Muito tempo antes de ter deixado de usar calções, brincava eu um dia em frente da casa do meu avô, junto ao sapateiro e ao talho, quando, de repente, ouvi uma agitação dos diabos na rua que desemboca na ponte da praça. – Fujam! Fujam! É o boi! É o boi! Mas eu não via nada. Ouvia apenas os avisos e gritos muito agudos das mulheres, até que, de repente, um barulho diferente do habitual começou a impor-se por si. Na curva logo a seguir à barbearia do Zé do Rego apareceu o boi da câmara numa correria louca bufando que nem um desalmado. Fiquei aterrorizado. O pão com manteiga caiu no chão. – Tenho que fugir. Podia ter-me enfiado na loja do sapateiro, cuja porta estava a uns escassos três metros, mas para isso tinha que correr em direção à fera. Como não tinha idade e nem vocação para forcado optei por correr por uma rua íngreme que vai dar ao Rossio na esperança de que a besta continuasse na sua marcha desenfreada em direção ao Balcão. Mas o bicho, ao ver-me, deverá ter pensado que seria um bom alvo para descarregar a sua agressividade. E não é que muda de direção! Faz uma perpendicular sem derrapar e persegue-me furiosamente. Valeu-me a casa da Senhora Aurora que tinha a porta aberta e pela qual entrei esbaforido parando no andar superior onde costumava ir comprar as boroas para a minha avó a vinte e cinco tostões a unidade. O coração batia tanto que até parecia saltar pela boca. Não consegui dizer nada à Senhora Aurora que, muito surpreendida, olhava para mim, pensando na falta de maneiras de um menino bem comportado que, habitualmente, chamava-a à entrada. Sem dizer nada, e tendo dado conta de que algo de anormal se estava a passar, saiu, voltando passado algum tempo. Eu ainda estava meio aterrorizado quando a ouvi dizer: - O menino já pode ir para casa, o boi anda no Rossio. E assim foi, sem dizer uma única palavra desci as escadas, saí para a rua e olhei para o lado esquerdo pensando: - Se o boi anda no Rossio, então, pode muito bem voltar para trás e apanhar-me. Enchi-me de coragem e corri que nem um doido até entrar no portão da casa do meu avô. Fechei-o bem, e nesse dia não mais voltei a sair.
O boi era mesmo agressivo. Era o boi da câmara. Agora não sei se a sua agressividade era inata ou se era adquirida. Às tantas devia ser da responsabilidade de ambas. O desgraçado do animal tinha que puxar a carroça da carne do matadouro até ao talho. Acredito que não devia ser fácil ver e ouvir os seus irmãos a serem massacrados e depois transportar os seus restos para alimentar a cáfila dos humanos. Passou-se. E eu, sem ter qualquer culpa no cartório, ia pagando as favas.
Sabe-se que a agressividade animal é devida a fatores genéticos que começam a ser desvendados. É possível separar e desenvolver espécies em função da sua agressividade inata. Estudos que começaram há mais de cinquenta anos com raposas prateadas e, mais recentemente, com ratos permitiram aos cientistas criar animais ultra domesticados a ratos ferocíssimos que chegam a atacar sem qualquer receio um ser humano. Outros, mais dóceis, deixam fazer tudo e até procuram os seres humanos. E estamos a falar de ratos! Tudo indica que os genes responsáveis pela agressividade serão basicamente semelhantes nas diversas espécies. O controlo dos mesmos, ou a seleção de animais sem os ditos, poderia ser uma forma de domesticar muitos animais selvagens contribuindo para evitar a sua extinção. Assim, um dia, teríamos manadas de búfalos selvagens a seguir-nos docilmente, e, até, poderíamos correr o risco de nos lamberem com as suas línguas rugosas ou fazerem-nos festas com as suas caudas, ou, então, passarmos a ter tigres ou leões como animais domésticos a enrolarem-se ao redor das nossas pernas ou a quererem sentar-se ao colo, o que não seria muito aconselhável. Procurar conhecer a genética da agressividade, na expectativa de podermos vir a domesticar muitos animais selvagens, constitui um sinal de má consciência face ao contributo que temos dado para o seu desaparecimento. Mas talvez possam ser úteis as descobertas que começam a ser produzidas. No caso dos humanos, e face à “selvajaria” que muitos expressam nos seus comportamentos, uma inativação de alguns genes poderia ser muito interessante. E em vez de andarmos a querer domesticar os animais selvagens, o melhor seria centrar a atenção na “domesticação” de alguns seres humanos que, afinal, acabam por ser muito mais agressivos e perigosos do que o boi da câmara.
