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segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Julieta Gandra, uma Mulher



Vi ontem no Público um artigo de Rui Araújo chamando a atenção para o facto de ninguém ter escrito uma linha que fosse sobre a morte da Dra. Julieta Gandra. Foi assim que eu soube que ela tinha morrido e senti a mesma injustiça, razão pela qual aqui deixo uma história que serve também de justa homenagem.
A Dra. Julieta Gandra era a médica ginecologista da Luanda dos anos 50 e a ela recorriam todas as mulheres brancas que viviam na cidade. Era conhecida não só por ser uma boa profissional mas também por ser uma mulher de grande humanidade, que dava consultas gratuitas nos musseques e conselhos a todas as mães aflitas, pudessem ou não pagar as consultas. Para ela não havia cor da pele, nem estratos sociais, mas apenas mulheres e crianças que precisavam da sua ciência e dos seus cuidados.
A Dra. Julieta Gandra era também uma activista política, opositora ao regime, e vivia sob vigilância, tal como outros que vieram mais tarde a participar na vida política nacional, como Tito de Morais. Mas o clima adensou-se, a guerra já se anunciava e em 1959 ela foi presa sob pretextos ridículos e fechada num hospital psiquiátrico, que lhe servia de prisão enquanto aguardava julgamento.
A Dra. Julieta Gandra era médica da minha mãe, já a tinha assistido logo a seguir ao meu nascimento, depois ao parto da 3ª filha e estava a seguir a 4ª gravidez quando a prenderam. O pânico que se gerou entre as mulheres que se viram assim desamparadas foi potenciado pelo sentimento de grande revolta pela pena que sofria aquela mulher extraordinária.
A minha mãe, que nunca foi mulher de se deixar abater pelas contrariedades, decidiu agir. Com uma amiga tão intrépida como ela, e sem avisar sequer o meu pai, apresentaram-se na PIDE e pediram para falar com o director, porque queriam ver a médica que estava presa. O funcionário ficou perplexo e começou um relambório a avisar que era melhor “as senhoras não se meterem nisto, ela é comunista, vão para casa se não querem ter sarilhos…” A minha mãe, exibindo os seus 6 meses de gravidez, sentou-se. “- Vou ficar aqui até a criança nascer. Tanto me faz ter a criança aqui ou em casa, desde que seja a Dra. Julieta a assistir-me.”
O Director recebeu-as, mandou chamar o meu pai, que apanhou um susto de morte quando lhe falaram da PIDE a dizer que a mulher estava lá. Largas horas depois, a teima da minha mãe não tinha desarmado. Vasculhada a vida deles e provada que nada constava de suspeito nos ficheiros, levaram-nos ao Hospital, onde ela estava num quarto com a janela cruzada por tábuas de madeira, lendo na penumbra. Ficou então combinado que ela podia ir a nossa casa no dia do parto ou em caso de urgência, desde que acompanhada de segurança e ficando o meu pai responsável caso houvesse qualquer tentativa de fuga.
Poupo-vos aos detalhes da tempestade doméstica que esta iniciativa desencadeou, mas a verdade é que, nos princípios de Setembro de 1960, a nossa casa estava rodeada de polícia a Dra. Julieta assistiu às longas horas do dia e da noite em que se prolongou o nascimento. O reboliço na rua juntava pessoas que se perguntavam quem é que ia ser preso ali, até que o PIDE de guarda acalmou os ânimos, puxando uma fumaça do cigarro: - “Não há novidade. É só uma criança que quer nascer em segurança…”
A história espalhou-se como pólvora. E, a partir daí, outras mulheres exigiram igual privilégio, e a Dra. Julieta foi autorizada a sair da prisão sempre que uma das suas clientes pedia a sua preciosa ajuda.
Em julgamento, ela foi condenada a 4 anos de prisão, foi transferida para Lisboa e, em 1964, foi considerada a “Prisioneira de Consciência” do ano pela Amnistia Internacional, saindo em liberdade pouco tempo depois. Nunca mais a vimos.
Morreu aos 90 anos, num lar, aqui fica o seu maravilhoso sorriso, com que tantas vezes confortou quem precisava. Morreu uma grande Mulher.

