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domingo, 13 de setembro de 2009

Comichão

Não sei o que se está a passar. Começa a ser muito frequente as interpelações arrogantes por parte de doentes que exigem soluções para os seus problemas como se tivesse a obrigação de curar tudo e todos. Após os estudos necessários, que na maioria dos casos acabam por comprovar a benignidade da situação ou a ausência de problemas patológicos complexos, ouço, frequentemente, frases do género: - Oh doutor (o senhor caiu em desuso) tem que resolver o problema. Isto não pode continuar assim! Ao mesmo tempo, presenteiam-me com caras típicas dos cidadãos quando solicitam o livro de reclamações nas repartições públicas ou quando começam a refilar com o funcionário das finanças.
Tento explicar que o que está na base da situação são problemas de outras esferas, psicológica, social e laboral. Mas é difícil dizer isto, porque reagem, prontamente, com desprezo e desconfiança. Nem querem ouvir. Devem pensar que todos os problemas de saúde têm soluções na ponta da caneta ou na ponta do bisturi, recusando a que está na ponta da língua. Nem querem ouvir. Presumo que deve ser fruto de todas as informações sobre as conquistas na área da medicina e da biologia que dão a entender que tudo tem solução. Mas não é assim. Às tantas, penso: - Aqui estão bons clientes para o professor Bambo, para a medicina homeopática, para serem mesmerizados ou mesmo para irem à bruxa. E Deus queira que vão! Ao menos fico aliviado. Claro que, quando adoecem de verdade, acabam por voltar, mais humildes e mais recetivos aos conselhos.
Tentar explicar que são poucas as situações de cura, muitas as que são passíveis de controlo eficaz e outras, infelizmente, não controláveis, é muito complicado. Além deste fenómeno, realço, igualmente, a crescente negação face à morte. Ninguém, ou quase ninguém quer morrer. Veja-se o caso de um desabafo e ameaça de processar médicos por negligência (!) devido à morte da mãe aos 95 anos, vítima de pneumonia num hospital. – Veja lá doutor, deixaram-na morrer com uma pneumonia. Não a trataram devidamente. Vou processá-los. Até me arrepiei. Tudo isto no mesmo dia em que uma doutoranda - que está a fazer um trabalho no âmbito da prevenção quaternária, ou seja, como evitar as complicações dos atos médicos, já que se torna necessário proteger as pessoas das agressões, manipulações e comportamentos dos profissionais da saúde, tamanha é a “medicalização”, a “farmacolização” e automedicação induzida nos nossos dias -, me leu uma curta passagem de um livro que tinha acabado de adquirir. Tratava-se de um diálogo ocorrido em 2050. Um senhor, de 95 anos, foi ao médico que lhe disse que tinha chegado àquela idade com muita saúde e em boa forma, graças à medicina, mas agora tinha de lhe dar uma má notícia, “tinha apenas seis meses de vida” e, por isso, deveria preparar os seus para o nefasto evento. O senhor, jovem de 95 anos, ficou triste e muito incomodado com a notícia. No entanto, ao ouvir o médico a dizer-lhe que havia ainda uma esperança, disparou: - Então posso continuar a viver? – Sim. Poder pode, desde que aceite sujeitar-se a uma transplantação do espírito. Não sei se fez ou não, porque estamos ainda em 2009. Quem chegar a 2050 que obtenha a resposta.
Para terminar, aconselho a leitura da novela “Ninguém desaparece completamente”, inserida no livro “Buracos Negros” de Lázaro Covadlo. Nesta obra, Adalberto Arisamendi começa por amputar o dedo grande do pé, a conselho do seu amigo, Manuel Arteaga, estudante de medicina, para escapar à tropa. Não só não escapou como começou a sofrer uma doença “gangrenosa” que, periodicamente, exigia amputação, quando sentia uma estranha comichão. Após a saída da vida militar, já sem um pé, para uma “companhia especializada em centralizar empresas de centralização”, o quadro agravou-se. Quando começava a sentir a coceira, tinha que amputar aquela parte do corpo. Adalberto Arisamendi passou a ser conhecido por senhor Arisamend-i, novo nome dado pelo chefe devido à falta do pé. Como não estava completo, separou-lhe a letra i do apelido. Mal a coceira voltava, novo corte, nova amputação, nova descida de andar, até chegar a ser chamado por senhor Ari e, depois de perder o apelido, passou a ser conhecido pelo primeiro nome, Adalberto, passando a Adal e acabando na cave como o senhor A, reduzido “à sua atividade intelectual, privada dos estímulos provenientes dos sentidos e das sensações do corpo”, limitando-se a perscrutar a "essência do tempo e a meditar sobre a verdadeira substância do Eu”. Sem quaisquer preocupações, a não ser quando sentiu o velho formigueiro a avançar pelo lobo frontal, a última coisa que lhe restava.
Não sei porquê mas começo a sentir uma coceira. Espero que não tenha nenhum significado em particular...

Salvador Massa

4 comentários:

Bartolomeu disse...

Não desapareça por favor, caro Professor SALVADOR MASSANO CARDOSO!!!
O Senhor é dos já raros Homens completos que o país ainda possui.
Não me obrigue a pedir o livro de reclamações!!!
;))

PA disse...

De tanto nos empurrarem a cabeça para debaixo de água, começamos a aprender a respirar debaixo de água...

Será que nos falta aprender a morrer, dentro de um Sistema de Saúde insensível à Vida dos doentes e até insensível à Vida dos Médicos e outros profissionais de Saúde... ?


Caro Professor, temo que a coceira aumente, enquanto houver "silêncios" e "caixas de pandora" por abrir.

Por enquanto, estamos todos - doentes e profissionais de saúde - do mesmo lado.

Do lado, da Vida.
Mas também do lado da Dor e da Perda .... incompreendidas.



Como eu gosto de ler o que escreve, Professor, mesmo que assine só com um ..."S" ...


abraço grande

Pinho Cardão disse...

Salvador Manuel Correia Massano Cardoso. Assim, por inteiro. Sempre!...

Suzana Toscano disse...

Caro Prof. Massano Cardoso,desculpe mas acho que isso é uma grande fita, o meu amigo habituou-nos que a sua reacção aos incómodos não é a de amputar o que lhe desagrada mas olhá-la bem de frente e dar-lhe luta, por isso ponha lá o MassaNO que é o que faz sentido. Quanto à reacção dos seus doentes, também não percebo a sua estranheza, francamente. É que o treino colectivo hoje em dia é para se ocultar a verdade, não fazer diagnósticos aborrecidos que não permitam concluir por uma garantia absoluta da cura, com calendário de progresso ao lado. De preferência sem o doente se maçar.Não, isso já não se usa, o meu amigo confronta-se com doentes modernos e práticos, toma-lá-o-problema-passa-para-cá-a-receita, não gostam de quem lhes fala com prudência e alguma hesitação sobre o desfecho do caso. Vai ver que é tudo uma questão de modernidade...