Fui há dias a um funeral numa aldeia do interior, a umas dezenas de quilómetros de Castelo Branco, uma zona que foi este Verão profundamente afectada por incêndios devastadores que provocaram a ruína dos poucos que ainda vivem da agricultura e das florestas e o abandono dos mais novos que ainda por lá resistiam.
Estava um dia escuro e frio e pelo caminho contavam-se pelos dedos as pessoas que andavam nas ruas em cada povoado, as aldeias tão bonitas parecem desertas e só aqui e ali se via o fumo a sair da chaminé como parco sinal de habitantes.
No entanto, para o funeral juntou-se muita gente, em homenagem sentida a uma pessoa estimada e respeitada na sua aldeia e arredores. A pouco e pouco, silenciosamente, sem ruído de automóveis nem conversas de sociedade, foram chegando à igreja gelada, primeiro as mulheres, que iniciaram a reza do terço, num ritual lento e conformado, uma tomou o comando num gesto natural, as outras respondiam num coro monótono e organizado. Depois, para a missa, chegaram os homens, vindos do trabalho com botas grossas e roupas fortes, que se amontoaram na parte de trás da igreja.
Flores, havia de duas espécies. Apesar da importância da família enlutada, só duas coroas enviadas de amigos de Lisboa. Ficaram ali deslocadas no seu aspecto luxuoso e arrogante, assim armadas por cores e feitios, feitas por mãos desconhecidas para cumprir uma encomenda. As outras vinham em raminhos muito simples, amachucadas, acabadas de apanhar nos canteiros batidos pela chuva e pelo vento, mal seguras nas mãos enrugadas das mulheres que as chegavam ao peito num movimento para se proteger do frio.
Depois a subida a pé até ao cemitério, em silêncio de palavras, só o ruído do caminhar a arranhar a estrada sem bermas num compasso triste, uma fileira de gente envelhecida, visivelmente pobre, com as suas roupas gastas, os xailes grossos e pretos, os sapatos gastos e deformados que uma vez mais calcorreavam a ladeira na despedida de um dos seus.
Impressionou-me aquela timidez respeitosa perante a solenidade da morte, e ao mesmo tempo a naturalidade dos gestos a aceitar que essa é uma parte da vida, tão contrastante com o medo disfarçado e incómodo com que se cumpre o ritual da morte na cidade.
À noite, já em casa, estive a ouvir na televisão um debate político e não pude deixar de me perguntar o que é que aquele palavreado todo, tão rebuscado e cínico, tem que ver com aquela gente que encontrei durante o dia. Ali, na sua aldeia, na sua pobreza, no seu isolamento, a enfrentar uma velhice sem jovens, sem famílias, sem trabalho que os sustente, devem abrir a televisão e perguntar, pasmados, em que momento é que o mundo deixou de chegar até eles.
Estava um dia escuro e frio e pelo caminho contavam-se pelos dedos as pessoas que andavam nas ruas em cada povoado, as aldeias tão bonitas parecem desertas e só aqui e ali se via o fumo a sair da chaminé como parco sinal de habitantes.
No entanto, para o funeral juntou-se muita gente, em homenagem sentida a uma pessoa estimada e respeitada na sua aldeia e arredores. A pouco e pouco, silenciosamente, sem ruído de automóveis nem conversas de sociedade, foram chegando à igreja gelada, primeiro as mulheres, que iniciaram a reza do terço, num ritual lento e conformado, uma tomou o comando num gesto natural, as outras respondiam num coro monótono e organizado. Depois, para a missa, chegaram os homens, vindos do trabalho com botas grossas e roupas fortes, que se amontoaram na parte de trás da igreja.
Flores, havia de duas espécies. Apesar da importância da família enlutada, só duas coroas enviadas de amigos de Lisboa. Ficaram ali deslocadas no seu aspecto luxuoso e arrogante, assim armadas por cores e feitios, feitas por mãos desconhecidas para cumprir uma encomenda. As outras vinham em raminhos muito simples, amachucadas, acabadas de apanhar nos canteiros batidos pela chuva e pelo vento, mal seguras nas mãos enrugadas das mulheres que as chegavam ao peito num movimento para se proteger do frio.
Depois a subida a pé até ao cemitério, em silêncio de palavras, só o ruído do caminhar a arranhar a estrada sem bermas num compasso triste, uma fileira de gente envelhecida, visivelmente pobre, com as suas roupas gastas, os xailes grossos e pretos, os sapatos gastos e deformados que uma vez mais calcorreavam a ladeira na despedida de um dos seus.
Impressionou-me aquela timidez respeitosa perante a solenidade da morte, e ao mesmo tempo a naturalidade dos gestos a aceitar que essa é uma parte da vida, tão contrastante com o medo disfarçado e incómodo com que se cumpre o ritual da morte na cidade.
À noite, já em casa, estive a ouvir na televisão um debate político e não pude deixar de me perguntar o que é que aquele palavreado todo, tão rebuscado e cínico, tem que ver com aquela gente que encontrei durante o dia. Ali, na sua aldeia, na sua pobreza, no seu isolamento, a enfrentar uma velhice sem jovens, sem famílias, sem trabalho que os sustente, devem abrir a televisão e perguntar, pasmados, em que momento é que o mundo deixou de chegar até eles.
