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quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Quando a democracia atrapalha


Diz-se que a democracia é o governo do povo pelo povo. Mas diz-se também que não há democracia sem o reconhecimento do império da lei. A Constituição dos EUA começa exactamente por "We the people...", significando que o superior estatuto da nação americana é fruto da vontade suprema do povo.
Pois é essa mesma Constituição que a democracia americana se apresta para mandar às malvas. Com assinalável dose de criatividade jurídica, deve reconhecer-se.
O caso não deixa de ser curioso.
O Artigo I. secção 6. da Constituição dos EUA reza assim:
  • "No Senator or Representative shall, during the Time for which he was elected, be appointed to any civil Office under the Authority of the United States which shall have been created, or the Emoluments whereof shall have been increased during such time; and no Person holding any Office under the United States, shall be a Member of either House during his Continuance in Office".

Acontece que Hillary Clinton, a anunciada futura secretária de Estado da Administração Obama, foi eleita para o Senado em 2006. Aprovou durante o seu mandato uma proposta de aumento do vencimento de secretário de Estado de 186 600 dólares para 191 300 dólares. Estaria, por isso, impedida pela Constituição de exercer as funções para que o presidente eleito a nomeou. Porém, os conselheiros de Obama e de Hillary já têm a solução para resolver o problema: nada mais, nada menos do que pagar à futura secretária de Estado o vencimento anterior. Assim se cumpre a vontade do povo, pois ninguém tem dúvidas que é esta a vontade plasmada naquela norma da Constituição...

Exemplos como estes são verdeiramente inspiradores. Quando a democracia atrapalha...

E ainda há quem se queixe das interpretações criativas das leis por parte dos nossos juristas!

7 comentários:

Adriano Volframista disse...

Caro JFAlmeida

Algumas notas importantes e que são quase provocações:

a) O salário da Sra Clinton, como do Sr Paulson são o único rendimento de trabalho que podem auferir. Os bens imobiliários e mobiliários que possuam, são entregues a um "blind trust" que os gere sem a intreferência dos mesmos e sem os consultar.
b) O Sr Paulson era CEO da Salomon Brothers e ganhava mais de USD$ 60.000.0000 ano. Veja o que ganha agora e quanto, nestes últimos três anos perdeu de acréscimo ao seu rendimento.
c) Recorda-se da polémica sobre os ordenados dos cargos públicos em Portugal? Costumam ser os mesmos que gostam muito do sistema político e administrativo norte americano, desde que sejam obliterados alguns "pormenores" de somenos importância.
d) Nesse sentido, era importante restaurar o sentido de serviço público que se perdeu no dia 25/04/74
Cumprimentos
João

Anónimo disse...

Estou particularmente consigo, joao, quanto ao que escreve em c) e d)do seu comentário, aliás nada provocatório.
O episódio "hillariante" que aqui trouxe vale somente pela facilidade com que, mesmo naquela democracia que todos têm como modelo, se "adapta" a lei fundamental às circunstâncias do momento.
Temos muito disso por aqui, também. Embora nos últimos tempos tenha prevalecido a técnica, que a existência de uma maioria absoluta e uma oposição oblíqua facilitam, de quando a democracia atrapalha...muda-se a democracia. Que o mesmo é dizer, mudam-se as regras mesmo as que só incomodam á luz da conjuntura, do momento, do interesse prevalecente.
Este espaço é curto para elencar as situações em que isso se verificou nos últimos anos.

SC disse...

Caro Ferreira de Almeida,

Este é um daqueles casos, habitualmente poucos, em que estou em completo desacordo consigo.
Sou um "leigo" em direito mas, ainda assim, atrevo-me a dizer que a lei existe para resolver um problemas e não para os criar.
A lei que invoca, parece-me fácil de concluir, que foi criada com o objectivo claro de não permitir que um senador possa ser financeiramente beneficiário de uma decisão na qual participou.
Não terá certamente o objectivo de marcar pessoas para não ocupar determinados cargos porque passaram por outros. Isto sim, seria completamente contrário aos princípios da igualdade e da democracia.
Ela refere especificamente a questão do salário, é só este o problema.
Ora, não havendo esse benefício financeiro estará o problema resolvido. E não vejo em que é que a democracia e o primado da lei foram atropelados.
A "letra" da lei não é a única coisa que importa na lei. É pelo menos o que eu ouço habitualmente aos juristas...
Aliás, uma interpretação à letra, no limite, poderia levar a que ninguém quisesse votar aumentos de vencimentos, uma vez que significaria que os votantes nunca mais poderiam ocupar esses cargos. E parece-me que há um princípio qualquer da interpretação da lei que diz que uma interpretação da lei que leve a uma situação absurda ou contrária aos princípios e objectivos da própria lei é uma interpretação não válida. Mas aqui já estou a meter a foice em seara alheia. Isto já não é o meu terreno.

Anónimo disse...

Meu caro SC, só posso dizer-lhe, depois de ler o seu comentário, que não o sendo, daria o meu Ex.mo Amigo um excelente jurista!

Pedro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Meu caro Paulo,
Nenhuma ironia da minha parte na resposta a SC. O raciocínio que SC desenvolve é mesmo próprio de um bom jurista. Não o disse por graça, constatei-o.
Aliás, a solução a que se chegou para resolver o imbróglio é exactamente esta para que SC aponta, e como pode ver nos inúmeros escritos que o caso tem motivado, tem o selo de garantia dos melhores de Harvard e de Yale.

Mas vamos então aos esclarecimentos sobre a minha posta de pescada.
Nas democracias que se baseiam em Constituições mais ou menos rígidas, as normas não podem, ou pelo menos não devem ser afeiçoadas às conveniências do momento. A norma do artigo 1º, secção 6 que tive o cuidado de citar é clara ao não consentir o exercício de cargos na Administração quando senador ou membro da câmara dos representantes tenha aprovado aumento de vencimentos. É o que estipula, clara e expressamente.
O que SC veio - e bem - comentar é que o que a norma diz deve ser lido no plano do que a norma deve dizer por apelo ao espírito que presidiu à sua estatuição, ou se se quiser, por reconstituição do pensamento do legislador. Só que o legislador aqui é o constituinte, isto é, é o povo. E o dever ser, se não coincidir com o que é, decorre de um due process de alteração da norma perante as duas câmaras.
Já agora, para que a posta de pescada seja servida sem espinhas, fica a transcrição, em tradução livre, do artigo V da Constituição dos EUA:

"Sempre que dois terços dos membros de ambas as Câmaras julgarem necessário, o Congresso proporá emendas a esta Constituição, ou, se o poder legislativo de dois terços dos Estados o pedirem, convocará uma convenção para propor emendas, que, em um e outro caso, serão válidas para todos os efeitos como parte desta Constituição se forem ratificadas pelos poderes legislativos de três quartos dos Estados ou por convenções reunidas para este fim em três quartos deles, propondo uma ou outra das formas de ratificação. Nenhuma emenda poderá, antes do ano 1808, afectar de qualquer modo as cláusulas primeira e quarta da Seção 9, do Artigo I, e nenhum Estado poderá ser privado, sem o seu consentimento, da igualdade de sufrágio no Senado".

Poderia, meu caro Paulo, dizer algo mais sobre os riscos que se corre quando entendemos que as normas superiores do ordenamento podem ser objecto desta plasticidade interpretativa, por muito razoáveis e criativas que sejam as soluções a que conduz. Mas isso daria pano para mangas longas que aqui naturalmente não cabem. Mas creio que esse risco é intuitivo.

Pedro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.