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terça-feira, 17 de junho de 2014

D. Lúcia


D. Lúcia tinha a sua venda de legumes e fruta no mercado municipal há muitos anos, desde que o marido morrera e ela decidira pegar na vida tal e qual ele a tinha deixado. Mesmo depois dos filhos criados não largou o negócio, tenho que me entreter, dizia ela, o que faria em casa a olhar para as paredes, eu nem gosto de televisão, aqui sempre converso e passa o tempo a correr.
Era uma das primeiras a chegar de manhã, fizesse frio ou calor, chuva ou sol, e quase a última a arrumar a banca de metal, à espera das clientes mais tardias, escusavam as coisas de ficar para o dia seguinte, dizia sempre a D. Lúcia, com o seu sorriso firme, a atrasar o momento de ir embora.
A sua figura esguia, de cabelo muito curto e branco, sempre vestida de negro, parecia fazer parte daquela paisagem de cor e movimento, a marcar a diferença, não, a marcar o propósito, a decisão de ocupar o seu lugar por direito próprio, sem ter que mudar nada de si própria.
Em contraste com as suas vizinhas de lugar, nunca falava alto e movia-se suavemente, os gestos medidos, o olhar atento a pesar a fruta na balança, limpando as mãos ao avental antes de rabiscar as contas a lápis, num bloco eterno que lhe saía do bolso.
Mas D. Lúcia sofria do coração, volta não volta tinham que a levar ao hospital, exames e mais exames e a conclusão era sempre a mesma, difícil continuar a adiar a operação. Mas ela, teimosa, quando lhe perguntavam pela data dizia que havia lista de espera, que estava constipada, que era Inverno, enfim, desfiava desculpas porque não queria arriscar a convalescença longa, morrer ainda é o menos, escandalizava ela as vizinhas de bancada, o pior é ficar em casa sem nada que fazer.
Mas no sábado passado a banca estava vazia. Não era vazia, não senhor, a banca estava deserta, um espaço livre sem vestígio da sua utilidade, nem balança, nem caixotes, nem raminhos de cheiro pendurados na janela, nem pilhas de sacos plásticos sempre arrumados num canto ao fim da manhã de domingo.
A Lúcia? A vendedeira do lado já está habituada à pergunta, as clientes voltam sempre no início do Verão, Sim, foi operada há um mês, foi ao engano, disseram-lhe que era só para por uma pilha, coisa de dias, mas foi mesmo de peito aberto, coitada, sim, correu muito bem, poucos dias depois já estava em casa, o médico diz que não podia ter sido melhor, com tanto adiamento. Ah, o lugar vazio, pois é, a filha veio cá e levou tudo, diz que não valia a pena manter a venda, era uma despesa com a licença, além disso a carrinha estava velha, a balança estava velha, a mãe vai nos 72 anos, seis meses em casa a recuperar, depois mete-se o Inverno, não vai voltar, para quê? É assim, decidiram assim, vai um ponto da vida que já não somos senhores de decidir nada, os filhos é que mandam. Sim, a operação correu bem mas a filha anda preocupada, diz que a mãe não quer comer, vira a cara e não diz palavra, não percebem aquela tristeza, pobrezinha.

16 comentários:

Bartolomeu disse...

Este texto faz-me recordar o título de um livro do escritor Miguel Esteves Cardoso referente à vida e que começa "Como é Linda..." e que me vou forçar a não transcrever na totalidade, não vá o diabo tecê-las e vir ainda a ser responsabilizado por um surto epidémico de gastrites e figadites.
;)
Mas o assunto que a cara Drª Suzana aqui traz, é deveras pertinente, atual e transversal; quer para os pais idosos que se vêm de um dia para o outro atirados ou, descartados da sua sempre eterna labuta/útil, como para os filhos que olham para os pais, acham que já deram quer à sociedade, quer à família mais do que o suficiente para merecerem um descanso digno e protegido, mas não possuem disponibilidade de meios monetários, nem de tempo, nem estabilidade emocional e física para lho conceder.
Mas, esta geração que hoje se encontra com a belíssima idade dos 70/80 anos, foram perfeitos mágicos e fadas. Quando tiveram a idade que hoje têm os filhos, trabalharam imenso e duramente, trataram da casa do marido e dos filhos e ainda dos pais idosos.
O tempo chegava, o corpo aguentava e os meios não eram escassos... eram inexistentes. Sobrava a força da vontade e do amor.

Diogo disse...

Vejo que temos aqui uma escritora que pede meças ao Dr. Massano Cardoso. Parabéns pelo excelente texto.

Suzana Toscano disse...

