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sábado, 24 de dezembro de 2005

Recordação de Natal

Esta historieta, de um Portugal que já não existe, só a poderá entender quem, como o Ferreira de Almeida ou o Massano Cardoso tenham vivido fora das grandes cidades e tenham conhecido a vida das pequenas terras.
Quando era muito miúdo, um dos homens a dias que trabalhava na agricultura, em casa dos meus pais, era o Sr. Emídio, mais conhecido pelo Emídio Ferreiro, em alusão à sua outra profissão.
De todos os homens a dias, era do Sr. Emídio que mais gostava.
Se andava a pôr couves, eu lá estava a tentar ajudá-lo, se plantava alfaces, eu lá estava a dar-lhas à mão, acompanhava-o nas semeaduras, nas regas, nas mondas e nas colheitas.
O Sr. Emídio contava-me histórias, sobretudo da 1ª Grande Guerra, onde esteve, em 1917.
Descrevia as trincheiras, os ataques de baioneta, a agonia dos feridos, enaltecia os actos de valentia e condenava os cobardes que procuravam fugir.
O Sr. Emídio tinha sido 1º cabo e dizia-o com muito orgulho da posição hierárquica que tinha atingido.
Para mim, nessa altura, ser 1º cabo era o posto máximo da carreira militar, o chefe supremo.
Mas contava-me outras histórias e descrevia-me a grande cidade de Lisboa por onde tinha passado uns anos, com tanto entusiasmo que da primeira vez que vim a Lisboa quis ir ver os sítios de que me falava o Sr. Emídio.
Por essas alturas, o meu Pai andava a fazer obras para aumentar a casa.
Em pedra, claro.
Para o trabalho da pedreira e dos pedreiros era preciso ter os guilhos, os picos e demais ferramentas bem afiadas: disso se encarregava o Sr. Emídio na sua forja.
Deste modo, passei a ir também à forja do Sr. Emídio, onde o via a dar ao fole, espevitando o braseiro, de forma a pôr o metal ao rubro para ser moldado, com fortes marteladas, em bicos bem afiados que penetrassem na rocha.
Era aliás esse o braseiro a que o prior da minha terra aludia, com ar bondoso, meio sério, meio a rir, quando falava aos miúdos do inferno: portassem-se mal e lá cairiam no inferno, onde o fogo era bem pior que as brasas a arder da forja do Sr. Emídio!...
Afeiçoei-me ao Sr. Emídio.
Em determinado Natal, pedi ao meu Pai para dizer ao Sr. Emídio para consoar connosco.
Não muito convencido, mas depois de me ver muito triste, o meu Pai lá se resolveu: oh! Emídio, venha logo comer o bacalhau cá a casa!...
Que não, dizia e repetia o Sr. Emídio.
Mas eu lá o convenci e ele veio com a mulher, a Srª Nazaré.
Em vários anos seguintes, repetia-se a cena e lá estava em casa também o Sr. Emídio.
Pela lei da vida, o Sr. Emídio morreu há muito.
Mas não há noite de Natal em que não me venha do Sr.Emídio uma doce e nostálgica recordação.


4 comentários:

Torquato da Luz disse...

Meu caro Cardão:
Gostei muito deste texto. Trouxe-me lembranças do meu distante Natal provinciano.
Desejo-lhe, bem como à Graça e aos rapazes, Boas Festas e Feliz 2006.

Elisiário Figueiredo disse...

Quem viveu nas aldeias recônditas deste nosso Portugal e tem já alguma idade entende esta sua história, para mim fez com que me lembra-se de algumas “figuras” da minha infância, homens e mulheres do povo que possuíam grande sabedoria sobre as coisas do dia a dia, com quem se aprende e muito a viver com respeito pelos outros e em harmonia com a natureza.

Um Bom Natal para si e família extensivo a todos os autores deste blog.

Anthrax disse...

Amigo Pinho Cardão, não é preciso viver em terras pequenas para apreciar essas ocasiões.

Durante muitos anos passei os "natais" no Alentejo. Primeiro em Estremoz e depois em Vila Viçosa, aquelas reuniões familiares de natal - fabulosas - nunca mais se repetirão. Haverá outras, sim, mas são muito diferentes das de então.

Um brinde ao Sr. Emídio e Sra. Dª Nazaré!!!... Com um belo de um tinto alentejano, é claro. Hoje 'tou no tinto.

Tonibler disse...

Texto espectacular. Como diz o Anthrax, não é preciso ter vivido.