“Vós os que não credes em bruxas, nem em almas penadas, nem em tropelias de Satanás, assentai-vos aqui ao lar, bem juntos ao pé de mim, e contar-vos-ei a história de D. Diogo Lopes, senhor de Biscaia.
E não me digam no fim: - "não pode ser." - Pois eu sei cá inventar coisas destas? Se a conto, é porque a li num livro muito velho. E o autor do livro velho leu-a algures ou ouviu-a contar, que é o mesmo, a algum jogral em seus cantares.
É uma tradição veneranda; e quem descrê das tradições lá irá para onde o pague. (...)
D. Diogo Lopes era um infatigável monteiro: neves da serra no inverno, sóis dos estevais no verão, noites e madrugadas, disso se ria ele.
(...)Levantou os olhos para uma penha que lhe ficava fronteira: sobre ela estava assentada uma formosa dama: era a dama quem cantava.
(...) Só quando, à noite, no seu castelo, pôde considerar miudamente as formas nuas da airosa dama, notou que tinha os pés forcados como os de cabra.
(...) O barão olhou para ela: viu-a com os olhos brilhantes, as faces negras, a boca torcida e os cabelos eriçados.
E a mão da dama era preta e luzidia, como o pêlo da podenga, e as unhas tinham-se-lhe estendido bem meio palmo e recurvado em garras. (...)
“A Dama Pé-de-Cabra, Romance de um Jogral”, Alexandre Herculano
É uma tradição veneranda; e quem descrê das tradições lá irá para onde o pague. (...)
D. Diogo Lopes era um infatigável monteiro: neves da serra no inverno, sóis dos estevais no verão, noites e madrugadas, disso se ria ele.
(...)Levantou os olhos para uma penha que lhe ficava fronteira: sobre ela estava assentada uma formosa dama: era a dama quem cantava.
(...) Só quando, à noite, no seu castelo, pôde considerar miudamente as formas nuas da airosa dama, notou que tinha os pés forcados como os de cabra.
(...) O barão olhou para ela: viu-a com os olhos brilhantes, as faces negras, a boca torcida e os cabelos eriçados.
E a mão da dama era preta e luzidia, como o pêlo da podenga, e as unhas tinham-se-lhe estendido bem meio palmo e recurvado em garras. (...)
“A Dama Pé-de-Cabra, Romance de um Jogral”, Alexandre Herculano
Desde tempos imemoriais e nos mais diversos contextos sociais e religiosos, a figura da mulher apareceu associada a poderes ocultos, pactos demoníacos, artificios suspeitos para conseguirem o que pretendem sem perder a aparência frágil e secundária do seu papel na sociedade.
A força do homem é glorificada, as suas fraquezas atribuidas a conjunturas que passam à história como reforço do seu heroismo mal compreendido ou vítima de forças adversas. As mulheres, pelo contrário, quando saem da obscuridade, logo se procuram razões suspeitas, passos falsos, infidelidades, poder de sedução ou mesmo centelhas demoníacas que, por mais que se faça, sempre lá estarão escondidas, quem sabe se numa permanente desconfiança do estranho poder de gerar vida. Ao longo dos tempos, e não vale a pena estar aqui a citar exemplos, filmes, livros e episódios históricos de caça às bruxas e fogueiras, muitas das adversidades foram atribuidas a estas germinações femininas, a alma sempre hipotecada ao diabo de forma explícita ou inconsciente.
A facilidade com que o caso McKann se centrou na mulher tem reflexos deste imaginário, criando insidiosamente a ideia de que nela é que está o mistério, que o marido é apenas o manipulado neste horror, tudo associado ao ar loirinho e limpo, que não trocou as roupas por farrapos negros, não rapou o cabelo no seu desgosto, ná, tudo aquilo evidencia um poder oculto que é preciso deslindar.
Vamos então agora caçar-lhe o diário. Ah, o diário!, essa tentação de espreitar o pensamento mais íntimo, o mesmo é dizer que está lá o inconfessável. Sim, diz o imaginário colectivo, se alguém – sempre uma mulher – escreve um diário, é porque tem consigo própria conversas que não pode ter com mais ninguém. E também porque não as consegue calar, tão fortes serão os seus impulsos. Um diário é a confissão de que há uma personagem oculta, logo, há algo a esconder, logo, há culpa concerteza. Vamos então abrir esse segredo e lê-lo com os nossos olhos, nós que sabemos agora que nada daquilo é inocente...
Suspeito que o que vier a público do dito diário conterá tudo menos “confissões” de mortes e tramas mórbidas, mas vamos certamente espreitar dúvidas, emoções, amarguras e alegrias que vão ser lidas como provas irrefutáveis de que a criatura não é tão inocente como parece, pois se disse isto e aquilo, pois se pensou tal e tal, como se atreve? Quem faz um cesto, faz um cento, está à vista. Nem nos lembramos que só um tonto é que deixaria esses registos à mão de semear, se estivesse lá o segredo já não haveria diário de certeza absoluta. Não interessa, todos sabemos que o que faz crescer água na boca é a espreitadela à intimidade, é a entrega à voracidade das multidões de uma pessoa desprotegida, “eis a culpada!”, vamos despi-la e vêr nas suas formas simples o ferrete de Belzebu.
