Raramente perco um livro dos poucos autores que me habituei a admirar e com quem tive a honra e o excepcional proveito de partilhar muitas horas de trabalho e reflexão. A amizade de algumas décadas que me une a Vitorino Magalhães Godinho não me inibe de falar da sua admirável capacidade de pensar os problemas da sociedade portuguesa – quantas vezes “incomodamente” – e de reflectir sobre os desafios do nosso tempo de uma forma que já não habitual.
Poucas horas após o anúncio do acordo sobre o novo Tratado Reformador da União Europeia, lancei mão do mais recente ensaio do Mestre, acabadinho de publicar pelas Edições Colibri: A Europa Como Projecto.
Para os que se esgotam na polémica sobre o referendo ao Tratado, trata-se de uma boa oportunidade para rever os referenciais fundadores da ideia de Europa e sobre eles reflectir sobre o presente e o futuro dessa mesma ideia. Aqueles que desejam encontrar fundamentos para a sua opção referendária saem favorecidos – o autor é um acérrimo defensor da consulta popular. Os que, pelo contrário, dispensam essa consulta e propõem a ratificação parlamentar encontrarão também aí um alerta para a necessidade de compatibilizar os “pequenos passos” com as “grandes ambições”.
No fundo continuamos esse esforço de encontrar o balanço e o ritmo mais adequado à transição de uma Europa dos Estados e das Nações para uma Europa dos Cidadãos.
Uma proposta para reflectir, … incomodamente.
23 comentários:
Caro Professor:
Um livro oportuno.
Sobre o referendo em causa tenho sentimentos mistos.Por um lado, penso que seria bom fazer uma consulta; por outro, penso que, para além da legitimação formal que criaria, a consulta seria inútil, porque as respostas levariam apenas em conta uma nebulosa global e não resultariam de um conhecimento desejável de toda a tecnicidade que envolve o tratado.
Aliás, creio que nem sequer os deputados conhecerão toda a sua especificidade.
Na última hipótese, seria brincar ao referendo.
No fundo, acho que os referendos se deverão destinar a confirmar ou negar questões mais simples, de resposta mais imediata, mas de elevadointeresse na vida das pessoas.
Tudo isto nada tem a ver com as promessas eleitorais, que foram de referendar o tratado e não aquele ou este tratado. Como tal, penso que o prometido deveria ser o devido, por uma questão de credibilização da política e dos políticos.
Caríssimo Pinho Cardão,
Em relação à promessa eleitoral, estamos de acordo. No que não concordo é nessa menorização implícita
(ainda que não premeditada da sua parte. Talvez seja eu a extrapolar. Esclareça-me)
sobre a capacidade do eleitorado em avaliar e decidir sobre questões "mais complexas"...
Pior ainda, o meu caro refere aí pelo meio que mesmo quem vai decidir não conhece o assunto!
Isso deixa-nos onde?
Folheando o livro "4R - Quarta República NO LIMIAR DA UTOPIA.LONGE DA ANARQUI MANSA QUE NOS TOLHE", topamos com o primeiro texto da autoria do caro Prof. David Justino, intitulado "Anarquia Mansa"(7 de Novembro de 2004.
Refere e identifica este precioso texto, as causas históricas que motivam os problemas económicos que afligem desde tempos remotos à actualidade, a sociedade e o estado português, que como muito bem refere o caro professor, somos todos nós. Associando-me a algumas considerações que o caro Dr. Pinho Cardão acaba de expôr no seu comentário anterior, identifico, em meu entender, os mesmos motivos em que assentou o texto citado do caro Professor David Justino, como causas (naturais) para justificar a profetização apresentada pelo caro Dr. Pinho Cardão.
Peço desculpa pela falta de clareza neste comentário.
Caro Prof.,
DJ,
Congratulo-me com esta sua ideia de uma leitura partilhada (que é também nome de blog, suponho que sabe) e foi com muito interesse que esta manhã fui comprar "Europa como projecto", que já li: 70 páginas em formato de bolso, de texto claro.
E desculpe-me pela extensão do comentário. "Não tive tempo de o fazer mais curto”.
Vitorino Magalhães Godinho, que também merece todo o meu respeito, não me parece que acrescente neste seu livro algo de relevante sobre o tema que dá o título à obra, até porque, desde a primeira linha o autor nega a existência desse mesmo projecto: "A Europa não é uma construção acabada (conclusão tautológica, porque nunca o será), e deixou de ser um projecto".