O boi era mesmo agressivo. Era o boi da câmara. Agora não sei se a sua agressividade era inata ou se era adquirida. Às tantas devia ser da responsabilidade de ambas. O desgraçado do animal tinha que puxar a carroça da carne do matadouro até ao talho. Acredito que não devia ser fácil ver e ouvir os seus irmãos a serem massacrados e depois transportar os seus restos para alimentar a cáfila dos humanos. Passou-se. E eu, sem ter qualquer culpa no cartório, ia pagando as favas.
Sabe-se que a agressividade animal é devida a fatores genéticos que começam a ser desvendados. É possível separar e desenvolver espécies em função da sua agressividade inata. Estudos que começaram há mais de cinquenta anos com raposas prateadas e, mais recentemente, com ratos permitiram aos cientistas criar animais ultra domesticados a ratos ferocíssimos que chegam a atacar sem qualquer receio um ser humano. Outros, mais dóceis, deixam fazer tudo e até procuram os seres humanos. E estamos a falar de ratos! Tudo indica que os genes responsáveis pela agressividade serão basicamente semelhantes nas diversas espécies. O controlo dos mesmos, ou a seleção de animais sem os ditos, poderia ser uma forma de domesticar muitos animais selvagens contribuindo para evitar a sua extinção. Assim, um dia, teríamos manadas de búfalos selvagens a seguir-nos docilmente, e, até, poderíamos correr o risco de nos lamberem com as suas línguas rugosas ou fazerem-nos festas com as suas caudas, ou, então, passarmos a ter tigres ou leões como animais domésticos a enrolarem-se ao redor das nossas pernas ou a quererem sentar-se ao colo, o que não seria muito aconselhável. Procurar conhecer a genética da agressividade, na expectativa de podermos vir a domesticar muitos animais selvagens, constitui um sinal de má consciência face ao contributo que temos dado para o seu desaparecimento. Mas talvez possam ser úteis as descobertas que começam a ser produzidas. No caso dos humanos, e face à “selvajaria” que muitos expressam nos seus comportamentos, uma inativação de alguns genes poderia ser muito interessante. E em vez de andarmos a querer domesticar os animais selvagens, o melhor seria centrar a atenção na “domesticação” de alguns seres humanos que, afinal, acabam por ser muito mais agressivos e perigosos do que o boi da câmara.
26 comentários:
estou deliciada ....
qualquer semelhança com a realidade ... NÃO é pura coincidência.
ainda não parei de rir. Juro. ... eheheheheh ...
acho que descobri um talento genial no 4R para as Produções Fictícias ....
Após duas ou três semanas de me iniciar no 4R, criei o hábito de tentar “adivinhar” quem escreveu o editorial que leio na altura: pela preferência temática, pelo estilo, pelo humor. Já tenho acertado! Mas ao ler “O boi da câmara” as gargalhadas foram tantas que me impediram de fazer qualquer tipo de análise! Só quando surgiu “a parte científica” é que deduzi o nome do autor. Obrigada pelos bons momentos!
Ainda estou a pensar no boi da câmara... nesta altura não dá para me debruçar e comentar sobre a “domesticação” de alguns seres humanos! :)
Estou totalmente de acordo com a opinião final da "domesticação" de alguns seres humanos!
Pena é que à luz dos Direitos Humanos (se calhar), isso seria um crime...
Aproveito para felicitar todos os autores deste Blog, pois apesar de serem ilustres profissionais muito ocupados, ainda assim se dedicam a informar, dissertar, contar estórias de vida, neste espaço (democrático)cibernético. Não duvido que o fazem porque sentem prazer em fazê-lo, mas proporcionam (talvez) maior prazer a quem os lê. Descobri este Blog no início do passado Novembro e fiquei fã. E como (in)felizmente tenho muito tempo pois estou c/ baixa por doença, delicio-me e faço deste blog uma das minhas leituras "obrigatórias".
