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quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Uma boleia em Lisboa!

Fiquei preocupado quando soube que no dia em que tinha uma viagem marcada para Ponta Delgada, onde ia fazer uma conferência, os pilotos da aviação civil iriam estar em greve. Após os necessários contactos, garantiram-me que, em princípio, o voo não seria cancelado.
Sofrendo do "síndroma dos gaiteiros" (vou quase sempre de véspera) abalei em direcção à capital. Estacionei no parque habitual e dirigi-me pela primeira vez ao terminal 2. Olhei para os sinais indicadores e avancei a pé arrastando a pequena mala e o inseparável computador. Não deve ser longe, pensei eu e tempo tinha-o de sobra. Andei por um passeio de calçada portuguesa mal amanhado com a mala aos saltos e comecei a reparar que o raio do novo terminal afinal ficava muito longe. De repente, confrontei-me com uma avenida nova sem passeios. Fiquei estupefacto. Estes "gajos" não se lembraram dos peões! Com todo o cuidado aventurei-me na avenida não sem pensar no risco de levar com uma trombada de algum automóvel. É certo que praticamente não havia grande circulação naquela artéria, mas nunca fiando. Já estava meio arrependido de não ter apanhado a carrinha do aeroporto, quando de repente sou ultrapassado por um veículo de transporte com vidros fumados que acabou por parar alguns metros à frente. Fiquei um pouco perplexo e interroguei-me sobre o que teria acontecido. Não havia nada nem ninguém na via! De qualquer modo, estuguei um pouco o passo, arrastando a mobília, com a ideia de que pudesse ser o tal shuttle do aeroporto e cujo motorista tivesse tido a gentileza em me levar. Mas olhei para o veículo e não li nada que sustentasse tal hipótese. Eis que a porta se abre e o condutor, amavelmente, perguntou-me se não queria entrar, porque o terminal ainda ficava a alguma distância. Entrei, agradecendo a sua cortesia. O curto espaço de tempo da viajem foi suficiente para verificar que se tratava de um profissional encarregado de transportar pequenos grupos de executivos.
Estava muito longe de pensar em apanhar uma boleia destas em plena Lisboa. Tal facto fez-me recordar os tempos da minha juventude em que tinha de calcorrear, às vezes mais do que uma vez, a distância entre a Estação e a Vila. Eram mais de quatro quilómetros pela estrada mas encurtava-a indo por atalhos. O pior era subir a Via Cova, muito íngreme, ao ponto de apetecer ir de gatas. Mais suave era a Calçada Romana mas mais longa. A esperança era apanhar uma boleia na ponte sobre o rio Dão. Naquela altura, havia poucos carros mas quem os tinham eram generosos parando para dar boleias. Sempre que chegava à entrada da ponte, junto da Memória, testemunha da destruição ocorrida durante a Invasão de Massena, desacelerava o passo na expectativa de que alguém conhecido me aliviasse o tormento da subida e punha-me a olhar para o rio.
Conhecia o barulho de muitos motores. Quando ao longe ouvia motores rotativos a denunciar velocidades pouco apropriadas para aquelas curvas muito apertadas pensava: - Será o Sr. Regadas ou o Carlos Adelino? Este último era mais novo e mais louco que o primeiro. Paravam e nem era preciso dizer mais nada. Assim que entrava no carro arrancavam de imediato a alta velocidade desafiando a curva em ângulo recto ao fim da ponte. Tinha que me agarrar a tudo quanto era sítio para não ser projectado para cima do condutor. A taquicardia era uma constante e a aflição de entrar na capela do Senhor da Ponte situada precisamente no vértice daquele ângulo obrigava-me a exclamar: - Valha-me Senhor da Ponte! O que é certo, face às loucuras praticadas na época, é que a capela octogonal nunca sofreu uma beliscadura. Cá para mim o Senhor deveria divertir-se imenso com aqueles loucos que, ao entrarem na curva, derrapavam nas suas "barbas" fazendo uma chiadeira dos diabos ao mesmo tempo que largavam parte dos pneus! Depois veio a barragem. Desmontaram a capela e reedificaram-na à saída da nova ponte. O acesso não é fácil, está isolada, os carros passam ao lado e não tem a sua "curva". Todas as semanas passo por ela e não deixo de sentir uma certa tristeza. O Senhor da Ponte, a quem deixava uma coroa, um escudo, vinte e cinco tostões e até mesmo cinco mil réis (!), tudo dependia do grau de gravidade que eu atribuía aos disparates ou ao tamanho do pedido, deve ter muitas saudades dos tempos em que ouvia o roncar dos malucos das máquinas, ameaçando entrar no seu reduto, e das promessas e pedidos dos mais pequenos...
Um bem-haja ao motorista lisboeta que me deu uma boleia!

14 comentários:

invisivel disse...

Caro Professor Massano Cardoso.

Congratulo-me por ter encontrado nesta Lisboa “frenética e desumanizada”-muito mais que Coimbra ou Porto, onde as pessoas de forma muito simpática ainda interagem-, uma alminha simpática que o aliviou da caminhada não pretendida, e ainda o fez recordar as caminhadas e as boleias da sua juventude. Não há bela sem senão: essas caminhadas eram esforçadas, mas contribuíram de certeza para o caro Professor conseguir ainda hoje fazer a caminhada que aqui nos trás.
Portanto, há dias de sorte! E sabe porquê? Porque além da boa recordação que partilhou connosco, fica a certeza que não faz parte duma geração de obesos, pois consegue ainda correr atrás dum avião!…Sem lhe dar um trekes!

Bartolomeu disse...