Até hoje, como se vê e por incrivel que pareça, as mulheres são vistas com os seus pezinhos de cabra, o sinal do domínio do Maldito, como a lenda portuguesa glosada por Alexandre Herculano mas que corria de aldeia em aldeia contada pelo jograis da Idade Média.
Suspeito que o que vier a público do dito diário conterá tudo menos “confissões” de mortes e tramas mórbidas, mas vamos certamente espreitar dúvidas, emoções, amarguras e alegrias que vão ser lidas como provas irrefutáveis de que a criatura não é tão inocente como parece, pois se disse isto e aquilo, pois se pensou tal e tal, como se atreve? Quem faz um cesto, faz um cento, está à vista. Nem nos lembramos que só um tonto é que deixaria esses registos à mão de semear, se estivesse lá o segredo já não haveria diário de certeza absoluta. Não interessa, todos sabemos que o que faz crescer água na boca é a espreitadela à intimidade, é a entrega à voracidade das multidões de uma pessoa desprotegida, “eis a culpada!”, vamos despi-la e vêr nas suas formas simples o ferrete de Belzebu.
Até hoje, como se vê e por incrivel que pareça, as mulheres são vistas com os seus pezinhos de cabra, o sinal do domínio do Maldito, como a lenda portuguesa glosada por Alexandre Herculano mas que corria de aldeia em aldeia contada pelo jograis da Idade Média.
Não há discurso de igualdade, de dignidade, de progresso, que apague esta crença de tempos imemoriais. Será que a civilização nunca deixará de ser uma fina camada de verniz?
11 comentários:
Cara Suzana:
Termina, dizendo que "não há discurso de igualdade, de dignidade, de progresso, que apague esta crença de tempos imemoriais. Será que a civilização nunca deixará de ser uma fina camada de verniz?"
Pois também creio que não.
E sou tanto mais pessimista quanto, no caso concreto relatado, são os jornalistas, que se têm como vanguarda da civilização, que divulgam e comercializam, através das audiências, tais fantasmas.
A humanidade evoluiu tecnicamente, mas o homem (e a mulher) continua lobo do homem (e da mulher).
Aliás, se reparar, todos os dias, a todas as horas, e em todos os telejornais, lá estão mulheres jornalistas a lançar as suspeitas mais macabras sobre a mãe da miúda desaparecida.
Com apoio e aplauso dos editores, sub-directores, directores adjuntos e directores e toda a direcção instalada!...
A civilização não é senão, de facto, "uma fina capa de verniz". Infelizmente!...
Seria inevitável que na cultura portuguesa assim fosse, marcada que foi pelas "religiões do livro". Conforme nos vamos afastando dessas tradições religiosas, a mulher vai perdendo o carácter demoníaco. Embora, diga-se em defesa dos antigos, o perder dos pés de cabra não a tornou mais fácil de aturar.
É verdade, Pino Ca~dão, até estive para referir no post que, no que se refere à rapidez com que se condena,as mulheres não se inibem mais que os homens, às vezes até são piores quando se trata de outra mulheres.
Caro Tonibler, as raízes religiosas da nossa cultura podem explicar muito, como diz, mas não é exclusivo, a Eva associada à serpente já tem a mesma génese. Quanto ao mau feitio, huumm, é exagero manifesto, aposto que queria dizer forte personalide das mulheres...;)
Afinal cara Suzana, as Mulheres são vítimas e carrascos! De si próprias. É ver as jornalistas que, segundo o comum amigo Pinho Cardão, vociferam contra a "pobre" mãe! Afinal a Dama Pé de Cabra, a malvadez que sobre ela se abate,não é apenas fruto da maquiavélica mente do homem! Também o é da mulher!
E já agora: noutros casos, quando a suspeita, a acusação, a suspeita se lança sobre um homem, ( veja-se o caso do sargento Costa, e de outros Costas que diariamente surgem nos jornais) que as motiva e quem as lidera? A mulher? Não! Os homens? Não! Apenas a verdade, ou a realidade? Só porque o visado suspeito, é homem?
Só face à mulher tudo é vontade de vasculhar o seu íntimo, a sua fragilidade? A mulher não comete erros, crimes, corrompe ou simula? Julgo que sabe, ou já percebeu, que não sou machista, sectário, ou insensível! Se não sabe, afirmo categoricamente que não sou!
Mas não enveredo, precipitadamente, por caminhos ou juízos fáceis!
A mulher tem largos créditos sobre a civilização e o homem! Mas não me parece que o caso referido seja, de tal, exemplo feliz!
