“A alma da gente é coisa suja e o que vale é que a alma não tem cheiro”. Uma curta frase construída pelo poeta dos heterónimos, que a colocou, no decurso de um conto, na boca de uma mulher, quando perorava perante um juiz e jurados sobre as razões que a levaram a matar o marido. Não pretendo focar a minha atenção sobre a condição e a vivência femininas, mas sim a sujidade da alma humana. Às tantas a alma humana é mesmo suja, capaz das mais profundas baixezas e, às vezes, também, de uma certa grandiosidade como a querer negar aquela condição. Mas até onde pode chegar a sujidade? Longe, tão longe que a própria realidade consegue ultrapassar a imaginação. Que o diga um colega meu. Sentado numa esplanada com ar meio acabrunhado, e sem vontade de falar, contrariando as suas tendências sociais, levou-me a questioná-lo sobre tão estranha atitude. Vacilou, como vacilam todos aqueles que, sentindo-se incomodados, não pretendem perturbar os outros com as suas vivências e reflexões. Mas não foi difícil enfiar-lhe o espiche na sua tradicional e rica fonte de conhecimentos cujo máximo prazer é partilhá-los com alegria e amor, embora neste caso tivesse a perceção de que o que iria sair não era nenhum jato de um bom vinho mas mais vinagre ou mesmo fel. – Conta lá o que aconteceu. – Não é coisa boa. – Talvez não, mas pode ser de alguma ajuda, porque as mais inesperadas experiências são chaves magníficas para entrar em mundos novos. – Novos? Velhos e sujos! – Está bem, pode ser que assim seja, mas antes quero ouvir-te. Suspirou, mergulhou os lábios na cerveja, mais para emudecê-los do que para a saborear e começou a contar a história de um velho familiar que tinha adoecido. - Aparentemente não deveria ser grande coisa, mas nesta coisa de velhos nunca se sabe. Como se trata de uma pessoa misógina, desconfiada, incapaz de expressar o pensamento e as emoções como qualquer um, fugindo frequentemente ao diálogo, e incapaz de debater seja o que for, exceto fulgores incompreensíveis de preconceitos, e de falsos saberes enraizados e incrustados numa mente arrogante, fiquei preocupado com a intensidade das queixas. Expliquei-lhe o que deveria fazer, mas argumentou de todas as formas para evitar sujeitar-se a quaisquer exames. Mas, como deves saber, nestas coisas o meu temperamento explode como a lava de um vulcão que desperta momentaneamente de longos períodos de hibernação. Nem imaginas o escabeche que tive de fazer, tudo porque fiquei preocupado, como é óbvio, e, sendo da família, arroguei-me no direito de o interpelar desta forma. Depois de muitas voltas consegui com que fizesse os exames. Escusado será dizer as agruras do colega que teve de o realizar. Incompreensíveis no contexto atual. Claro que tive de comentar as minhas desventuras e sensações perante tão inopinada atitude. Quase que me apeteceu afirmar que ao longo da minha vida nunca tinha visto ninguém tão desconfiado e tacanho. Tudo leva a crer que as coisas, talvez, não sejam tão más como pensava, apesar do exame não ter sido completado dado a mais que esperada falta de colaboração. Uma pena. Mas espero que não venha a ser necessário repeti-lo e, caso seja, só em ambiente hospitalar, o que não vai ser pera doce. Foi então que interrompi a conversa dizendo-lhe que histórias destas temos às carradas. – Pois temos! Mas nunca recebestes um telefonema como eu recebi. – Explica-te melhor. – No dia seguinte, à noite, liga-me. Foi a primeira vez que me telefonou em toda a vida, apesar de ter havido inúmeras ocasiões em que deveria ter feito. Perguntei o que é que se passava. Mas nada. Repeti várias vezes, tentando dialogar. Olho para o mostrador do telemóvel e vejo que está ligado. Aliás, tinha a perfeita sensação de que do outro lado estaria a ouvir-me, até que, por fim, uma voz baixa, fria, recalcada, lenta, raivosa, cheia de ódio começou: ”vá à.... vá