Convenhamos que a partir desta conclusão o destino da prosa subsequente está traçado.
Ainda na primeira página afirma VMG,"teima-se em tratar de tudo em circuito fechado, sem participação dos cidadãos, escamoteando a vontade geral".
Mas VMG é, diz ele mais adiante, “frontalmente contrário à realização de referendos e plebiscitos – essas formas de legitimação queridas por regimes totalitários (a constituição salazarista assim o foi). “Não é possível submeter a uma pergunta única ou um feixe de perguntas em número razoável, sem ambiguidades, um texto complexo e necessariamente longo (…) nem aceitar respostas que podem ir, justificadamente, em sentidos opostos.”
Também eu penso que um referendo a este Tratado desencadearia uma maré alta de discussão demagógica onde os votantes seriam inundados de slogans (muitos dos quais não terão a ver com a matéria do Tratado em si) e mergulhados na habitual floresta de outdoors onde as caras dos prescritores ficarão a conspurcar a paisagem até que novo ciclo demagógico substitua os figurões.
Ainda na primeira página, VMG atira, de repente, para o lado que sempre esteve virado: "A Europa no mundo não passa de um instrumento do imperialismo norte-americano, a subserviência a essa política catastrófica impede-a de desempenhar o papel que deveria ser o seu e que nenhuma outra potência pode desempenhar"
Uma afirmação que o Francisco Louçã subscreverá com todo o gosto . Como subscreverá outras que não vou transcrever para não me alongar ainda mais.
"O projecto rejeitado (tratado constitucional) não criaria um quadro institucional adequado e eficiente, continuaríamos com o poder concentrado nos governos e na burocracia, o cancro grave da situação actual - não participação do povo na vida pública -...)"
VMG insiste repetidamente no seu texto neste ponto da ausência de participação dos cidadãos e vem, de forma extemporânea, propor um grande concílio de sábios, antecâmara de uma assembleia constituinte porque “A Europa é uma opção demasiado séria para (nós) a entregarmos às mãos dos Governos refastelados no conforto neo-liberal"
Nós, quem? Para VMG "os pensadores com a multiplicidade de formação indispensável para formular a problemática pertinente e traçar rumos intelectuais do que deixava de ser uma mera designação geográfica"(…) "Deve-se estimular a formação de numerosos grupos de reflexão e estudo, compostos por intelectuais, escritores, artistas, geógrafos, historiadores, pensadores políticos, de múltiplas formações, que divulguem conhecimentos básicos e ideias inovadoras"(…)”"Em seguida há que convocar eleições para uma assembleia com poderes constituintes “(...) "Não se afigura necessário ratificação pelos parlamentos nacionais, mas não é de excluir se exequível e não conduzir a becos sem saída"
Esta proposta é de um contorcionismo inteiro: começa por reclamar alto e bom som a participação dos cidadãos, convoca depois os intelectuais para desenhar o projecto europeu, apoia-se na democracia representativa a nível europeu para lhe dar a bênção, acaba por colocar reticências à participação dessa mesma democracia representativa a nível nacional e vota o referendo às urtigas. Neste último aspecto (do referendo nas urtigas) estou inteiramente de acordo com ele
VMG sabe bem, todos sabemos que a construção da Europa é um caminho que, para usar a expressão de A. Machado, se faz caminhando. Tem curvas e alguns becos. O próximo poderá ser, eventualmente, a rejeição por um ou mais países deste Tratado em referendo ou votação parlamentar.
Espera-se que se algum, ou alguns dos membros actuais, votar Não, tenha a bondade de sentir convidado a sair.
A bem do projecto europeu.
Caro Pinho Cardão,
Desculpa-me o atrevimento da pergunta: Já leste o livro?
Vou ler a obra. Fiquei curioso.
Quanto à questão do referendo, não tenho dúvidas.
Já aqui manifestei em diferentes ocasiões a minha opinião.
Três razões fundamentais para ser a favor de uma consulta popular:
1ª - Óbvia. Foi prometida por todos os partidos. Impõe-se que os partidos comecem a honrar os compromissos para que possam aparentar ser honrados. E não me venham com a conversa de que este não é um tratado "constitucional" mas "reformador", ou com razões do mesmo jaez, verdadeiramente atentatórias da inteligência. Estes argumentos formais são razões elas sim intelectualmente desonestas sobretudo quando partem de quem tem a obrigação de saber que, materialmente, não há substanciais diferenças entre a versão "constitucional" e esta versão "porreiro, pá!".
