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segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A nova morte de Tutankamon


Vi ontem a notícia sobre as vicissitudes que ainda está a sofrer a múmia de Tutankamon. Não costumo partilhar de superstições nem crendices, mas a verdade é que me senti como se estivesse a devassar o que devia ser respeitado e não consigo alcançar o grande benefício que virá do facto de terem tirado o corpo do seu sarcófago, deixando-o exposto ao público, numa redoma de vidro, tapado com um lençol.
Pode haver muitas razões científicas, parece que se receava que a múmia se fosse deteriorando com o tempo, a humidade e mais mil e outros factores que, no entanto, não impediram que ela resistisse uns míseros milhares de anos…
O facto é que se assistiu em directo àquilo a que poderemos chamar uma profanação, à exposição do que outras crenças e outras ciências tinham cuidadosamente ocultado, talvez precisamente para que, no imaginário “para todo o sempre”, o belo rei conservasse eternamente a sua imagem majestosa, os seus ouros, a sua túnica e, sobretudo, a sua juventude.
Podia ter-se talvez garantido a preservação do corpo sem o expor, dizendo ou calando que se tinha feito, mas respeitando na essência o sentido transcendente do ritual que o determinou. Mas não. Sejamos práticos. De um lado, a grandiosidade do que é terreno, o sarcófago e a máscara de ouro. De outro, miserável, negro, carcomido, o esqueleto de um ser humano que morreu de uma infecção na perna.
Tutankamon será talvez preservado, mas como um pobre mortal. Tínhamos que matar a ilusão da perenidade, tínhamos que matar outra vez o rei.

12 comentários:

André A. Correia disse...

Muito bom, este post, que com a devida vénia irei linkar...

Suzana Toscano disse...

Seja muito bem vindo, caro André Correia e muito obrigada!

Margarida Corrêa de Aguiar disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Suzana
Tutankamon antes de ser uma peça histórica da antiguidade egípcia, também foi um ser humano, um homem, que viveu uma vida e morreu, rodeado certamente da sua família e amigos na alegria, na tristeza e na saudade. Algo que compreendemos muito bem.
Entre o homem Tutankamon e o exemplar histórico da sua múmia, foi esta que vingou, secundarizando o homem, naquilo que é o respeito que nos deveria merecer a sua morte.

Suzana Toscano disse...

Margarida, parece que a nossa civilização só consegue conviver com despojos, com objectos sugados da sua simbologia, do seu sentido impenetrável. Há que abrir, dissecar, radiografar, reconstituir, mostrar o que a técnica consegue vencer, vejam lá se não está igualzinho ao que devia ter sido? E isso que interessa, digo eu? Agora não temos segredos. Nem Tutankamon. Só a máscara.

Carlos Monteiro disse...

Ah... mas é muito simples cara Suzana: Dá um dinheirão enorme em bilhetes. Eu próprio já estive cara a cara, separado por uns quatro dedos (e um vidro) com o homem mais poderoso que já existiu, existe ou existirá: Ramsés II. No museu do Cairo fazia-se fila para comprar o bilhete à parte e ver a sala das múmias. Também se fazia fila para ver o espólio de Tutankamon que é absolutamente impressionante, e já na altura a múmia não estava dentro do sarcófago, como hoje ouvi dizer na TV. Exporem-na foi apenas mais uma medida neste circo que mistura cultura e curiosidade, enfim tudo aquilo que tem sido a glória e ruína do Egipto, para quem conhecer minimamente a sua história.

Suzana Toscano disse...

Pois essa é uma boa explicação, caro monteiro, a mim é que me estava a custar admitir, o que é que quer? Acho que tinha um fraquinho por Tutankamon, é uma coisa do liceu, quando estudávamos este rei dentro do seu sarcófago a protegê-lo dos olhares ímpios, mais a maldição para dissuadir quem ousasse tirar-lhe o sossego do túmulo, como reforço da sua protecção. Não sei se ainda quero ir ao Egipto...

Anthrax disse...

Cara Suzana,

Compreendo lindamente o seu ponto de vista, simpatizo com ele (o ponto de vista), no entanto, considero de extrema importância - e pela positiva - a decisão de tirar a múmia de dentro do sarcófago.

A minha perspectiva não se prende com uns meros motivos comerciais, mas sim com o trabalho de um homem que pretende devolver pedaços da história ao seu país. Estamos a falar do Egipto tal como é actualmente. Estamos a falar de um país, com uma religião extremamente agressiva e que, na sua vertente do fundamentalismo, não só não respeita os milhares de anos de história dos seus povos como também ainda pretende apagar quaisquer vestigios do passado.

Por muito arriscada, e contestada, que possa ser a decisão de expôr a múmia do Faraó é uma forma de relembrar um povo da fantástica história que tem. Para nós, é pouco importante que se trate de um rude golpe no nosso imaginário, mas para eles é muito importante que reconheçam, aceitem e tenham orgulho nas suas raízes sem recurso a fantasias.

Eles precisam do Faraó deles mais do que nós, daí que eu tenha o maior respeito pela decisão tomada.

invisivel disse...

Pesando as coisas desta maneira, de um lado do prato a profanação do sarcófago e do outro lado o benefício que pode ter para aquele povo relembrar a sua bela história -como diz o caro antrahx, subscrevo este último ponto visto.

Suzana Toscano disse...

Cara Anthrax, a questão é que eu não vejo em que é que esta acção em concreto possa contribuir para um melhor esclarecimento e grandeza histórica de Tutankamon. Que exponham as suas riquezas, que divulguem as suas práticas religiosas, que as expliquem e lhes dêem dignidade, não tenho qualquer dúvida. Mas a explicação que ouvi foi de carácter científico e os ritos funerários no Egipto Antigo estão mais que esclarecidos, há múmias expostas e estudadas (pelos vistos até Ramsés II, como conta cmonteiro), então, para quê expor esta, fora do seu sarcófago real?

Carlos Monteiro disse...

Cara Suzana,

A "grandeza" de Tutankamon é um lenda dos nossos dias. Tutankamon foi um rei menor. Mas não é isso que está em questão. Se tenho alguma reticências em que ver cadáveres expostos, a alinhar pelo seu raciocínio poderia também privar as pessoas de verem tantas outras coisas que contribuem para a massificação da cultura e do conhecimento da nossa história.

Quando voltei de lá vim com um conhecimento muito mais rico sobre a história do Egipto graças ao que vi e graças (impressionante) à cultura vastíssima sobre o assunto que os guias turísticos têm e que transmitem (inclusivamente, por curiosidade, mais tarde investiguei o assunto e constatei que para ser guia turístico no Egipto é preciso estudar de forma muito séria História).

Quanto a outro comentador: "Profanação" é algo exagerado. Não vi qualquer profanação de nada. Pelo contrário vi muito cuidado na conservação de tudo, o que até do ponto de vista económico faz todo o sentido; se estragarem aquilo dão cabo de uma fonte de riqueza importantíssima.

No Vale dos Reis ou das Rainhas por exemplo, encontra todos os dias cientistas de todas as nacionalidades a estudar todo aquele espólio. Calculo que um cientista terá todo o cuidado em não "profanar" mas sim em conservar.

A mim, cara Suzana, não me inquieta a exibição da múmia.

Carlos Augusto Marques Pinto disse...

Trata-se de uma questão complexa, por depender de numerosas vertentes - éticas, religiosas, culturais e outras -, que me parece estar a ser complicada ...