile"...e há um finlandês para enfreniziar...Um abraço especial a ambos.

7 comentários:

Bartolomeu disse...

Quando em criança passava férias na aldeia, em casa da minha avó materna, perto da Serra de Estrela, era a altura das colheitas da batata, do milho, do trigo, da uva etc.
Para esses trabalhos eram sempre contratados homens e mulheres, alguns que vinham de outras aldeias. Cerca das 5 horas, era servida aos trabalhadores, a merenda, uma refeição completa, constituída geralmente por batatas cozidas ou assadas, bacalhau frito, sardinhas, frango, chouriço, presunto, queijo, etc.
Aquela merenda era comida em grupo, todos sentados no chão, em roda, à sombra e com uma profusão de histórias a adoçar as comidas.
Não perdia aquela refeição, muito a contra-gosto da minha avó que entendia que não devia misturar-me com os trabalhadores. Impossível!
Aquelas pessoas eram riquíssimas nas suas experiências de vida, na forma como a entendiam e na certeza que tinham no futuro. Um futuro que apesar de muito pobre, era sempre, em cada dia reforçado de esperança e confiança.
Um maravilhoso Natal, caros Amigos!

Tonibler disse...

6 anos??? Céus!....


Um abraço a todos e feliz natal!!

Massano Cardoso disse...

O senhor Emídio e a forja! Uma bela lembrança, Pinho Cardão, a sugerir que forja uma história à volta de outra forja, a de um primo meu, o Porrudo. Fica para o ano. Entretanto Boas Festas para o pessoal que partilha o espaço do 4R.

Pinho Cardão disse...

Caro Professor:
Para o ano, mas logo para o princípio, caro Professor. Ficamos à espera!

Caro Tonibler:
Pois é...ainda foi ontem!...

Caro Bartolomeu:
Esperança e confiança. Sem isso, nada!...

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Uma história linda! Natal é amor, fraternidade e solidariedade. Um grande abraço, desejando a todos um Santo Natal.

Tavares Moreira disse...

Belíssima evocação do Natal, caro Pinho Cardão!
O Natal é isso mesmo, a atenção que devemos aos outros, a começar por aqueles que nos mereçam consideração, por mais humildes que sejam!
Afinal todos são nossos irmãos, é a grande lição do Natal, do nascimento em Belém de Judá desse espantoso mensageiro do amor, Jesus Cristo!

José Gonçalves Cravinho disse...

Senhor Tavares Moreira,desculpe o meu atrevimento em meter-me nêste assunto,mas o lendário judeu Jesus que depois teve o nome grego de Cristo,porquê o destaque pelo seu nascimento?Sei que a sua resposta
será porque êle é filho de Deus e veio ao Mundo para sofrer e morrer para nos salvar,como ensina a
Igreja.Eu então deixo-lhe aqui a minha pergunta seguinte:
-Que Deus é êsse assim tão mau/
tão cruel,tirano e sanguinário/
que se porta pior que um marau/
e mata o filho no Calvário?!