2ª - É essencial que comece a soprar um vento democrático sobre as instituições comunitárias para que tudo não se continue a passar (entenda-se, as principais decisões sobre a vida dos Estados) exclusivamente entre a burocracia de Bruxelas e a aristocracia da Comissão e do Conselho (o Parlamento, com aquele gigantismo, jamais será órgão que conte. Aliás, prefiro o reforço dos poderes de vigilância dos parlamentos nacionais, ao reforço das competências uma assembleia cujo trabalho pouco ou nada adianta, como é o da multidão de deputados europeus). Por isso eu percebo bem o Dr. Alberto João Jardim quando diz que a Europa se arrependerá se não legitimar o tratado na vontade dos cidadãos europeus. É que, por mais arranjadinho que seja o modelo (orgânico-funcional) da UE, a prazo as questões que se porão serão questões de legimitação das decisões comunitárias. E sobrarão então os que não deixarão de apontar este e outros deficites de democracia.
3ª - Exactamente pelo motivo em que alguma classe política assenta a ideia da ratificação pelas maiorias parlamentares venerandas e obrigadas: o Povo é ignaro. Ora, se o é, então a obrigação estrita da classe política é instruí-lo, sob pena de se por em causa todo e qualquer resultado eleitoral. O referendo sobre o projecto de Tratado de Lisboa é uma oportunidade ÚNICA de explicar porque é que temos de alterar a escala com que olhamos para os nossos problemas. Porque é essencial pensarmo-nos como europeus sem prejuizo da nossa identidade de portugueses. Se perdermos esta oportunidade, perdemos seguramente a noção de como é importante envolver os povos nos grandes desígnios. E mais uma vez a classe política, as elites, rejeitam a responsabilidade, que é maioritariamente sua, de fazer a pedagogia do projecto europeu.
Finalmente, um comentário ao que deixou anotado o Pinho Cardão secundando o que muito bem observou o cmonteiro. Pressente-se que até alguns dos deputados da nossa AR desconhecerão o conteúdo e alcance do documento. Se assim é, não é também esta uma razão para desvalorizar, neste caso, o significado legitimador da representação democrática? E concluir que a ratificação parlamentar não virá a significar, em boa verdade, mais do que um ritual de confirmação de uma decisão directorial?
Meu caro David Justino, boa leitura esta. As boas leituras estimulam a reflexão. E a sáudável e libertária polémica.
Europa dos Cidadãos sem referendo parece-me ser uma contradição de termos.
Olá olá «meus piquenos»,
Pois já cá faltava eu para "amandar" umas larachas jeitosinhas.
Ok, agora mudando para um tom um pouco mais sério, confesso-vos que partilho dos "receios" do Dr. PC. Por um lado, sou a favor do referendo. Por outro lado, não sei até que ponto um tratado internacional deva ou não ser referendado tendo em conta que todos os outros tratados internacionais que Portugal já celebrou nenhum deles foi sujeito a referendo e todos são importantes. Além disso, e de acordo com a CRP, os tratados internacionais não têm de ser sujeitos a uma consulta popular prévia.
De seguida, auscultar os cidadãos sobre questões internacionais não é, por norma, uma boa ideia. Não porque as pessoas sejam tolinhas mas porque nem todas sabem ler e interpretar tratados (por vezes nem mesmo aquelas que estão treinadas para o fazer o sabem fazer) e muito menos têm consciência do que é a política externa do Estado e que consequências têm para o mesmo. As pessoas preocupam-se com aquilo que tem um efeito directo sobre a vida do seu dia-a-dia e não com os efeitos indirectos que um determinado tratado possa ter sobre as suas vidas. Sempre foi assim.
Pois, mas com Anthrax bem sabe esta não é uma "questão internacional"...
Pois é verdade,meu caro JMFA, mas um tratado é um tratado. Antes de obedecer às regras do direito comunitário obedece às regras do Direito Internacional Público, nomeadamente, as da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. E nesta perspectiva, é uma questão de Direito Internacional Público. É claro que extravasa-la para uma questão de pendor estrictamente internacional é um erro e daí as minhas hesitações sobre esta matéria.
Isto não é uma questão meramente internacional e eu não sei, exactamente, o que pensar... pelo que me dava muito jeitinho uma sessão de "terapia esclarecedora" com o Prof. Hernani Lopes.
