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segunda-feira, 8 de agosto de 2022

“Três de copas” …

 Os homens do mar têm comportamentos interessantes. São mais calmos, introspetivos, possuem olhos profundos, exprimem-se em curtas falas, exceto quando os convidamos a contar histórias, os quais são exímios, quer na forma quer no conteúdo, como se fossem elos de sagas remotas que, conhecedoras das suas fraquezas, se alimentam da sua cortesia para se manterem vivas. Os longos meses passados nas embarcações, trabalho duro, leva-os a adquirir este tipo de conduta, mas também revelam comportamentos nada saudáveis. Quando entram no consultório, logo pela manhã, muitos emitem um bom dia enevoado por uma rouquidão tabágica associada ao característico cheiro. Nem lhes pergunto se fumam, passo para as seguintes, há quanto tempo e quantos cigarros por dia. Outro aspeto muito comum são as tatuagens, de um modo geral são toscas, mal produzidas, com motivos vários, embora outros apresentem imagens bonitas. Presumo que deverão ser feitas nos curtos períodos de descanso entre o silêncio do mar e o ruído ensurdecedor das máquinas.  

Três marítimos, de chofre, o primeiro com a laringe enrugada, não pelo sol, mas pelo tabaco, apresentava um dragão na região do deltoide, um deltoide espesso, duro, a conferir ao animal imaginário uma força descomunal, à espera de um dia transformar-se num dragão decrépito. Nem foi preciso perguntar se era do Futebol Clube do Porto, porque por baixo do bicho lia-se bem, “FCP”. Sorri. Há indivíduos para tudo. Foi feita por um profissional, segundo me disse. Quanto ao tabaco, os conselhos que lhe dei para abandonar deverão ter o mesmo efeito do que pretender apagar a tatuagem com água e sabão. Outro, simpático, mais culto, ocupando um cargo superior, perguntou-me se estava tudo bem, se não havia problemas. Disse-lhe que sim. Olhou-me meio perplexo. - Mas o quê? O que é que se passa? – O senhor teve um enfarte há quatro anos e fuma, não é verdade? - É verdade, mas diga-me o que é que se passa! – O senhor teve um enfarte há quatro anos e fuma, não é verdade? Repeti. Sim! Via-se a impaciência a crescer, queria saber o que é que se passava. - É isso mesmo homem de Deus, o senhor fuma, e quem teve um enfarte não deve fumar. Incrédulo, ainda repetiu mais uma vez a pergunta não querendo acreditar que aquilo que eu considerava como grave era para ele uma coisa sem importância, mas, depois de algumas explicações, profusamente detalhadas, ficou convencido da importância do seu problema de saúde e agradeceu-me efusivamente. Nesse momento não consegui ver qual o grau de satisfação e o sorriso da sereia desenhada no seu peito, mas, pela forma como reagiu, adotando a posição de peito inchado, decerto que a sua imaginada amada também terá sorrido e ficado mais tranquila. O terceiro, o mais alto da escala hierárquica, revelou todas as interessantes caraterísticas deste tipo de pessoal. Culto, bom contador de histórias, calmo, como convém a quem tem de tomar decisões, e ainda por cima no mar, revelou-se um bom fornecedor de matéria-prima para quem gosta de conhecer a natureza humana. Não lhe vislumbrei, à primeira vista, nenhuma tatuagem, mas ao auscultá-lo fiquei surpreendido. No peitoral esquerdo também tinha uma! Afinal, este pessoal, mesmo os mais habilitados, também têm os mesmos comportamentos. Não resisti e perguntei-lhe o porquê do "três de copas". - São as minhas três mulheres. Olhei para ele e, atendendo a que era ainda novo, a filha mais nova tinha sete anos, pensei, como é que iria resolver o problema se tivesse ainda mais um amor. Não é que fosse difícil desenhar o "quatro de copas", mas o que é que iria fazer ao "três de copas"? Não lhe perguntei. 

 

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