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quarta-feira, 1 de junho de 2011

Dia Mundial da Criança

Dia Mundial da Criança. Após o almoço, rápido, aproveitei uma hora de repouso numa esplanada debaixo da sombra de uma palmeira. A meu lado, um bando de miúdos, de mochilas às costas, invadiu, pacificamente, todo o espaço. Cada um deles empunhava freneticamente o seu gelado, com formas, tamanhos, cores e gostos diferentes. Ao sinal da chefe, sôtoura, puseram-se prontos a marchar, depois de o mais agitado ter gritado: - Em fila! Parecia um sargento, ao qual os outros responderam com um silêncio militar. Ao vê-los, disciplinados e escorreitos, lambuzando-se cada um à sua maneira, recordei-me da história da manhã.
A senhora trabalhadora, bonita e ataviada, entrou no consultório com um sorriso suave e meio intimidada, chamando-me logo a atenção. Depois da identificação disparei a pergunta sacramental: - A senhora tem andado bem de saúde? O sorriso alargou-se um pouco, sorriso meio constrangido, o suficiente para ver que havia qualquer coisa. – Como posso estar bem, senhor doutor? Tenho um filho de onze anos que me dá inúmeros problemas. – Logo vi que havia algo. Pensei. Coloquei-me na minha atitude de ouvinte para quem deseja falar. Era a primeira vez que a via, mas, mesmo assim, verifiquei que tinha sido criada uma relação empática, instantânea, capaz de a libertar de certas grilhetas. Foi fácil. Aliás é muito fácil fazer com que uma pessoa despeje o interior da alma, libertando-se, ainda que por instantâneos, do seu sofrimento. Há quem diga que dói menos quando se fala dos problemas. A senhora abalançou-se e contou que o seu filho de onze anos tinha retirado, recentemente, uma elevada quantia de casa, cinco mil euros, para, numa superfície comercial, adquirir muitos produtos e aparelhos. As peripécias não ficam por aqui. Vêm de longe. Fruto de um relacionamento, que durou quatro anos, teve-o aos vinte e dois anos. Quando soube que estava grávida pensou em abortar. Fez uma tentativa com uma injeção! Não resultou e foi aconselhada a utilizar outros medicamentos, mas não os chegou a tomar. O menino viveu com a mãe até aos oito anos e depois decidiu ir viver com o pai. De acordo com a mãe, a companheira deste encobria muitos disparates, os quais, ao chegarem aos ouvidos do pai, já tinham atingido proporções graves, a ponto de um dia o miúdo ter levado com um cinto e lhe ter sido rapado o cabelo, factos que caíram na alçada do Ministério Público. A senhora ia debitando as suas mágoas como se fosse uma torrente devastadora para o meu espírito. Não se cansou de referir o encanto do seu menino, quanto o adorava e que iria resolver o problema comportamental. Parece que previu as minhas palavras quando a interrompi ao fim de um longo silêncio de escuta a fim de lhe dizer que o filho necessitava de cuidados adequados. – Eu sei, senhor doutor. Tenho uma consulta marcada para a próxima semana. Disse com os olhos marejados de lágrimas. – Sabe, eu amo-o muito e vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para o ajudar a modificar-se, mas ele pensa que não gosto dele. – Mas como? Explique-me lá melhor. – O menino sabe da história da minha tentativa de aborto. – Sabe?! Mas quem é que lhe contou? – A mulher que vive com o pai. – Compreendo. Pensei logo que há segredos que nunca devem ser revelados, porque o tempo encarrega-se de os adulterar.
A conversa continuou durante muito tempo, ficando a conhecer um pouco mais das condições da criação da senhora, dramas e algumas tragédias da adolescência, uma das quais a persegue com um visível sentimento de culpa devida a uma morte de um amigo, por acidente de viação, quando o veículo que conduzia caiu a um rio invernoso e assassino. Uma sequência interminável de acontecimentos vindos das profundezas da sua infância e que continua nos dias atuais ao perpetuarem-se no comportamento do filho. A senhora é de fibra ao dizer que é uma mulher lutadora e que vai tratar da criança, porque o ama muito. Pediu-me desculpa por ter contado a sua história de vida, mas o facto de ser uma lutadora e otimista não significa que seja de aço. – Estava a precisar tanto de falar, necessitava imenso que alguém me pudesse ouvir e receber em troca algum alento e esperança. Disse, baixando os olhos. – Acha que a ajudei? Perguntei-lhe. – Muito. – Felicidades para si e para o seu filho, neste dia, que é Dia Mundial da Criança.
Acabo de escrevinhar esta crónica na esplanada, debaixo dos sons coloridos de largas dezenas de crianças felizes, de mãos dadas, aos pares, sob o olhar atento das vigilantes e professoras. Um ruído muito agradável.
O cheiro das tílias indicam-me tranquilamente o caminho para uma tarde de trabalho.

6 comentários:

Suzana Toscano disse...

Tantas culpas, meu Deus, essa mulher leva o mundo às costas.Talvez por isso não consiga meter o filho na ordem, por considerar que o comportamento dele também faz parte da expiação. Acho que vai ter aí um trabalho á sua medida, caro Massano, e que ela teve sorte em dar consigo.

Massano Cardoso disse...

Não vou, porque a minha intervenção foi pontual, âmbito diferente, exame médico obrigatório.
Sim, leva o mundo às costas, o dela e o de outros. Estou habituado a ver e a ouvir muitas coisas, mas a de hoje incomodou-me. Não consigo deixar de me incomodar sempre que entro na posse de certas vidas. À medida que vou envelhecendo tudo me parece mais complicado e doloroso. Presumo que é por esta razão que acabo por ter necessidade de as partilhar...

luis rosario disse...

A vida dessa mãe é um abismo no fundo da qual se encontra sempre um perdão para esse filho rebelde.
Sendo verdade o que este texto revela, posso concluir que o Profº Massano para além de um bom contador de histórias é também um bom médico, pois para o ser, é preciso infundir esperança.

JotaC disse...

Uma história de vida penosa como tantas outras, caladas no silêncio. Mas tudo indica que esta, em particular, terá um final feliz graças à sensibilidade e bondade de quem soube perscrutar, também, o estado de alma. Teve sorte a senhora...

JotaC disse...

Caro Professor Massano Cardoso, partilhei..

carla disse...

Senhor Professor Massano
Na minha qualidade de Advogada e Mulher, habituei-me, ao longo dos anos, a manter esta posição que aqui descreve e que coincide, in casu, com as dos Médicos: a de OUVINTE atenta.
De facto, com a vida actual, com o desagregar das famílias, com os amigos que são virtuais e se conhecem apenas na internet, com irmãos espalhados e cada um com a sua vida, com os pais longe, nos armazéns de velhos a que pomposamente se chamam agora "Lares de Terceira Idade", nós somos aqueles a quem muitos recorrem para os desabafos que saem inpunes de críticas, os exorcismos de asneiras que não serão reportados a ninguém, serão compreendidos, devidamente encaixados e suportados, em termos médicos ou legais.
Daí que eu não fique triste, mas mantenha a sensação feliz de que SIRVO!
Queira receber toda a minha simpatia...