Caro CMonteiro:
O eleitorado tem toda a capacidade, não está é para se deter com atenção sobre o assunto.
E votará SIM, se houver referendo, por confiança no PSD,no PS e no CDS/PP; votará Não, por confiança no PC e no Bloco.
Ah e votará também SIM, face aos dinheiros que vão aparecendo.
Acha que vota por aderir às mil e uma tecnicidades do acordo? Penso que não.
Estou surpreendido com a resposta rápida dos nossos comentadores. Os meus parabéns.
Julgo não ter evidenciado qual a minha posição face ao referendo ou à ratificação parlamentar do Tratado Reformador. E não o fiz porque entendo que essa mesma posição (seja ela qual for) está a enquinar o necessário debate que os cidadãos devem promover em torno da ideia de Europa. A parte do ensaio do VMG sobre a Europa como Projecto em que há uma preocupação sobre essa ideia é precisamente aquela em que aborda os fundamentos culturais e políticos do projecto europeu, os direitos e deveres de cidadania, os princípios norteadores e a necessidade de a Europa se afirmar no balanço instável das tensões internacionais que hoje marcam a história mundial.
Lamento, mas não é pelo facto de se terem feito promessas eleitorais sobre o referendo a um falhado Tratado Constitucional, que se deve continuar a exigir o mesmo referendo sobre um Tratado que de constitucional tem muito pouco. Se as fizeram não as deveriam ter feito, sem saber ao certo o que queriam referendar.
Experimentem, meus caros amigos, tentar imaginar que tipo de pergunta é que deveria ser formulada de forma a respeitar a instituição referendária tal como ela está consagrada no nosso ordenamento jurídico.
Apenas concordo com o Pinho Cardão quando coloca a dúvida sobre se os nossos representantes parlamentares estão suficientemente elucidados sobre todas as consequências de uma ratificação. Onde é que está o debate sobre a última versão do Tratado? Está agendado para quando? Quais os trabalhos preparatórios?
Esta, sim, é que é a insustentável preversão de muitas democracias parlamentares.
E o debate cívico, por onde anda? Como é que os cidadãos poderão fazer valer a sua opinião e influenciar a posição dos seus representantes?
É por isso que qualquer contributo para esse debate, mesmo que eu não me identifique com ele, deverá ser sempre bem vindo. Foi o caso.
Concordo que a questão não deve centrar-se numa "teima" sim-ou-não ao referendo, sobretudo se isso for uma teima Benfica-Sporting e só se contarem os golos sem ninguém perceber nada do jogo. É verdade que se prometeu, e quem prometeu devia agora explicar bem explicado porque é que não se justifica agora embora também me pareça que o que se prometeu não era para levar muito a peito. A Europa, seja lá o que for que se estaj a construir, não é "parável", tem que evoluir num sentido de maiores equilíbrios e também de novas distribuições de poder, quem é que não consegue ver isto? Nessa partilha agora a 27, quem tem mais poder, manda mais, quem tem menos, arranja formas melhores ou piores de ser protegido ou de se fazer ouvir. Também me parece mais ou menos óbvio. Portanto, estamos a discutir uma questão de grau e não uma questão de fundo. Podemos agora dizer que NÃO à Europa? Podemos, claro, sobretudo se nosp erguntarem, mas para quê? Para acontecer o quê? O que acabou de acontecer. Para se arranjar forma de a Europa avançar, de se ajustar à nova configuração, de se preparar para a configuração seguinte, mas de maneira a que pareça que são só ajustamentos. Quem não quiser ver isto, quer ser enganado. De facto, referendo para quê? Mais valia não terem prometido nada...Não é isso que é importante, a informação e o esclarecimento sim, mas esses são difíceis...
Vale bem a pena ler a perspectiva de António Barreto, no Público do passado Domingo (desculpem, mas não sei fazer links), chamado "Porque riem as hienas?" É um texto dura, que fala numa Nomenklatura em vez de uma Comunidade, concorde-se ou não, deve ser lido.
A grande maioria dos senhores deputados não vai ler o tratado, mas vai votar de acordo com a orientação do seu partido, o que garante que a ratificação parlamentar ocorrerá sem problemas para uma pretensa aristocracia que julga que sabe o que é bom para o povo.
