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sábado, 17 de julho de 2010

O senhor A.

- Dá-me licença senhor doutor? Posso entrar? Uma voz inconfundível, o senhor A., com os seus esplendorosos 94 anos, acaba de entrar no consultório. Um homem cheio de histórias, algumas de encantar, que me delicia com a sua intelectualidade e vivacidade espelho de um ex-desportista de diferentes especialidades. Simpático, lúcido e muito educado, revelou-me, mais uma vez, que anda preocupado com a sua obstipação. Neste caso, o problema reveste-se de uma particularidade porque se trata de um ostomizado desde há 28 anos. Anda meio neura, é assim que costuma dizer: - Ando neura, senhor doutor, com estes intestinos, os raios dos gases acumulam-se e depois sobem-me à cabeça. Ó senhor doutor, eu peço-lhe muita desculpa, mas os gases sobem até à cabeça, não é verdade? – Não, senhor A, não sobem. – Não sobem?! Então por que é que fico com tonturas? - Isso é outra coisa e nós vamos resolvê-la.
Voltando à obstipação, o senhor A, que está a pedir constantemente desculpa pelo que vai dizer, disse-me meio apreensivo que por vezes tem de massajar o abdómen ao redor do saco para empurrar as fezes. – Peço desculpa senhor doutor por lhe perguntar mas é perigoso fazer isso, não é? E a sua face mostrou alguma apreensão. Para ilustrar o problema, levantou-se e fez o gesto que costuma fazer, pressionando a parede ao redor do saco. - Ó meu amigo, não faz mal nenhum, pode fazer isso à vontade. A máscara de ansiedade desvaneceu-se imediatamente e voltou a sentar-se.
Nunca vi ninguém mais sequioso de informação do que o senhor A. Pede sempre desculpa antes de fazer uma pergunta ou explicar algo. Quer saber tudo, que lhe explique os fenómenos e que dê respostas às suas inquietações. Admiro esta capacidade de interpelação. A conversa continuou até que colocou novamente a máscara de inquietação, sem perder o sorriso, e, com uma voz forte, desfasada da sua idade cronológica, disse-me: - Ó senhor doutor, peço-lhe imenso desculpa, mas diga-me uma coisa, não acha que esta coisa – entretanto colocava a mão sobre o saquito -, possa ser, possa ser... – Possa ser o quê, senhor A.? Eu vi onde queria chegar, se não podia ser um cancro. – Tenho receio de que possa ser um cancro! – Ó meu amigo, cancro teve o senhor há 28 anos e matou-o com uma “pintarola do caraças”. Aqui, o meu amigo ficou de boca aberta e rematou: - Ah! Eu bem desconfiava. Sabe, quando fizeram isto, não me disseram o que tinha, mas, peço-lhe desculpa por dizer isto senhor doutor, foi coisa que não me tivesse passado pela cabeça na altura. Entretanto, libertou uma orgulhosa gargalhada de satisfação pelo facto de ter sido ele quem matou o cancro e não o inverso. Orgulhoso da proeza, mais uma a somar a tantas outras, já estava a vê-lo nas suas tertúlias familiares e amigas a comunicar a sua vitória sobre um cancro que teve há 28 anos. A conversa não ficou por aqui, aliás é impossível travar a sua sede de conhecimento. – Senhor doutor, peço-lhe desculpa, mas ainda gostava de lhe fazer mais uma pergunta, não se importa, pois não? – Claro que não. Diga lá. – Sou um amante de doces, o meu vício – já não fumo há trinta anos -, é comer biscoitos. Peço-lhe desculpa estar a falar-lhe do meu vício, mas é mesmo um vício, comer biscoitos. A minha nora diz-me que faz mal. – Faz mesmo mal? Mas antes de lhe dar a minha opinião, explicou-me que o culpado foi o avô, pasteleiro e inventor das arrufadas de Coimbra e que fez fortuna com a pastelaria. Disse-lhe que dependia no número de biscoitos. - Oh, só um ou dois por dia. O meu guarda-vestidos – foi mesmo assim, guarda-vestidos -, está cheio de latas e mais latas de biscoitos. Todos os dias escolho uma lata e tiro um ou dois biscoitos. – Se for um ou dois não faz mal nenhum. Coma os biscoitos, mas tem de me prometer uma coisa. – Diga, diga, senhor doutor, faça favor. – Tem de beber água, muita água para não entupir as tripas com os biscoitos. – Ah, sim senhor, vou fazer isso e tomar o xarope para a prisão de ventre todos os dias. O senhor doutor, pode estar descansado, vou fazer isso e depois venho-lhe dizer como me sinto. À saída, para e volta-se para trás, apalpando o saquito com a mão, que se via perfeitamente através das calças alceadas, como se fosse um cowboy canhoto: - Oh senhor doutor, estou tão feliz por saber que matei o cancro, e há 28 anos!

1 comentário:

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Professor Massano Cardoso
Como podem ser importantes as palavras que se dizem. Que diferença podem fazer as palavras de um médico!
Agora o Senhor A. já tem um grande feito para contar nas suas tertúlias, uma vitória que merece ser festejada, ainda maior se pensarmos que aconteceu há 28 anos!