Era um homem de idade muito avançada, para cima dos oitenta anos, alto, muito magro, doente, de expressão doce mas distante, com uns olhos grandes muito expressivos, mas cavados, marcados pela sorte da vida. No Natal recordo-o com maior intensidade.
Era um homem só, abandonado na velhice à sua própria sorte, no desamparo da inexistência de família e na quase ausência da protecção social não fora a pensão mínima que lhe tinha sido atribuída depois de dezenas de anos de trabalho.
Com a sua diminuta pensão assegurava um tecto numa residencial de uma estrela, algures situada no Bairro Alto, na qual encontrava o conforto do repouso do corpo já velho e o abrigo para o frio e o deserto da noite. Diariamente percorria a pé as ruas que ligavam a residencial ao local do seu sustento e da convivência com o mundo lá fora. Permanecia, então, junto à porta de um modesto restaurante de bairro. Era um restaurante acolhedor e despretensioso que servia refeições caseiras, variadas e frescas, confeccionadas com qualidade, em que a simpatia do pessoal era um aspecto reconhecido e valorizado por quem o frequentava. O serviço rápido e a factura relativamente em conta, a juntar a tudo o resto, fidelizavam uma clientela sem vontade de experimentar outra alternativa.
Chegava por volta das 11h, para depois regressar por volta das 16h. O restaurante e os clientes eram a sua casa e família. A refeição principal, o almoço, era oferecida pelo dono do restaurante - um homem relativamente novo, natural de Viseu, que tinha vindo para Lisboa à procura de uma vida melhor - antes de abrir a porta aos clientes. Era um gesto de solidariedade que fazia questão de manter com descrição.
Numa mesinha prontamente arranjada, que em nada destoava das outras, era-lhe servida uma refeição completa - uma sopa, um prato do dia e fruta - sempre acompanhada de um copinho de vinho tinto porque o dono do restaurante sempre dizia que mal não lhe fazia, portanto só lhe poderia fazer bem. Terminada a refeição, amparava-se de baixo do toldo do restaurante para aí ficar algumas horas. A poucos metros encontrava-se uma pequena tabacaria que diariamente lhe oferecia um ou outro jornal. Uma ajuda para ocupar, no regresso à residencia, o muito tempo de espera até a noite chegar.
Os fins-de-semana não faziam qualquer sentido para este homem. Não precisava de descansar e a solidão vinha mais forte nesses momentos. No verão, ocupava-os sentado num banco de um jardim virado ao Tejo, imaginando, porventura, muitas outras vidas que lhe poderiam ter sorrido, enfrentando um futuro incerto, sem ilusões. No Inverno, não sei como fazia.
As pessoas gostavam dele, educado e sempre esboçando um sereno sorriso. Nunca lhe notei qualquer palavra amarga ou contrariada. O pouco que tinha era-lhe oferecido, mas faltava-lhe muito mais. Vivia no medo de as parcas condições que lhe ditavam uma sobrevivência já de si muito difícil pudessem desaparecer e a saúde que não tinha era um mal menor quando lhe ocorria o abandono a que seria devotado se tivesse que ser levado para um hospital.
Era um homem, como tantos outros, esquecido pela sociedade e ignorado pela segurança social. A pobreza e a exclusão ditaram-lhe durante muitos e muitos anos a privação de bens essenciais a uma vida digna.
Quatro anos antes de partir, o milagre aconteceu. Foi acolhido num lar para idosos, numa cidade perto de Lisboa. À dor juntou-se-lhe a alegria do inesperado. Finalmente estava em segurança, tinha quem se preocupasse com ele, tinha de novo o bem-estar que o infortúnio da vida e do mundo lhe tinha apagado da memória. Foram anos de muito aconchego para ele e, também, para quem com ele conviveu mais de perto. Era um homem simples e bondoso que durante os últimos anos de vida ganhou ânimo para também dar alguma coisa aos outros. Era quem diariamente, depois do jantar, fazia a leitura de um conto ou de uma história que todos gostavam de ouvir antes do deitar…
Era um homem só, abandonado na velhice à sua própria sorte, no desamparo da inexistência de família e na quase ausência da protecção social não fora a pensão mínima que lhe tinha sido atribuída depois de dezenas de anos de trabalho.
Com a sua diminuta pensão assegurava um tecto numa residencial de uma estrela, algures situada no Bairro Alto, na qual encontrava o conforto do repouso do corpo já velho e o abrigo para o frio e o deserto da noite. Diariamente percorria a pé as ruas que ligavam a residencial ao local do seu sustento e da convivência com o mundo lá fora. Permanecia, então, junto à porta de um modesto restaurante de bairro. Era um restaurante acolhedor e despretensioso que servia refeições caseiras, variadas e frescas, confeccionadas com qualidade, em que a simpatia do pessoal era um aspecto reconhecido e valorizado por quem o frequentava. O serviço rápido e a factura relativamente em conta, a juntar a tudo o resto, fidelizavam uma clientela sem vontade de experimentar outra alternativa.
Chegava por volta das 11h, para depois regressar por volta das 16h. O restaurante e os clientes eram a sua casa e família. A refeição principal, o almoço, era oferecida pelo dono do restaurante - um homem relativamente novo, natural de Viseu, que tinha vindo para Lisboa à procura de uma vida melhor - antes de abrir a porta aos clientes. Era um gesto de solidariedade que fazia questão de manter com descrição.