Mas a questão nem é essa. Os cidadãos é que têm o direito de dizer se querem ou não querem a União Europeia que se vai desenhando paulatinamente. E se os cidadãos desconhecerem o assunto e votarem NÃO? Óptimo, aí está um motivo excelente para parar: o desconhecimento. Realmente, o referendo pode ser um grande empecilho. Como já foi.
Meus caros:
Lamento mas tenho de insistir contra esta ideia que se vai insinuando de que não é possível submeter a questão da ratificação do tratado a referendo.
Penso exactamente o inverso do que expressou o Professor David Justino: se não houver campanha eleitoral para o referendo do tratado jamais será dada aos portugueses a oportunidade de conhecerem afinal que projecto é este.
Sei bem que a generalidade da classe dirigente, com responsabilidades nos dois maiores partidos, não quer assumir a responsabilidade de explicar a opção por este modelo de Europa dita dos cidadãos. Pela minha parte tudo farei (por pouco que signifique...) para evitar a fuga a essa responsabilidade.
E aqui estarei para ser dos primeiros a louvar o senhor Engenheiro Sócrates se demonstrar a coragem de fazer o que prometeu.
E não se diga que a questão do referendo está a inquinar o debate sobre o Tratado. É que não se pode inquinar o que não existiu e, como todos sabem, não existirá!
Salvo se existir o referendo e nele se empenhar quem tem a responsabilidade de defender as opções levadas ao texto nesta versão "porreiro,pá!".
Só mais uma nota de discordância quanto ao que comentou o Professor David Justino. Afirma que de constitucional este tratado tem muito pouco. Há uma coisa que começa a ser clara. Tem de constitucional, a despeito do novo baptismo, quase o mesmo que morreu no dia em que os franceses e holandeses lhe disseram não.
E já agora: podem os meus Amigos explicar-me, fora do quadro de um referendo, como se mobiliza o País para o debate dos fundamentos políticos e culturais de uma nova Europa que todos dizer ser indispensável debater?
Por acaso eu tenho o texto completo do Tratado anterior que me foi enviado pelo CIEJD. Nunca o li. Aliás, só de olhar para aquela quantidade de páginas e para aquela letra miudinha, é assustador. Mas gostava de ver quais são as diferenças entre o novo e o antigo (e para isso tenho de ler os 2).
Há coisas que sabíamos de antemão que ía dar "chapadaria", entre elas está a questão do número de deputados, a questão das votações (para assuntos que deixam de ser votados por unanimidade e passam a ser votados por maiorias de 2/3, por exemplo), a possibilidade de ser contemplada um clausula que permite a um Estado-membro desvincular-se da União (o que lhe confere automaticamente um carácter de tratado e não de Constituição), etc. E de facto, o que ninguém explicou até agora foi os efeitos desse Tratado Reformador nos cidadãos de cada Estado-membro, quem manda no quê e quais as consequências para os países pequenos. Quem vota num referendo deste género tem de estar sensibilizado para estes assuntos para poder votar em consciência.
Além disso, nem consigo imaginar que tipo de pergunta poderiam colocar no referendo mas, estou certo que alguém conseguiria arranjar um pergunta perfeitamente idiota que ninguém iria compreender e gastar-se-ia uma pipa de massa num referendo que depois nem seria vinculativo, porque ninguém se ia dar ao trabalho de votar.
Por outro lado, haveria sempre a possibilidade do tiro sair pela colatra. Promovendo um grande debate a nível nacional, os defensores do "Não" estariam sempre em grande vantagem porque estariam numa posição muito fácil para tirar partido da ignorância das pessoas (e neste aspecto o Arnaldo Madureira tem toda a razão). Apelar aos medos e aos receios de cada um é um caminho muito mais fácil e muito mais básico (por estarmos a lidar com instintos primários de sobrevivência) do que explicar e fundamentar porque é que pertencer à União Europeia é positivo (e aqui estaríamos a lidar com um processo de transformação de informação em conhecimento).
É o que vos digo, não sei o que pensar em relação ao referendo mas também... ainda bem que não sou eu que tenho de decidir, porque seja qual for a decisão de certeza que vai ser tramada.
Não sei se ficou claro que "o motivo do desconhecimento é excelente para parar"... a reforma da Europa. Penso que qualquer reforma que os Cidadãos desconheçam ou discordem é democraticamente ilegítima, porque a democracia é o cumprimento da vontade da maioria com todas as suas consequências; e que o que for incompreensível está errado.
Meu caro Ferreira de Almeida.
