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domingo, 29 de dezembro de 2013

"Caverna"

O ritual foi criado de forma rápida. Surpreendeu-me, não pela qualidade da alimentação, nem do espaço, pouco cuidado a recordar velhos locais do passado, mas pela qualidade das pessoas, simples, espontâneas, criativas, com linguagem fechada aos nossos dias e vendo o mundo por cristais manuais e coloridos de épocas desaparecidas. Um local que me levava a voar nas conversas que ouvia a outros tempos e a outras épocas. Uma espécie de caverna, onde aprendia e desfrutava histórias e historietas. Acabei por registar em desenhos da minha memória muitas personagens. Aos domingos esperava-os ou encontrava-os. Seres que me inspiravam e divertiam. Com o tempo alguns iam desaparecendo. Talvez por terem morrido, talvez por não conseguirem deslocar-se ou por não terem dinheiro para pagar a refeição do almoço de domingo, talvez a única extravagância, que apesar de não ser dispendiosa, longe disso, começou a causar mossa nos bolsos pobres de gente pobre mas rica de sentimentos e de histórias. O declínio vinha-se acentuando desde há alguns meses, e o dono já tinha manifestado desagrado pela situação, dando a entender que o melhor era voltar a emigrar. Não dei a importância devida, embora me tenha pedido há semanas o meu telefone para avisar de qualquer contratempo nesta época do ano. Pensei que deveria ser para descansar alguns dias. Hoje era dia de ir à minha "caverna" conviver com personalidades retiradas diretamente das profundezas do povo, rico, único, fonte de inspiração e cheio de histórias, que contavam e partilhavam alto e em bom som de mesa para mesa sem receio de serem ouvidos, pelo contrário, até ficava convencido que gostavam mesmo de serem ouvidos. Eu gostava, e eles já deveriam ter percebido a minha atenção, embora nenhum tenha lido o que escrevi sobre eles. Hoje fui à "caverna". A porta estava fechada com um aviso, "encerrado por tempo indeterminado". Fechou-se um portal para o passado. Vou deixar de ouvir e de conviver com gente do povo, gente interessante e rica em emoções, histórias e interpretações.
Eu sei que a crise é violenta, mas chegar a este ponto violenta-me também, porque perco um precioso bem. Nem um espaço pobre, simples, pouco cuidado e barato escapou às garras de miseráveis que a esta hora devem estar a conspirar em luxuosos restaurantes desfrutando opíparos repastos e continuando a ofender pobres humanos.

Para onde terão ido os donos? Reemigraram com toda a certeza...

3 comentários:

Bartolomeu disse...

«... pessoas, simples, espontâneas, criativas, com linguagem fechada aos nossos dias e vendo o mundo por cristais manuais e coloridos de épocas desaparecidas.»
... cristais manuais e coloridos de épocas desaparecidas... não tenho memória de alguma vez ter lido ou ouvido outra expressão que, aplicada no mesmo contexto, o definisse de forma tão exata.

Catarina disse...

Provavelmente reemigraram... Nada escapa aos abutres.

Um bom Ano Novo, caro Prof.

Abraço

Massano Cardoso disse...

Obrigado, Catarina. Igualmente para si um Ano Bom com saúde...