Já agora, a título de curiosidade: cheguei até ele, quando procurava no google a origem da expressão "Levar a carta a Garcia", expressão que conheço desde jovem sem contudo saber a sua origem.
Parabéns e obrigada por esta interacção!
Esse boi da Câmara era mesmo um animal perigosos, a meter-se por ruelas íngremes para perseguir a vítima! Mesmo assim, a criança assustada transformou-se num adulto sem rancor que ainda conseguiu uma boa justificação para a agressividade do animal! A ideia de que todos os animais agressivos poderão vir um dia a ser domesticáveis é tentadora, mas também li há tempos numa revista que a ocitocina faz as pessoas ficarem boazinhas mas depois concluia que um mundo em que fossem todos muito simpáticos e cordatos era capaz de ficar um bocado monótono. Por enquanto, será melhor desviarmos o caminho quando se dá com um agressivo pela frente e esperar que ele mude de direcção!
Cara Fenix, espero que os seus tratamentos estejam a correr bem e que muito em breve possa estar aqui a ler o 4r quando regressar de um dia de trabalho intenso. Até lá, é um prazer fazer-lhe companhia nas horas mais lentas de passar.
Caro Professor Massano Cardoso:
Dá para imaginar o pânico que o assolou quando viu o boi da Câmara a correr desabridamente em sua direcção!..
Nunca é demais dizer que os seus textos, contem histórias ou abordem assuntos técnico-científicos, propiciam-nos sempre momentos muito agradáveis.
A ocitocina de que fala a 4ªrepublicana Suzana Toscano será de venda livre? terá contraindicações? pode ser dissolvida no café? ou será de administração endovenosa?
Prof. Massano Cardoso ajude-nos.
...espero ter acertado no nome da substância, não vá criar agora aqui um monte de suspeitas!
Eu não quero abusar da vossa paciência, mas relativamente à oxitocina, uma das “hormona do amor” já tinha escrito há algum tempo uma pequena nota intitulada “Amnésia Social” (http://quartarepublica.blogspot.com/search?q=oxitocina)
Caro just-in-time
Não é de venda livre. Quanto à forma de a utilizar há uma que é muito eficaz: spray! spray! Imagine andar com um spray destes no bolso e "mandar" umas “spraiadas” de vez em quando em redor. Já imaginou? Rendiam-se!! Bem, ainda não foram feitas experiências mas nada impede que especulemos, não acha?
Fénix
Se sentiu prazer, então eu fico muito satisfeito. É uma forma de ajudar a recuperar a saúde.
Catarina e Pezinhos N´Areia
São encantadoras. Quase que consegui ouvir as vossas gargalhadas.... Rir faz aumentar a serotonina no cérebro e transmite uma sensação de felicidade. Não é só a oxitocina.
Susana
Anda muito bem atualizada em termos de neurotransmissores cerebrais. Hum! Não abuse da oxitocina!!!
Obrigado just-in-time. Hoje consegui dar um pequeno contributo para algum bem-estar.
...a ocitocina não é para estimular as contracções na hora do parto!?
Bom...com certeza que o caro Professor Massano Cardoso, se tiver disponibilidade vai tirar-nos as dúvidas.
Caro Massano Cardoso, pois claro que ando actualizada, o meu amigo desperta-nos esta curiosidade científica, o que quer? mas é só teoria, isso do spray parece-me perigoso :)
Caro Prof. Massano Cardoso
Já realizou cada um dos seus leitores a imaginar quem vai "spraiar"?!
Acabei de ler “Amnésia social”. Interessantíssimo!
O que eu tenho aprendido aqui no 4R!
Oxitocina – já não vou esquecer! E serei a primeira na fila de espera se alguma vez for de venda livre!
Cara jotaC
É sim senhor! É a hormona do"parto" que estimula as contrações uterinas. Até aqui continua a manifestar o seu “amor” ao promover o aparecimento de um novo ser...