Caro Professor Massano Cardoso, noto-lhe alguma melancolia na inflexão da voz, motivada qui ça, por uma espécie de saudosismo que algo no íntimo lhe garante, não irá nunca mais poder reviver.
Uma vez que tocou no assunto e por isso, sentindo-me "absolvido" de me poder considerar indiscreto, pergunto. V. Exª. abandonou a prática de rogar protecção ao "Senhor da Ponte"?
Olhe que, caro professor, aí pelas margens do Dão, não sei como seja, mas por aqui... carrinhas com os vidros fumados?
Uiiii é de fugir, para mais lá pelas bandas do aeroporto.
Teve sorte caro professor, teve muita sorte mesmo, podia ter sido alvo de um rapto, por isso, o melhor seria passar pela capelinha octogonal do Senhor da Ponte e deixar a esmola. Cinco mil reis? Isso hoje deve corresponder em libras estrelinas a umas duzentas, ou assim. Mas isso também não é problema, o santo não deve estar preocupado com câmbios.

Massano Cardoso disse...

Rapto?! Nem me passou pela cabeça! Aliás, a voz, o timbre e o modo como o senhor falou inspirou-me de imediato confiança. C´os diabos! A vida e a multidão de pessoas que já vi, estudei e analisei também deverão servir para alguma coisita....
O condutor revelou que há ainda cultores de boas acções que pensávamos existir apenas nas nossas terrinhas e em tempos que já lá vão. Agora em Lisboa!
Contar um episódio destes tem um duplo significado: afirmar que há pessoas de bem, em locais onde menos se espera, que nos ajudam a recordar bens de outrora.
Quanto às esmolas de cinco mil réis não foram por ai além, o que significa que os casos mais graves não foram tantos como poder imaginar. Oh Bartolomeu, eu posso ter alguma idadezita mas não tanto que chegue a esses períodos de conversão em libras! E logo com essa taxa!!
Quanto ao resto, também já lá vai.... Não peço protecção, de facto, mas gosto de saber que esteja lá. Se pudesse escolher outro sítio para a capela até escolhia. Palpita-me que aquele local não é o mais indicado para o Senhor da Ponte e, consequentemente, “não se deve divertir” como desejaria...

Bartolomeu disse...

Caro professor, sobretudo baseado nessa sua aptência para avaliar o caracter de cada um, peço encarecidamente so Senhor da Ponte, a sua intercepção, para que dúvidas não restem acerca dos propósitos do meu comentário.
Não desejo de modo nenhum deixar no ar alguma insinuação obscura relacionada com a idade do caro professor ou tão pouco com os seus princípios de fé. Longe de mim, acredite-me por favor.
Este meu jeito de não me saber expressar sem ser através de metáforas e de frases de conteúdo abrejeirado, deixa por vezes a pairar alguma desconfiança acerca do seu sentido. Porém caro professor, reafirmo, não foi minha intenção desrespeitá-lo, aceite por favor o meu pedido de desculpas pela forma como dirigi o comentário anterior.

Massano Cardoso disse...

Desculpas? Qual quê! Eu apreciei imenso o seu comentário. Já estou habituado e confesso que não passo sem eles..
Força Bartolomeu! Quando passar por Santa Comba tenho muito gosto em lhe mostrar "O Senhor da Ponte", a "Memória" o que resta das velhas calçadas romanas e muitas mais coisas, além de tratarmos dos estômagos de forma conveniente...

Bartolomeu disse...

Será com imenso gosto caro professor.
;))

invisivel disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
invisivel disse...

Ao ler o comentário do caro Bartolomeu, fiquei com a sensação de que pairava no ar uma suspeição (valha-me Deus, ia dizer de escutas), sobre a idade do caro Professor Massano Cardoso: terá 99 ou terá 40?
Fui reler o meu comentário e notei que tinha cometido dois erros: escrevi, “ainda”, duas vezes, desnecessariamente. Ora, penso eu, que estes “dois, ainda”, inseridos naquelas frases, poderá levar o leitor a considerar o caro Professor uma antiguidade! Todavia, não foi essa a minha intenção. Foram, apenas e só, dois erros cometidos no exercício duma arte, que não é para todos.
Mas fiz mais: fui investigar e concluí que o Professor Massano Cardoso, é um jovem de mais ou menos da minha idade, o que muito me apraz aqui registar.

Suzana Toscano disse...

Ainda há gente amável em Lisboa, ou é a simpatia do Prof. Massano que é contagiosa? Também há muitos alfacinhas com "raízes" nas suas aldeias, com memória das capelas do Senhor da Ponte ou da Senhora dos Milagres ou, como vi outro dia perto de Bragança, da Nossa Senhora da Pereira. E um amigo falou-me da ermida da Senhora da Dúvida, algures à beira de uma estrada recôndita, assinalando na paisagem tranquila a presença do terrível espinho da hesitação!

invisivel disse...

Senhora da Dúvida?
Nunca de tal Senhora nem de tal lugar, ouvi alguma vez alguém falar!

Suzana Toscano disse...

Duvida, portanto, caro Invisível...

invisivel disse...

Cara Drª Suzana Toscano:

Não! Não duvido! Deus me livre de duvidar da existência de tal Senhora! Quem me dera saber do seu altar, para tantas duvidas tirar!

João Melo disse...

ó professor com estes seus textos sempre intimistas o comentário torna-se dificil.é q a unica coisa que me ocorre é dizer sempre o mesmo : excelente. e que venham mais deles para os ler avidamente.

invisivel disse...

Ok, prontossss....
fico na ignorância de não saber do altar!
:)))