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domingo, 28 de dezembro de 2014

O tocador de pratos

Os casamentos têm as suas vantagens. Fugimos à rotina, reencontramos velhos amigos, soltamos o espírito na bondade e esperança do momento, saboreamos pratos deliciosos e perigosos, brincamos com as palavras e contamos muitas histórias a pretexto de tudo e de nada. Ainda nos permite ver comportamentos primevos, quando a comida orientava o corpo e ofuscava a razão, levando a saciar o mais rapidamente possível o órgão mais nervoso do ser humano, o estômago, que estremece de prazer quando vê tanta abundância. Depois, à medida que se vai enchendo, liberta o pensamento o qual se põe a derivar pelo passado. 
Ainda não tinha começado a comer quando o sol me empurrou para uma conversa que há muito desejava libertar-se; tudo a propósito da música, da filarmónica e de alguns músicos. Houve quem perguntasse a um dos presentes se ainda andava na filarmónica. Respondeu que sim, que era o mais velho ou um dos mais velhos. Olhei - conheço-o muito bem desde pequeno -, e lembrei-me do seu pai, o falecido Trajano que tocava pratos. O filho herdou os pratos do pai. Meti-me na conversa. Tinha de ser, porque milhares de imagens e de sons explodiram na minha mente recordando velhos episódios, alguns com sessenta anos. Disse que o único instrumento musical que consegui, salvo seja, tocar até hoje foram os pratos. - E tudo por causa do seu pai! Sorriu. Expliquei-lhe que em pequeno, quando via a filarmónica, corria para a rua só para ver o homem atarracado, mas muito simpático, que, no meio do cortejo, levava um prato em cada mão pronto a bater com força um no outro, ao mesmo tempo que os elevava, afastando-os, para os colocar novamente em posição de ataque como se quisesse matar uma melga. Gostava imenso de ouvir aquele som. Os restantes não me interessavam muito, até pareciam que faziam tudo para que os dois pratos entrassem em cena. Ficava de tal modo seduzido que ia imediatamente a casa retirar da cozinha dois testos, os maiores que lá havia para poder também acompanhar o cortejo da filarmónica batendo ao mesmo tempo que o Trajano, quando lançava no ar aquele som de fantasia que fazia com grande mestria. Por vezes não conseguia sair de casa com os testos, porque a minha mãe me interpelava dizendo: - O que é que estás a fazer? - Vou tocar pratos como faz o Trajano. - Larga os testos, depressa! Ainda dás cabo deles. - Mas eu quero ir para a filarmónica fazer o que o Trajano faz. - O quê? Deixa-te disso. Põe os testos no sítio, depressa, ainda os amolgas. - Mas eu bato devagarinho. Anda lá. Vou só até à janela. Eu bato devagarinho. Não estrago. Como não dizia nada, nem sim nem não, corria para a janela, que dava para a rua, e punha-me a bater sempre que ouvia o som daqueles maravilhosos pratos até desaparecer a música que a banda tocava quando andava pelas ruas da minha vila. Daquela vez não pude ir atrás dela, a minha mãe apanhou-me com as mãos nos testos, mas quando não me apanhava, apanhava depois quando chegava a casa, só que dessas vezes o meu rabiosque funcionava como tambor. Foi assim que terminou a minha iniciação instrumental, e a banda perdeu um potencial tocador de pratos.

2 comentários:

luis barreiro disse...

Caro Salvador Massano pior fui eu que quando entrei para a banda filarmónica, o instrumento que me atribuíram foi o fliscorne, ainda hoje esse nome traz-me sorrisos.

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Professor Massano Cardoso.
As crianças têm realmente coisas muito engraçadas. É em criança que se despertam as inclinações e as preferências. Mas a Mãe lá teria as suas razões...