à.... meeeeeerda”. Estupefacto, nem queria acreditar no que estava a ouvir. Entretanto desligou o telefone. Não resisti e tentei ligar-lhe. Obtive um sinal de interrompido, como se tivesse, após ter desligado, ficado com o auscultador na mão a saborear um fel acumulado de anos. Repeti a ligação e ouvi o sinal de chamada. Imagino ter-lhe interrompido o degustar do insulto e da raiva, porque ao perguntar, com a voz mais natural do mundo, quem era, disse-lhe: - Sou eu! Sou eu! Ficou de tal modo surpreendido a ponto de começar a gaguejar e a identificar-me de várias maneiras, tudo atabalhoadamente. Não foi difícil, pelas perguntas feitas à pressa, numa tentativa de as contextualizar dentro do quadro clínico, que o senhor tinha sido apanhado mais pelo destino do que propriamente por mim. Comecei interiormente a rir e a responder às suas questões. Enquanto procedia a uma lengalenga de ocasião, sem muito sentido, deveria estar a pensar que o destino é perigoso demais para o provocar. - Então eu ainda acabei de o insultar sem saber que era eu - sim porque desconhece que os números dos telefones ficam registados nos telemóveis -, e ele liga-me logo de seguida. Isto deve ser coisa do outro mundo. Conhecendo como o conheço, não tenho dúvidas de que a sua interpretação deverá ter andado ao redor de explicações exotéricas.
Devias ter ouvido aquele meeeerda! Antes de dizer o quer que fosse, advertiu-me, como se adivinhasse o meu pensamento: - Não! Não foi dita ao jeito da usual e nacional interjeição, nem tão pouco foi qualquer manifestação de virilidade do género dizer uma em cada três a palavra merda. Nada disso. A alma do desgraçado é mesma suja. Aproveitando um curto silêncio disse-lhe: – Às tantas situação é capaz de vir a agravar-se ou mesmo surgir outras coisas. E se isso acontecer o que é que vais fazer? Sorriu e perguntou: – Que é que achas? – Se bem te conheço não és homem para fugires à merda mesmo a proveniente da alma de um familiar. – Pois é. Apesar de não ter cheiro, incomoda mais do que a outra. Não achas? Respondi-lhe – Esta cervejinha soube muito bem, não soube?
Devias ter ouvido aquele meeeerda! Antes de dizer o quer que fosse, advertiu-me, como se adivinhasse o meu pensamento: - Não! Não foi dita ao jeito da usual e nacional interjeição, nem tão pouco foi qualquer manifestação de virilidade do género dizer uma em cada três a palavra merda. Nada disso. A alma do desgraçado é mesma suja. Aproveitando um curto silêncio disse-lhe: – Às tantas situação é capaz de vir a agravar-se ou mesmo surgir outras coisas. E se isso acontecer o que é que vais fazer? Sorriu e perguntou: – Que é que achas? – Se bem te conheço não és homem para fugires à merda mesmo a proveniente da alma de um familiar. – Pois é. Apesar de não ter cheiro, incomoda mais do que a outra. Não achas? Respondi-lhe – Esta cervejinha soube muito bem, não soube?
2 comentários:
Os médicos nunca irão contextualizar com os doentes!
Os médicos... bom, os médicos podem ser de inúmeras maneiras, ter inúmeras formas e imágens, tantas quantas as almas dos doentes conseguem identificar, tantas quantas as almas dos doentes necessitam que eles tenham.
O médico pode ser entendido como um demónio, um merdas, ou... um mago, um santo... um Salvador.
Não será somente a alma suja do doente a julgar-lhe a imágem, creio. Talvez a almasocial, aquela que coloca a alma do médico, num limbo permanente, de onde o doente por vezes necessita que ele saia, mas onde a alma ética do médico o mantem... aprisionado.
;)
Há pessoas que já nasceram do contra. Para essas nada está bem. E nem assim assim. Tudo está errado. Vivem com rancor, com desconfiança, são insociáveis, carrancudos, mal agradecidos, não gostam de ser ajudados, etc etc.... Nunca, até agora, levantei a hipótese de lhes atribuir uma alma suja! Interessante conceito!
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