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domingo, 3 de outubro de 2010

"Eufemismos"

Ainda hoje, tantos anos passados sobre o período negro da tuberculose, é possível ouvir explicações do género: “Foi uma fraqueza que tive quando era jovem”, a propósito, por exemplo, de alterações cicatriciais ou calcificações observadas nas radiografias do tórax.
Uma fraqueza! Houve e continua a haver repúdio em pronunciar tuberculose, palavra maldita, sinal de debilidade, de inferioridade e fonte de crueldade biológica. Os doentes escondiam muitas vezes o que tinham e evitavam falar no assunto com a cumplicidade dos amigos e familiares de forma a não serem relegados para a classe dos párias.
A história da medicina revela situações deste género, caso da lepra, por exemplo, talvez, de todas as doenças, a mais humilhante e marginalizadora que se conhece. A única doença em que o doente era considerado morto em vida. Expulsos da sociedade perdiam todos os direitos. Mais recentemente, a Sida/VIH herdou parte desse legado em que o repúdio e o “sujo” irmanavam ao ponto das pessoas fugirem dos doentes como se fossem leprosos. Entretanto tudo muda, e ainda bem. Transformada em doença não letal, a Sida/VIH passou a adquirir o estatuto de cronicidade permitindo que os atingidos possam fazer o seu dia-a-dia normalmente e atingir uma esperança de vida avantajada. Mas há outra doença que reúne alguns dos aspetos já enunciados, o cancro. Interpretado como sinal de debilidade biológica, e anunciador de sofrimento e morte lenta, leva a que muitos escondam a doença. Mas não é preciso fazer isso por várias razões. São passíveis de tratamento, muitos são curáveis e não podemos, nem devemos, considerá-los como sinónimo de morte, embora em determinadas situações haja muito por fazer, mas lá chegaremos.
Para provar algumas das afirmações basta dizer que há doentes que já tiveram um cancro, dois cancros e alguns já vão no terceiro, todos diferentes. Se isto acontece é porque se curaram dos primeiros. Uma doença que é potencialmente curável merece que a tratem pelo seu nome evitando quaisquer eufemismos que não são condicentes com o progresso e mudança das mentalidades. E quando as mentalidades mudam, aumenta a esperança e a expectativa de um futuro melhor e mais risonho. Esta reflexão, e breve análise, não são mais do que uma reação às notícias quando alguém morre por cancro: “Fulano morreu vítima de doença prolongada”. Doença prolongada? Por que é que não dizem: “Morreu de cancro”?, e se quiserem digam mesmo qual o tipo de cancro. Quando começarmos a ouvir chamar os bois pelos nomes estamos a dar um contributo sério para contrariar tabus que fomentam certos aspetos sociais e comportamentais negativos, ao ponto de dificultarem a compreensão do fenómeno, o seu diagnóstico precoce, a prevenção e até a cura! Felizmente há pessoas com coragem e lucidez suficientes para tentar mudar esta forma de ver e falar de cancro. O recente caso de António Feio e do seu cancro do pâncreas é elucidativo.
Vivemos cada vez mais; o que determina que, dentro das inúmeras formas de morte, há duas que têm maior probabilidade de nos atingir: cancro e doenças cardiovasculares. Uma realidade a que não pudemos fugir; mas espero que no futuro, caso a causa de morte seja o cancro, se possa ouvir: “Vítima de cancro, sicrano faleceu aos cem anos. Era o seu quarto tumor...”

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