6 comentários:
".....uma fileira de gente envelhecida, visivelmente pobre, com as suas roupas gastas, os xailes grossos e pretos, os sapatos gastos e deformados...."
(Dra. suzana Toscano)
Cara Dra. Suzana há muitas fileiras de gente, como a que descreveu, pelo país inteiro.
Só ainda não estão envelhecidas, nem usam xaile preto.
Mas têm os sapatos gastos...
Sad, very sad.
abraço
Grande momento introspectivo, aqui nos traz, Drª. Suzana.
A genuinidade da gente e da vida.
E a questão final «...não pude deixar de me perguntar o que é que aquele palavreado todo, tão rebuscado e cínico, tem que ver com aquela gente...» é efectivamente pertinente, tanto numa aldeia paupérrima de Castelo Branco, como num bairro chic de Lisboa.
Maravilhoso texto, minha amiga!
Cara Suzana:
"À noite, já em casa, estive a ouvir na televisão um debate político e não pude deixar de me perguntar o que é que aquele palavreado todo, tão rebuscado e cínico, tem que ver com aquela gente que encontrei durante o dia.Ali, na sua aldeia, na sua pobreza, no seu isolamento, a enfrentar uma velhice sem jovens, sem famílias, sem trabalho que os sustente, devem abrir a televisão e perguntar, pasmados, em que momento é que o mundo deixou de chegar até eles".
Síntese magistral!...Sinto o mesmo sempre que vou à minha terra e sempre que penso nas pessoas que tão bem descreve. O linguarejar dos políticos não lhes diz nada, pelo que pura e simplesmente os ignoram. E,quando votam, ainda são menosprezados, normalmente considerados pelos bem pensantes, iluminados e esclarecidos como gente retrógada, se não mesmo reaccionária.E contrapõem o voto "progressista" da gente sábia da cidade ao voto ignorante da pobre gente do mundo rural.
Sinto muitas vezes o mesmo que a Suzana, mas faltou-me sempre o engenho e a arte para escrever o que a minha amiga escreveu.
Os familiares e os acompanhantes nunca mais se vão esquecer deste Natal.
A realidade das áreas rurais não tem mesmo nada a ver com os médios e grandes centros urbanos. As populações rurais, os pequenos agricultores sempre foram os mais negligenciados. Desde tempos remotos. E nada se alterou!
“…Depois a subida a pé até ao cemitério, em silêncio de palavras …"
"...Impressionou-me aquela timidez respeitosa perante a solenidade da morte …”
A descrição que faz desse funeral, Cara Suzana, pela simplicidade característica da maioria das pessoas das aldeias, traduz uma postura completamente contrária à assumida pela generalidade das gentes dos centros urbanos.
Sempre que vou a velórios ou a funerais o que presencio, para meu desconforto, é a animada cavaqueira entre pessoas que já não se encontram há tempos e que aproveitam a oportunidade para pôr a conversa em dia ou para tratar de assuntos, “porventura importantíssimos”, que não tiveram outro tempo ou espaço para serem debatidos. Murmúrios que vão subindo de tom até o deixarem de ser.
Questiono-me muitas vezes sobre tamanho desrespeito. Não compreendo porque não se faz aquilo que precisamente nos leva àquele lugar - homenagear o falecido e a sua família. E deparamos apenas com o ruído (demasiado alegre por vezes) em vez de recolhimento e “silêncio das palavras”. Dá que pensar.
Pois há, cara Pezinhos, infelizmente haverá, mas parece que aqui na cidade passam mais despercebidas ou então andamos sempre tão apressados que não reparamos neles.
Caro Bartolomeu realmente a linguagem adoptada na política começa a ser indecifrável para toda a gente, deve ser por isso que cada um interpreta à sua maneira de modo a criar a maior barafunda!
Caro Pinho Cardão, se não conseguem fazer-se entender nada melhor do que considerar que quem ouve é estúpido ou ignorante, assim não precisam de se esforçar por falar claro e directo e a culpa é sempre de quem votou, apesar de todos os esclarecimentos! A reacção, quando não for de revolta, só pode mesmo ser de distanciamento e de indiferença.
Catarina, não há dúvida de que esta data ficará sempre marcada por um grande desgosto para aquela família, até porque a perda de um traz associado o problema da solidão do outro que fica, ali sozinho, longe dos filhos, com o dilema de se afastar de tudo o que foi a sua vida ou de ficar apenas a contar cm o amparo dos vizinhos. Mas muitos outros já passaram pelo mesmo, é isso que aquelas caras e aqueles gestos de compreensão, a antecipar a angústia dos que viram lutar por uma vida melhor e para quem tudo se desmoronou.Sim, é ancestral, a modernidade é mesmo muito superficial.
caro demascarenhas, já aqui temos comentado, sobretudo o massano cardoso, como na cidade se faz tudo para esconder a morte e nos desabituamos de a encarar, por isso os funerais também são muitas vezes (nem sempre) um cerimonial de circunstância em que a companhia deve distrair do desgosto porque este se torna muito solitário. Mas nem sempre é assim, nas mesmas circunstâncias pude beneficiar de muito amparo e conforto amigo e sincero de partilha do meu desgosto, que nunca hei-de esquecer.
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