"Tenho sentido que olha para a lei com a isenção e imparcialidade de um juiz que a tem de aplicar. Contudo, é advogado do IEFP. É certo que o IEFP prossegue o interesse público, mas [você] prossegue outro objectivo, a saber: empregar os seus conhecimentos a favor do IEFP, numa óbvia perspectiva de parcialidade e de pouca isenção em abono do seu cliente. Tudo o que fizer ao contrário deste princípio prejudica a sua carreira". A edição de hoje do Público reproduz estas palavras, escritas por uma directora do IEFP e dirigidas a um jurista que, tanto quanto se percebe, apesar de pertencer aos seus quadros, exercia mandato judiciário em nome e representação deste organismo. As palavras transcritas são o fundamento invocado para a desqualificação do jurista, que foi acusado de não cumprir os objectivos da organização e consequentemente transferido para um Centro de Emprego.
Este acto e a sua motivação dizem tudo sobre a incompreensão geral do papel do advogado, sobretudo daquele que exerce a sua actividade em regime laboral de subordinação. Neste caso é gritante o desconhecimento pelo IEFP da Lei nº 15/2005, de 26 de Janeiro que aprovou o Estatuto da Ordem dos Advogados e que, no seu artigo 65º, afirma a vinculação do advogado aos princípios rectores da profissão, designadamente os de natureza deontológica que impedem a litigância contra lei expressa (com que a directora do IEFP pelos vistos não se conformou). Este preceito considera de resto nulas quaisquer orientações ou instruções da entidade empregadora que restrinjam a isenção e independência do advogado ou que violem os princípios deontológicos da profissão, entre eles aquele dever que o advogado em causa pelos vistos escrupulosamente cumpriu.
O episódio, porém, convoca uma importante reflexão. É possível compatibilizar hierarquia e autonomia técnica quando em causa está o Direito, mas sobretudo os direitos? Pode realisticamente conceber-se um modelo em que por um lado é inerente à relação de trabalho o dever de obediência a ordens e instruções por parte do subordinado; e por outro a independência que é inerente à advocacia?
No fundo este caso, para além de revelar uma inadmissível ignorância de princípios básicos por parte de dirigentes de serviços públicos (velhos tiques...), retoma a gasta questão de saber se faz sentido existirem advogados-empregados, sobretudo no Estado ou noutros níveis da administração.
9 comentários:
Caro Ferreira de Almeida, não é a relação de trabalho um valor inferior ao valor da lei? Não se encontra o dever de subordinação na relação patrão-empregado num patamar inferior ao dever de cumprimento da lei?
Por outro lado, se em vez do edificio legal Português ser o mar de barafunda e confusão que é fosse mais simples, escorreito e de fácil leitura e compreensão aconteceriam estas coisas?
A directora não tinha lido as cominações todas e desentranhou o advogado....
Se bem percebo, a Senhora Directora entende que os serviços públicos não se devem reger pelo princípio da legalidade, e não apenas entende como o escreve preto no branco. Fosse eu o superior hierárquico da Senhora e esta teria uma sanção com a extensão máxima que a Lei permitisse. Mas se calhar é uma comissária política e esta desenvoltura às tantas é entendida como um testemunho da sua devoção partidária.
À primeira vista a notícia é chocante.
Mas formularia aqui a seguinte pergunta: se o Advogado, trabalhando em exclusivo para uma empresa privada, assumisse sistematicamente posições em detrimento dos interesses da empresa, o que lhe aconteceria?
Manter-se-ia inalterável a relação de trabalho?
Obrigado.
Cumprimentos
Caro Parker, é exactamente essa a mais profunda interrogação que o caso coloca. Não havendo verdadeira advocacia sem autonomia técnica e independência do advogado, a questão tem de ser formulada assim: é admissível um contrato de trabalho por natureza subordinado com um advogado que tem de ser livre?
Indo um pouco mais longe, se os serviços do Advogado forem prestados mediante um contrato de avença?
Cumprimentos
A avença, como o meu caro Parker sabe, é um contrto de prestação de serviços onde, por definição, não existe subordinação mas cooperação. Nesse quadro deixa de existir a aparente incompatibilidade. O credor do serviço fará, em cada momento, um juizo sobre a prestação do avençado que nada impedirá de exercer a actividade de forma livre, independente e tecnicamente autónoma.
Dir-se-à: mas se o advogado avençado der prevalência à lei e não aos interesses de quem o contrata, tem o destino traçado. Pois tem. Mas toda a liberdade tem preço.
Eu, que advogado há já muitos anos, posso depor. Já tive quem se desagradou pelo facto de recusar o patrocínio por considerar que o cliente não tinha razão e acabou aí a relação; mas, felizmente, já tive a grata experiência de ter como clientes quem, depois de ouvir as minhas razões, consolidou a relação profissional justificando que procurava não quem lhe desse razão quando não tinha, mas quem o defendesse os seus interesses quando outros, sem razão, os pusessem em causa.
Enquanto escrevo este comentário, veio-me à lembrança um desses que tive a felicidade de ter como constituinte. Um homem notável que infelizmente já não está entre nós, um industrial como poucos que soube arriscar num País que lhe atribuíu muitas comendas mas que nunca reconheceu verdadeiramente o seu valor. Uma silenciosa honemagem...
Caro JMFAlmeida
Li a notícia que comenta.
Respondo à sua última pergunta: não devia existir nem ser possível essa situação.
Aliás um advogado inscrito na Ordem que tivesse um vínculo laboral subordinado, devia ser proibido de exerçer em matérias relacionadas com a sua entidade patronal. Isto porque não se pode proibir o exercício de imediato.
Isto serve para todos, inclusive os bancos.
Não basta proibir condutas que possam originar conflitos de interesse, é essencial impedir as situações que os originem.
Gasta-se tanto dinheiro em Pareceres externos, melhor era acabar com os advogados internos e entregar a advogados externos.
Cumprimentos
joão
Concordo com a sua posição, dr. JM Almeida. No entanto, reconhecerá que só uma minoria, mesmo na modalidade de avença, se poderá dar a esses "luxos". Dou-lhe um exemplo: o ICNB (Instituto de Conservação da Natureza e da Biodeversidade) tem advogados avençados para a instrução de processos de contra-ordenações, os quais acusam sistematicamente e sem quaisquer provas dignas deste nome. O mesmo se passa com as infracções estradais, no respectivo organismo de "tutela". Acho que isto está generalizado nos serviços públicos. E se se for ainda um pouco mais longe, transpondo as coisas para o plano legislativo, uma boa parte das propostas de Lei e de simples decretos-lei são elaboradas à medida da vontade dos detentores do poder por parte de "eminentes" professores de Direito, com a "perfeita consciência" de algumas inconstitucionalidades que, de quando em vez, lá vão sendo detectadas... Aliás, isto já vem de longe. Os auditores jurídicos junto dos vários ministérios, magistrados do MP, por inerência, que é feito deles?
Enviar um comentário