Numa mesinha prontamente arranjada, que em nada destoava das outras, era-lhe servida uma refeição completa - uma sopa, um prato do dia e fruta - sempre acompanhada de um copinho de vinho tinto porque o dono do restaurante sempre dizia que mal não lhe fazia, portanto só lhe poderia fazer bem. Terminada a refeição, amparava-se de baixo do toldo do restaurante para aí ficar algumas horas. A poucos metros encontrava-se uma pequena tabacaria que diariamente lhe oferecia um ou outro jornal. Uma ajuda para ocupar, no regresso à residencia, o muito tempo de espera até a noite chegar.
Os fins-de-semana não faziam qualquer sentido para este homem. Não precisava de descansar e a solidão vinha mais forte nesses momentos. No verão, ocupava-os sentado num banco de um jardim virado ao Tejo, imaginando, porventura, muitas outras vidas que lhe poderiam ter sorrido, enfrentando um futuro incerto, sem ilusões. No Inverno, não sei como fazia.
As pessoas gostavam dele, educado e sempre esboçando um sereno sorriso. Nunca lhe notei qualquer palavra amarga ou contrariada. O pouco que tinha era-lhe oferecido, mas faltava-lhe muito mais. Vivia no medo de as parcas condições que lhe ditavam uma sobrevivência já de si muito difícil pudessem desaparecer e a saúde que não tinha era um mal menor quando lhe ocorria o abandono a que seria devotado se tivesse que ser levado para um hospital.
Era um homem, como tantos outros, esquecido pela sociedade e ignorado pela segurança social. A pobreza e a exclusão ditaram-lhe durante muitos e muitos anos a privação de bens essenciais a uma vida digna.
Quatro anos antes de partir, o milagre aconteceu. Foi acolhido num lar para idosos, numa cidade perto de Lisboa. À dor juntou-se-lhe a alegria do inesperado. Finalmente estava em segurança, tinha quem se preocupasse com ele, tinha de novo o bem-estar que o infortúnio da vida e do mundo lhe tinha apagado da memória. Foram anos de muito aconchego para ele e, também, para quem com ele conviveu mais de perto. Era um homem simples e bondoso que durante os últimos anos de vida ganhou ânimo para também dar alguma coisa aos outros. Era quem diariamente, depois do jantar, fazia a leitura de um conto ou de uma história que todos gostavam de ouvir antes do deitar…
7 comentários:
Um verdadeiro arquitecto do futuro...
Sem saber, originou um terno e edificante texto, que nos demonstra o imenso significado que um pequeno gesto pode alcançar, quando adicionado a uma vida deserta.
E uma pequena e simples história de adormecer é tão necessária, Drª. Margarida...
História de muita gente, da quase miséria silenciosa da grandes cidades, muito bem contada, como a Margarida sabe fazer.
Ah, e o dono do restaurante, homem de Viseu, sempre solidário, como é timbre do pessoal dessa grande metrópole...
Bonita estória. Bem contada. No meio de toda esta azáfama e egoismo, ainda existem pessoas que velam pelo seu semelhante.
Cara Margarida, está a pensar como eu, que o caro Bartolomeu anda com insónias?! Terá necessidade, também ele, de ouvir estórias de adormercer? Aquelas reticências todas..... :)
Uma grande história feita de pequenas histórias de gestos solidários, a pensão devida a uma vida de trabalho mas em que ainda não havia descontos, a hospedaria, o gesto nobre e discreto do homem de Viseu (que a tua mão direita não saiba o que faz a esquerda...), os jornais do quiosque a ajudar a passar as horas compridas das tardes, o lar e o seu acolhimento e por fim ele próprio que, afinal, ainda tinha tanto para dar. Belo texto, Margarida, um conto de Natal.
Cara Margarida
Mais um texto que mais uma vez, mostra à saciedade a sua vocação e a sua dedicação aos assuntos de carácter social que tantas vezes são aligeirados, por desinteresse e incompetência, pela segurança social. A história que nos conta de forma amena e conciliadora, revela, por um lado, a existência de pessoas que sentem os problemas dos outros e que como tal merecem o nosso maior agradecimento e por outro, a intensidade da desgraça que se abate sobre alguns dos nossos concidadãos, sobretudo neste período cujas consequências para os menos protegidos estão à mostra com tendência a piorar.
É sempre bonito o final de uma história quando ela acaba bem.
Caro Bartolomeu
Se esta pequenina história o ajudou a adormecer, então valeu a pena a sua leitura.
Não queremos que tenha insónias, porque depois dorme durante o dia e lá ficamos nós sem a sua companhia. Não pode ser!
Tenho impressão que a nossa Cara Catarina adivinhou!
Cara Catarina
Às vezes falta a inspiração para uma história bonita resultar bem contada. Ainda bem que gostou.
Esta história verídica é muita rica, quer pelas coisas más quer pelas coisas boas. É triste que se repita muitas vezes, quando no final somos forçados a concluir que não tinha que ser assim...
Caro Dr. Pinho Cardão
A gente lá de cima das "nossas" Beiras é gente boa...
Suzana
Tive dúvidas em chamar à história "Conto de Natal", mas teria ficado bem...
Hmmm... hmmm...
As minhas estimadas amigas, Catarina e Margarida, atribuíram um sentido diferente à minha frase "reticente".
Ou melhor... tenho a certeza que entenderam o "meu" sentido, mas... preferiram modificar-lhe a "cor".
;)))
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