Divergência insanável. Felizmente!
Não sei se em qualquer outrolugar ou qualquer outro blog se está a debater o Tratado, como o estamos a fazer aqui, mas há um dado adquirido: o pessoal do 4R está a debater. Bom sinal.
Em primeiro lugar, meu caro amigo Zé Mário Ferreira de Almeida vai fazer-me um favor: vai pensar seriamente sobre uma perguntazinha para colocar ao cidadão comum e sobre essa pergunta vamos conversar.
Em segundo lugar, do que li do Tratado há artigos que deveriam lá estar se fosse de ordem constitucional e não estão. Onde vai parar a carta dos direitos fundamentais? Não é só o problema dos símbolos, é o problema do balanço dos pilares da soberania.
Em terceiro lugar, quer queiramos quer não, este é um Tratado celebrado entre Estados, de uma Europa que ainda se afirma pelo seu sistema de Estados que, lembre-se, se consolidou desde o século XVI.
A construção de uma Europa unificada sempre se confrontou com esse mesmo sistema de Estados. A diferença actualmente é que se quer unificar não por união dinástica ou por conquista e submissão, mas sim por acordo entre os vários Estados.
Por último, este Tratado abre a porta a uma Europa dos Cidadãos, mas estamos muito longe desse ideal da cidadania europeia. Em situações de crise e de ameaça de concorrência aos interesses nacionais, lá se faz um referendo para "patrioticamente" o cidadão colocar a cruzinha no não rejeitando qualquer sinal de partilha do torrão pátrio.
Esta ainda é uma Europa construída decima para baixo, dos poderes de Estado para os cidadãos e não é um referendo feito à pressa que vai alterar essa realidade.
Meu caro Ferreira de Almeida, o ideal ainda não é a realidade. É pena, mas é assim.
Um abraço
Meu caro David Justino:
Vamos à pergunta a formular no referendo.
A pergunta é simples, é a mesma que se vai colocar aos deputados quando forem chamados a pronunciar-se sobre a ratificação: "Concorda com a ratificação do Tratado Reformador da União Europeia, assinado em Lisboa em...?".
Já sei que me vai dizer: "mas a complexidade, a complexidade deste tratado!"
Bom, tenho de insistir. Como em qualquer sufrágio, a decisão só é informada se os reponsáveis políticos e as forças e movimentos sociais que se alinhem num ou noutro sentido cumprirem com o seu irrenunciável dever de informar, de explicar, de debater e de fomentar o debate.
Se o fizerem, é razoável admitir que o "sim" ou o "não" corresponderão a uma vontade popular tão esclarecida como aquela que, por exemplo, se manifesta numas eleições legislativas.
Pense o meu caro Amigo no seguinte. Quando se pede ao eleitor que vote na lista do PS, do PSD, da CDU ou do PP, não se está a pedir a aceitação de um projecto político e a concomitante rejeição dos demais? Não se solicita que o Povo expresse um "sim" e vários "nãos"?
Com base em quê? Supostamente não na cor dos olhos ou do timbre da voz dos candidatos, mas do projecto que, também supostamente, foram capazes de transmitir e fazer compreender aos eleitores. Projecto esse bem seguramente bem mais extendo e bem mais complexo porque envolve as opções de governação, e não só - como no tratado -, um modelo institucional de uma União que diz ser de Estados.
Não me consta que alguém tenha posto em dúvida a legitimidade de uma maioria ou de um governo na incapacidade do Povo compreender coisas complexas...
Quanto à natureza constitucional ou assim-assim do tratado.
Outra falsa questão.
Confesso que não sei bem o que é um tratado constitucional. Salvo se for aquele acordo entre entes soberanos destinado a definir as condições de criação, à custa da soberania destes, de um novo ente com personalidade internacional e imperium interno.
Neste sentido, ninguém assumiu que o assim chamado tratado constitucional, o fosse (a não se para aqueles que já se ouviam a assobiar o hino europeu...).
O que releva para esta questão é que se este não é constitucional o outro, que assim foi baptizado, também o não era, sobretudo se o critério de classificação assentar no que o meu caro David opina, isto é, por ser uma convenção entre Estados.
(Já agora, o sistema histórico de Estados europeus ajuda pouco à discussão pela elementar razão que o conceito de Estado do seculo XVI - e dos que se seguiram - nada tem que ver com aquele que hoje caracteriza as relações entre os Estados, muito especial os que se integraram na UE. Mas essa é outro plano, embora interessante).