Mas tal como já tinha dito na “Amnésia social”... “Tentar interpretar as relações e comportamentos humanos através da química é, naturalmente, muito redutor. Apesar da complexidade e variabilidade, têm que ter suportes fisiológicos.
O encanto da ternura demonstrada pelos pais em relação aos filhos, as explosivas e inebriantes manifestações de amor entre dois amantes e a serena e reconfortante relação entre amigos, só para falar de algumas situações, pautam-se por partilhar uma substância muito interessante: a oxitocina.
Quem diria que esta hormona, que tem um papel primordial no desencadear do parto (as contracções uterinas são da sua responsabilidade) e na subida do leite, poderia ter um papel tão importante nas relações humanas, ao ponto de se manifestar, também, como uma hormona do amor? "Elixir" mágico?
Provas científicas são conclusivas acerca destas novas acções. Por exemplo, o bloqueio da sua acção, em ratos e ratinhos, origina o abandono dos cuidados e da amamentação das crias. Perdem, igualmente, a capacidade de reconhecer os membros familiares das suas espécies, contribuindo para o aparecimento da chamada "amnésia social...".
Caro Professor:
Só agora é que cheguei, mas cheguei!...
Quanto a domesticar o bicho homem por meios naturais, a história revelou ser tarefa impossível. Nem o remédio de utilizar o medo das chamas do inferno surtiu ou tem surtido qualquer efeito. Só, porventura, mesmo a genética. Mas a evolução, caro Professor? Bastará um gene transviado e lá voltaremos à selvajaria... Não, não há mesmo nada a fazer. Somos assim, assim seremos...Uns selvagens, uns bons,outros de fugir.
Cara Fénix:
Desvanecidos pelas suas palavras.
E rápidas e boas melhoras!
Satisfaz-me saber que nós, mulheres, não fomos incluidas nesta “domesticação”!
Finalmente, alguém reconhece a nossa... como direi?... superioridade humana! Sim, porque se não há motivo para alterar a “espécie”... a “espécie” é perfeita!
“Quanto a domesticar o bicho homem por meios naturais, a história revelou ser tarefa impossível.”..... Nunca iremos desistir de o tentar!!!!!
Cara Catarina:
Ora aí está a suprema perfídia!...
E a demonstração cabal e final de que, quanto ao lindo bichinho-mulher, toda a esperança de regeneração é vã!...
Caro Professor Massano Cardoso:
Muito obrigado pela explicação dada, mais uma vez, acerca da oxitocina.
Efectivamente, no post intitulado “Amnésia social”, o Srº Professor tinha já explicado com bastante detalhe as particularidades desta hormona. Por isso redobro o meu obrigado e justifico a minha “amnésia” dizendo: muita coisa fica “registada” mas, infelizmente, nem tudo…
Cara Catarina:
Subscrevo por inteiro comentário do Drº Pinho Cardão!
Quanto à segunda parte do seu comentário (13,06), discordo de todo quando diz: - "Quanto a domesticar o bicho homem por meios naturais, a história revelou ser tarefa impossível"...
:)
Caro Pinho Cardão:
Os americanos costumam dizer: “If it ain’t broken, don’t fix it!” O bichinho-mulher está muito bem como está! (por falta de melhor analogia).
Caro JotaC:
Eu ficaria bastante surpreendida se o caro JotaC não tivesse concordado com o Caro Pinho Cardão! !!!!
O comentário: "Quanto a domesticar o bicho homem por meios naturais, a história revelou ser tarefa impossível"... não é meu! Mas que continuará a haver uma tentativa de “domesticar” o bicho homem, nisso pode ter a certeza... Nem vão dar por isso!
Prontos, Catarina, tass bem…
Acho um esforço desnecessário, no entanto, desde que não usem de violência física nem de oxitocina, cá esperamos para ser domesticados…
:) :)… :)
Isso nunca!...
Quantas são, quantas são?
A manifestação de docilidade já constitui meio caminho andado neste nosso empreendimento!
:) :)
Boa!...
Os meus parabéns por tanto e tão bom humor.
:)
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