9 comentários:

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Suzana
Ainda bem que nos trouxe aqui a sua homenagem à Dra. Julieta Gandra. É um gesto bonito de gratidão que nos faz mais humanos, que tantas vezes esquecemos e não valorizamos.
E parabéns à Mãe da Suzana pela sua coragem, tanto mais ímpar quanto as condições políticas aconselhariam a nada fazer. Imagino que a "tempestade doméstica" se tenha dissipado perante a alegria do nascimento da quarta filha...

invisivel disse...

Subscrevo na íntegra o belo comentário da Drª Margarida Aguiar.
Só queria acrescentar que imagino o orgulho que sente da atitude tão nobre que a sua mãe tomou, ao solidarizar-se, naquela altura,com a drª Julieta.

Massano Cardoso disse...

Minha cara amiga Suzana.
A história que relata é para mim, e acredito para muitos que nos lêem, a melhor lembrança feita à Dra. Julieta Granda que foi, "soberanamente", esquecida pela comunicação social, ao ponto do provedor do leitor do Público tecer considerações pertinentes sobre o assunto (parece que faltava espaço no jornal!! - Só entre nós é que se arranja uma desculpa desta natureza).
Espero que o seu texto sofra uma replicação saudável na blogosfera.
Não se pode perder a memória...

Bartolomeu disse...

Todos os grandiosos espíritos como o da Doutora Julieta Gandra, que tão justamente a cara Suzana homenageia, merecem o reconhecimento de todos nós. Certamente que a salvação de muitas vidas se ficou a dever à sua acção abenegada, como tão sentidamente nos conta no seu maravilhoso post. Foram tempos de temor e constrangimento, aqueles que nos relata, mas e para exemplo, existiram felizmente, pessoas como a sua mãe, cara Suzana, possuidoras de uma força indómita e carácter capazes de enfrentar com destemor o monstro opressor e obsuleto.
Uma enorme vénia de apreço, às grandes mulheres portuguesas!

Bartolomeu disse...

obsuleto?
Felizmente, obsoleto, mas, não descuremos a guarda... eles andem aí, eles andem aí...

Suzana Toscano disse...

São histórias de pequenas (?) heroínas,como são um pouco todas as mulheres em momentos difícieis, com esse estranho dom de moldar o mundo às suas necessidades e à protecção daqueles que amam e têm que proteger.Não excluo os homens da galeria de heróis desconhecidos, mas no mundo feminino há uma teia de cumplicidades e solidariedade que lhe dá uma força incrível, e em que o exemplo, como este, vai mostrando às geraões seguintes que a Coragem é uma qualidade que se manifesta nos mais pequenos gestos.

Boa Lingua disse...

Caríssima Suzana, gostei muito do seu post em que conta apaixonadamente o episódio em que a minha avó, a Julieta, a trouxe para este lado do Mundo. Mérito da sua mãe, sobretudo.

Já que "nunca mais a vimos", aproveito para lhe fazer um convite.

Na próxima sexta, dia 14/12 às 18h, vai ser-lhe feita uma homenagem no Museu da Républica e Resistência. Fica na Rua Alberto de Sousa, nº 10 A - Zona B do Rêgo

Se quiser aparecer, temos todo o gosto.

Bruno Cochat

Artur Gandra disse...

Sou primo de Julieta Gandra. Meu avô, irmão do Tio Mário e tio de Julieta, foi também médico - Dr. Ângelo Gandra. Republicano puro e duro da 1ª República, foi homem de enorme influência cívica e também política contra o antigo regime.
Como médico foi, tal como Julieta, de ricos e pobres a quem não levava dinheiro e ainda fornecia medicamentos a suas expensas.
Sempre recusou homenagens e agradecimentos.
Ângelo e Julieta eram feitos da mesma fibra, está claro. Personalidades inabaláveis!
Não os conheci - meu avô morreu há 60 anos. Tenho pena de não ter feito uma visita à Dra. Julieta Gandra.

Paulo Gandra disse...

Obrigado por estas palavras, estas memórias...Obrigado. Deixam-me sem palavras.