O que interessa, a meu ver, não é o nomen juris do tratado. Se é constitucional ou não constitucional. O que interessa é, olhando à matéria, se se considera ou não que, dadas as consequências na vida dos Povos, das empresas, das famílias e dos cidadãos individualmente considerados, deve ou não obter-se o maior consenso possível daqueles que são os seus destinatários.
É curioso que não vejo ninguém se interrogar sobre esta coisa elementar: em Portugal tivémos já vários referendos. Nunca ninguém questionou o acerto de submeter ao veridicto plebiscitário a regionalização, por exemplo. Foi considerada questão digna de pronúncia popular directa. Já a reforma dos tratados da UE...bom, essa não é tão importante que mereça uma consulta popular.
Mas, meu caro, a verdade é que, como bem sabe, a questão do modelo europeu, dos seus fundamentos e desígnios, é muito mais importante que a regionalização! Desde logo porque vai condicionar as opções nacionais em muitos domínios, regionalização incluída, se pensarmos na real dimensão do tratado.
Quanto à pressa do referendo.
Nenhuma pressa.
Estou em crer que no longo periodo que vai decorrer até à ratificação pelos 27, haverá mais do que tempo para preparar o referendo como deve ser preparado. Repito: se nisso estiverem empenhados os responsáveis políticos.
Meu caro David, vamos continuando a fazer este debate. É verdade que, como diz, o ideal não é a realidade. Tem razão. Por isso a crise que se adivinha, com o modelo aristocrático em que os dirigentes europeus apostam, vai ser, mais tarde ou mais cedo, uma crise de legitimação das decisões comunitárias.
Seja como for, nesta questão como outras em que vou para aqui vertendo o que penso, seguramente sem mérito, sou fiel ao mote do nosso blogue: "no limiar da utopia"
Abraço
Caro David Justino,
Concordo em pleno com este comentário de JMFA e gostaria de sublinhar que ninguém sabe o futuro. Sem referendo, os europeístas de hoje podem ser os traidores à pátria de amanhã. Não fomos "nós" que escolhemos, foram "vocês". Está toda a gente a assumir que a coisa vai correr bem, e tão confiante, que me está a negar a escolha que está a ser pedida e que me foi prometida. Se correr bem, vai correr bem para "nós" mas, se correr mal, quase que garanto que vai correr muito mal para "vocês".
Com referendo, fomos "nós" que quisemos, azar. Quanto à pergunta, qualquer porcaria serve.
Meu caro Ferreira de Almeida,
era precisamente essa pergunta que eu estava à espera. Eu sei que estou a argumentar com um distinto jurista, mas permita-me a ousadia, meu caro amigo, de poder discordar da constitucionalidade dessa pergunta. Aparentemente ela teria cabimento após a revisão constitucional de 2005, especialmente o art.º 295º, que prevê a "aprovação de tratado que vise a construção e o aprofundamento da União Europeia" por referendo. Porém, esta norma é perfeitamente irrelevante porque não muda as exigências referendárias. Ora essa pergunta colide com o exigido pelo art.º 115º, n.º 6: "Cada referendo recairá sobre uma só matéria, devendo as questões ser formuladas com objectividade, clareza e precisão...".
Por estas mesma razão já o Tribunal Constitucional se pronunciou duas vezes contra a mesma matéria, não por ser tratado, mas pelo facto de a pergunta não respeitar aqueles requisitos.
Neste aspecto a pergunta formulada pelo Prof. Vital Moreira é formalmente mais imbatível: «Portugal deve sair da UE?»
Mas continuo, quanto à substância política, a defender que a proposta de Tratado é uma convenção entre Estados e que está de acordo com aquilo que é hoje a Europa e que continuará a ser por muito tempo: uma Europa de Estados e muito longe de uma Europa de Cidadãos. Como tivemos oportunidade de verificar na ratificação do ex-Tratado Constitucional, o referendo foi um instrumento que desencadeou uma profunda crise institucional e deu expressão às manifestações mais proteccionistas e mais nacionalistas de que há memória.
Não creio que a conjuntura tenha mudado assim tanto que permita correr o risco de repetir o erro.
Estamos ainda muito longe da Europa dos Cidadãos, infelizmente, digo eu.
Mas há que não desarmar e perceber bem que são duas dinâmicas muito diferentes e por vezes antagónicas.
Um abraço
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