Caro Bartolomeu, até que a vida se acabe, é um exercício de adaptação permanente, ou para tratar dos outros, ou porque é preciso deixar que outros tratem de nós à sua maneira e, tantas vezes, esta é a fase mais dura da vida.

Suzana Toscano disse...

Obrigada, caro Diogo, esse é mesmo um grande elogio :)

Unknown disse...

Belo texto. Pela amostra escreve melhor que a Alice Munro que ganhou o Nobel; e já são alguns portugueses que acham o memso.

Bartolomeu disse...

Compreendo aquilo que a cara Drª Suzana diz mas, não considero que a fase mais dura da vida, seja aquela em que outros tratem de nós.
:)
Estou a falar sério!
Repare, cara amiga; desde que nascemos até uma idade cada vez mais indefinida, alguém trata de nós e, esta não é definitivamente a fase mais dura das nossas vidas.
Por um motivo fundamental; porque tratam de nós com amor.
O meu filho mais novo passou a viver sozinho há 2 meses atrás.
Achou que tinha chegado a altura em que queria ter o espaço dele.
Mas até decidir (e aqui entre nós, muito em segredo, a mãe mantem-se atenta a alguns dos cuidados que lhe dispensava, relativamente à alimentação, roupa, etc. - as mães são assim...) estou certo que lhe sabiam muito bem os cuidados que lhe dispensávamos. Eu... era mais no sentido de o aconselhar nos negócios e nas decisões, apesar de raramente estarmos em sintonia mas, no entanto, acabando por adotar em parte as minhas sugestões. Agora, se mais tarde os meus filhos irão ter disponibilidade e vontade para tratar de mim e da mãe... isso é difícil de prever. Até lá, espero reunir condições para, por iniciativa própria, entrar para uma residência para idosos. Eu e a minha mulher, convergimos nesse desejo, não nos incomoda nada a ideia. Eu, para ser sincero, desde que tenha ao dispor esta coisa da internet e os blogues se mantenham, estou nas minhas "sete quintas"; a minha mulher, desde que o lar tenha uns canteiros onde possa esgravatar e plantar, é o suficiente para se sentir feliz.
;))

SLGS disse...

Em 1º lugar, Drª. Suzana, os meus sinceros parabéns pelo excelente texto e a sua oportunidade.
Para si, caro Bartolomeu, vão também os meus parabéns por ambos os comentários e pela sua lucidez. Não posso, no entanto, deixar de referir que, quanto ao 2º comentário, sendo e estando nele tudo o que na nossa velhice desejamos ( eu estou nos 70/80 ) o acho muito optimista. Subscrevo-o, como calcula, mas acho-o muito pouco provável. Desejo, no entanto, que assim seja para todos na altura própria. Esperemos.

Bartolomeu disse...

Sabe, caro SLGS; habituei-me ao longo da vida, desde muito jovem, a equacionar e a relativizar ao máximo (de acordo com as minhas capacidades cognitivas) todas as questões relacionadas com a vida, as relações interpessoais, familiares, etc. E sem concluir absolutamente nada (continuo a relativizar e a tentar perceber basicamente, tudo) percebi que desperdiçamos uma parte significativa da nossa existência, tentando ser superiores em alguns aspetos aos outros que tal como nós, vão trilhando o caminho que umas vezes lhes é imposto e outras, lhes é dado escolher.
Portanto, "isto" a que o meu Amigo chama lucidez, eu prefiro designar por vivência, sem no entanto ressalvar que em raras alturas, eu próprio me considero lúcido, apesar de perceber que o mundo e a humanidade, vivem uma vertigem coletiva.
Se alguém merece ser parabenizado, é o meu amigo, que atingiu já uma idade considerável e demonstra possuir - não só no presente comentário, como nos anteriores - uma capacidade de raciocínio invejáveis. Que Deus o mantenha assim por longos e bons anos! (mesmo que o meu Amigo seja ateu)

Bartolomeu disse...

Porque Tudo nasce com uma criança e porque cada criança traz ao mundo, em si mesma, um mundo novo; assim sejamos nós capazes de a olhar nos olhos e ver esse mundo, dedico ao estimado SLGS, este tema, que considero uma das mais belas canções de amor à criança que cada um de nós mantem viva, ou adormecida dentro do peito.
https://www.youtube.com/watch?v=GG4RYCu_gGc
;)

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Suzana
Mais um maravilhoso conto! Mesmo na velhice a vida pode dar muitas voltas, a D. Lúcia pode muito bem voltar para os seus legumes e frutas. É muito nova para ficar em casa...

Suzana Toscano disse...