(Hesitei escrever isto, por poder ser mal entendido, numa nota curta, sem enquadramento, sujeita a interpretações precipitadas. Mas entendi que, honestamente, tinha de o dizer! Era mais fácil estar quieto, ó se era!)
Cara Drª Suzana, a questão com que termina esta excelente reflexão e consideração, resume em grande parte a conclusão retirável de alguns aspectos deste rocambolesco caso. Só acrescentaria "opaco" ao verniz.
A lenda que a cara Suzana escolheu para ilustrar o seu post, não podia ser mais de acordo com o tema do mesmo e merece um pequeno acrescento... D. Diogo Lopes, casou com a dama e deste casamento nasceram Dona Sol e D. Inigo. Uma noite, após o jantar de um soberbo javali que havia caçado e de muitos gomis de vinho, D. Diogo Lopes, lançou ao seu alão um soculento osso. Antes que o seu cão preferido desse a primeira dentada, a podenga da Dama pé-de-cabra, saltou-lhe ao pescoço, tendo-o morto de um golpe. D. Diogo surpreendido e estarrecido com a cena, benze-se e persigna-se. Nesse momento a sua mulher transfigura-se e começa a elevar-se do chão, levando consigo, presa num braço D. Sol e estendendo longamente o outro braço, alcançou D. Inigo que estava junto do pai. Perante isto D. Diogo, agarra o filho com a mão esquerda e traça no ar por duas vezes o sinal da cruz. Este gesto fez sua mulher soltar um longo gemido e largar o braço a D. Inigo Guerra, elevando-se e saindo por uma fenda no tecto, não voltando a ser vista.
A história repete-se inefávelmente.
Caro Bartolomeu, fazia falta contar aqui a lenda toda, assim fica muito mais claro o contexto pelo qual fiz a associação, muito obrigada.
Caro RuiVasco, prazer em revê-lo!Fez muito bem em não ter calado o seu comentário, que não me parece nada machista e precisamente levantas a polémica que me levou a mim hesitar em escrever o post. Também não tenho qualquer preconceito maniqueísta, homens e mulheres têm palmerés idênticos nas câmaras de horrores praticados, infelizmente não será por aí que se distiguem. O que eu quis dizer, e mantenho, é que a maldade masculina é vista como uma linearidade (se assim se pode dizer) que não se aplica aos casos femininos em geral. O exemplo que deu do Sargento até o ilustra bem mas há que considerar que o caso foi deslindado com relativa facilidade. No caso de que falo, havendo, se é que há, fundamento para suspeitas, elas deveriam recair sobre os dois pais, mas a opinião publicada rapidamente se centrou na figura da mãe só porque sim, só porque este maquavelismo (suposto, insisto, nada está demonstrado)"condiz" mais com uma mente feminia e os tais pés-de-cabra do que com a atitude de um homem, que ou é mau ou é bom. No fundo, há uma presunção negativa de que uma mulher, por muito sonsa que pareça, é capaz de tudo. É com isto que jogam as notícias e é isto que "cola", preparando-nos para o pior. Repare que não estou defender que sejam inocentes ou culpados, não faço ideia, este caso nunca me lavaria a supor, nem em pesadelos, o que para aí se tem aventado. Mas, admitindo que pegamos nos jornais sem saber de nada, a ideia que fica é a de que a mulher é que permite todas as suspeitas, não sendo santa é certamente pecadora. Mas, para estes juízos, as próprias mulheres estão na linha da frente, muitas vezes são muito mais cruéis no julgamento das outras do que os homens, não as excluo de forma nenhuma.
Cara Suzana,
Parabéns por este Post. O desafio às convenções é, simplesmente, brilhante.
Dizia o Bartolomeu no "Ambiente meu bem", que ao Anthrax pertencia a bateria (nem ele sabe como é verdade! Infelizmente, nunca me deram uma e não foi por não pedir com muita convicção). Mas não há nada como desafiar as velhinhas convenções... eu que o diga. :)))
Caro Anthrax, isso de não lhe terem dado uma bateria parece-me uma incompreensível injustiça! ))
Tem razão quanto às convenções,ou às crenças, "verdades" tão profundamente entranhadas na nossa cultura que nem damos por que elas estão lá...
Permitam-me que requeira um ponto de situação, para que me consiga contextualizar...
A bateria a que os caros, autora e comentador se referem e que foi negada, apesar da veemência dos insistentes pedidos, ao caro Anthrax, imagino que na sua infância. Refere um conjunto de instrumentos de percussão, de forma cilíndrica, cujo fundo ou fundos são formados de peles tensas, sobre as quais se rufa com as mãos ou duas baquetas? A 1ª e 3ª pessoas do singular do verbo bater conjugado no condicional, ou uma fileira de peças de artilharia?
Susseguem-me o espírito por favor e garantam-me que é a primeira.
Caro Bartolomeu,
Pode ficar sossegado. Estava a referir-me à primeira.
Já vou conseguir adormecer em sossego esta noite, agradeço-lhe caro Antrax.
:))
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