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segunda-feira, 4 de junho de 2007

Tesourinhos esquecidos - I

Não sei se Portugal é o mais evidente exemplo do desprezo que merecem aos titulares do poder político as leis que existem e que eles próprios produzem. Mas é certamente dos mais evidentes tendo em atenção dois fenómenos: a frequência com que se muda de lei em função dos interesses e das conjunturas; mas sobretudo o esquecimento das princípios e regras que vigoram porque não foram revogados e alguns deles constituem mesmo pedras basilares do nosso edifício jurídico, que o mesmo é dizer, do conjunto de valores que ordenam a sociedade política (o Estado) e a sociedade civil.
Ouvi hoje o senhor Secretário de Estado Eduardo Cabrita defender a cessação do mandato dos autarcas eleitos logo que alvo de acusação em processo-crime. Noutros tempos tinham-se levantado os pais, tios e primos da Constituição. Hoje a coisa, apesar de bárbara, passa com a complacência das élites, rendidas à ideia de que valores só os económicos, princípios só os que equilibram orçamentos.
Ainda pensei deixar aqui uma nota de profunda revolta por uma proposta de um governo que se diz defensor de um Estado de Direito mas que, para além do mais, aceita como um bem colocar nas mãos das polícias e do ministério público a subsistência de mandatos populares, confundindo o espaço da política com o que é matéria da Justiça, substituindo-se ao juiz e mandando às malvas o princípio do contraditório que só de pleno se realiza em julgamento. Pensei em assinalar, mais uma vez, a tentativa de tão grosseira violação do princípio da presunção da inocência.
Prefiro a pretexto, porém, iniciar hoje e aqui uma série de apontamentos sobre princípios ou normas jurídicas em tempos consideradas a essência de um Estado de Direito, caídas paulatinamente em desgraça.
Trarei aqui de vez em quando os tesourinhos esquecidos do Direito português.
Comecemos pela Constituição, que em tempos se dizia que estipulava no seu artigo 32º (garantias do processo criminal) o seguinte:
  • (...)
    2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
    (...)
    4. Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais.
    5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
    (...)
    8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.

6 comentários:

Massano Cardoso disse...

Fiquei confuso e altamente surpreendido.
Esta atitude põe em causa princípios basilares que não podemos permitir e que são a essência da vida moderna.
Assusta-me, porque a partir daqui qualquer um fica vulnerável a caprichos ou a interesses maldosos. Basta abrir uma nesga...
Novos "Pina Maniques"?!

CHEVALIER DE PAS disse...

e se a pessoa estiver sob efeito de uma anestesia geral, é válido o que se obtiver como prova científica o ADN assim obtido?
Caros doutores, parece-me que se estão a esquecer desta prova, esta sim, altamente moderna!

Mas porque será que eu tenho a sensação que eu não estou ligada com a net propriamente dita, mas sim dentro de um, um caleidoscópio!

Virus disse...

Queime-se a CRP, já não vale nada... nem para limpar o rab...chão!!!

O que vale é que à partida todo o individuo é culpado até provar a sua inocência em Tribunal... e mesmo aí é só se os media aceitarem!

Se um qualquer caramelo quiser impedir outro de se candidatar a uma Câmara basta fazer uma queixa crime com base num argumento qualquer, por mais dúbio que seja, e por menos provas que tenha e o MP tem que investigar e o acusado é considerado Arguido... a partir desse momento os seus direitos enquanto cidadão estão limitados...

É uma boa maneira de impedir certas pessoas de aceder a lugares públicos.

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

José Mário
Intolerável e perigosíssima uma tal medida!
O mundo da política já não vai bem em muitos aspectos, mas colocar nas mãos das polícias e do ministério público os mandatos políticos que o voto popular elegeu, então é o descrédito total da política e da justiça.
E depois há uma coisa que não percebo: porque é que o Secretário de Estado apenas referiu a aplicação da sanção aos autarcas!

Suzana Toscano disse...

Bela ideia, essa dos tesourinhos, as surpresas que o Zé Mário nos reserva! Vai ver que as antigas interpretações dos tesourinhos já foram substituidas por leituras "actualistas", passando a ser "absoluta normalidade e evidência" o que era antes puro escândalo.

Tonibler disse...

Parece-me relativamente óbvio que tal estupidez é inconstitucional. Até porque os autarcas têm legitimidade democrática própria e, por acaso, o secretário de estado, não. Claro que nada disto quer dizer que o Tribunal Contitucional não considere a medida como "tedencialmente" democrática ou coisa que o valha...