Caro Bartolomeu, vejo com muita alegria que se adaptou muito bem ao tempo livre de obrigações profissionais e que continua firme no seu espírito curioso e positivo que sempre animaram aqui o 4r! Permita-me no entanto menos confiança do que a que demonstra quanto às dependências da idade, uma coisa é os nossos filhos aceitarem, melhor ou pior, o apoio e ajuda que lhes damos com todo o amor, outra é vir a encontrarmo-nos na absoluta dependência de alguém depois de uma vida vivida. É claro que podemos ter a sorte de não nos fazerem sentir o peso, de termos sempre uma mão a apoiar o andar ou uma visita para ajudar a passar as horas, mas há esse incontornável da falta de poder de decidir, do tem que ser que nos seja imposto, o que vejo, mesmo com todo o amor do mundo, e que não há como impedir esse sentimento de prisão. O meu pai dizia "estou prisioneiro do meu corpo" quando se viu imobilizado, e não há nada no mundo que o compensasse disso, da perda de autonomia para as coisas mais simples. Tudo será muito mais cruel sem amor, tem toda a razão, mas que visto daqui, desta fase da vida em que vivo de perto a dependência total da minha mãe, como vi a do meu pai, dói-me todos os dias que cada gesto que lhes falte seja uma privação que sentem. Os filhos caminham para a autonomia, aqui é ao contrário, sem remédio. No resto, partilho inteiramente da sua maneira de ver quanto à importância de decidir enquanto podemos dispor das nossas vidas.
Caro SLGS, muito obrigada pelo seu comentário, vamos vendo e aprendendo uns com os outros, a pensar sozinhos é muito mais difícil de ver claro, cá contamos com a sua experiência e as reflexões que queira ter a amabilidade de partilhar connosco.
Caro António Cristóvão, não li ainda nada de Alice Munro embora goste muito de contos, hei-de ler para avaliar :)), muito obrigada.

Suzana Toscano disse...

Margarida, pode ser que assim seja, conheci-a bem e é uma mulher muito determinada e independente, não sei como farão para a convencer a desistir do lugar da fruta, mas se venderam a carrinha e a balança.... Se ela voltar virei logo aqui contar a novidade!

Bartolomeu disse...

O assunto sobre o qual tecemos considerações: a dependência de terceiros para as coisas mais simples do dia a dia, não é, do meu ponto de vista, passível de se enquadrar numa única forma de ver, de sentir e de agir. Foi a esse ponto que pretendi chegar quando referi a minha experiência pessoal. Precisamente porque tenho a mesma perceção que a cara Drª Suzana, relativamente à questão do tempo. O nosso estimado Amigo, Professor Massano Cardoso, também já em diversos post, aqui, se referiu a esse malandro que nos come os dias, nos faz envelhecer e nos rouba as perspetivas. Contra ele e os seus efeitos, nada podemos; tal como o penedo de Sísifo, estamos condenados a ser empurrados por ele até ao cimo da "montanha".
A capacidade de decidir e a possibilidade de o fazer, estão também condicionadas e não acrescem qualquer maisvalia à situação. Inexoravelmente, o tempo passará e se não tivermos a sorte de nos dar uma solipampa durante o sono, o mais provável é em determinada altura, virmos a ser dependentes, com melhor ou menor qualidade, com maior ou menor atenção, do cuidado de terceiros.
Mas... o facto de a Terra ser redonda, portanto, finita em termos de área e de recursos, e os seres humanos se reproduzirem à velocidade... do tempo, não existe uma alternativa, a não ser aquela preconizada por Hoody Allen; a de nascermos com um dispositivo interno programado para que, em determinada altura da vida... nos desliguemos automaticamente.
Isso é que era de valor!
;))

Bartolomeu disse...

Não sei há quanto tempo nasci
Se ontem, se hoje ou amanhã
Não sei se já era antes de ser
Não sei se foi aqui, se ali
Não sei se era noite, ou manhã
Mas sei que a cada dia é um renascer!

Nada sei de mim, e do mundo
Nada sei dos homens; dos astros
Nada sei da razão que os anima
Não sei se há céu, ou um fosso imundo
Diabos, ou voos de anjos castos
Mas sei, que algo nos comanda lá de cima.

Não imagino o tempo nem a grandeza
Não sonho paraísos, nem infernos
Não recrimino a bondade e a vileza
Mas vivo - isso sei-o - tempos eternos.

(Bartolomeu in: «Sei que nada sei, portanto, mantenho-me na espectativa»)
;)))

SLGS disse...

Caros Drª. Susana e Bartolomeu:
MUITO OBRIGADO

Suzana Toscano disse...

Excelente, caro Bartolomeu, um belo fecho para a nossa conversa!