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quarta-feira, 23 de junho de 2010

Orvalho de São João

Véspera de São João. A manhã apresentou-se com um colorido cinzento prenunciador de uma tarde quente. Faltou o orvalho, cujas gotinhas, muito suaves e cálidas, são de encantar. Afagos de lembranças de muitos dias de São João.
Fui à terra, porque à tarde tinha de participar numa reunião do Conselho de Segurança. Como ainda não eram horas para almoçar, aproveitei para desfrutar o tempo lendo o jornal e saborear um café debaixo de um chorão adolescente mas viril e viçoso. Ainda consegui deitar uma olhadela a três páginas do livro “Margarita e o Mestre”. Livro fabuloso e, ao mesmo tempo, inquietante. Foi quando me interromperam, convidando-me para ir almoçar à feira. – À feira? Ah! Sim, hoje é quarta-feira, dia de feira. Não me fiz rogado e acompanhei-os. Nem perguntei qual era a ementa, vi logo que deveria ser frango assado. Com esta é a terceira vez que vou ao Teixeira. As outras duas foram durante a campanha eleitoral para as últimas autárquicas. Recordo que foi muito agradável, quer pelo convívio quer pelas histórias que ouvi, além de ficar a saber que frango assado com vinho branco fresco é mesmo bom. Desta vez não fiquei de boca aberta quando me puseram em frente uma valente pichorra do dito. As razões para esta opção são muito fáceis de explicar, o tinto da feira não presta. Uma razão como qualquer outra. Mas esta ao menos é válida. Sentámo-nos na mesa mais afastada do assador, para não sermos vítimas da mesma violência que os pobres frangos, debaixo de um toldo. Os animais vinham trinchados em peças muito pequenas, mas saborosas, inundadas de picante. Não estava com muita fome, mas foi sol de pouca dura, porque ao meter o primeiro bocado na boca fiquei com um apetite dos diabos. Até as próprias batatas fritas, com as quais tenho de me acautelar por razões de conflito metabólico, perturbaram a minha razão. E, assim, calado, deixei aos meus parceiros a primazia na conversa, enquanto ia, de peça em peça, de asa em asa, de coxa em coxa, dando cabo dos pobres animais, ao ponto de, por instantes, ter ficado com um problema de consciência ao recordar o “Diálogo do Frango e da Franga” de Voltaire! Mas um delicioso trago do saboroso e fresco branco conseguiu, rapidamente, afugentar a alegoria do filósofo.
Conversas de ocasião, histórias, relatos e comentários, uma miscelânea típica a refigurar a própria vida das feiras com as suas encantadoras diversidades.
Uma das histórias fez-me estremecer de alegria, porque pensei que o meu colega de infância já era avô. Mas acabei por verificar que tinha sido fabricada durante uma viagem para brincar com o meu amigo. Confesso que antes de ter detetado a tramoia fiquei aborrecido por não me ter dito nada. Não posso esquecer que pertencer ao clube dos avós é algo de muito importante, dá-nos um estatuto único e devemos partilhá-lo. Afinal foi uma construção urdida para lhe criar algum embaraço. E não foi difícil perceber isso. Enfim, só a amizade pode gerar estas historietas.
A outra história prende-se com facto de o recinto da feira estar no corredor de entrada e saída dos helicópteros. Os Kamovs são umas bisarmas e fazem um estardalhaço tal que, em dias de feira, levam tudo pelo ar e, depois, quem tem de pagar os prejuízos é a câmara. Há tempos, o helicóptero ao levantar voo sugou literalmente a tenda dos comes e bebes. O efeito aspirador foi de tal ordem que até os frangos voaram, assim como os ossos dos pratos. Só não voaram os que estavam a ser assados e bem presos na grelha. O pior foi a seguir quando começou a chover ossos de frango na feira! Desta vez foram roupas e tendas, 258 cuecas de senhora, 83 casacos e dezenas de meias, a maioria das quais caíram na ribeira. Os feirantes foram queixar-se. Acontece que, como seria de esperar, não tinham faturas, acabando por ser atribuído um valor residual às diversas peças. Perguntei se tinham contado todas. O meu amigo, vereador, disse-me que sim e eu perguntei quem foi o desgraçado. Quando soube ri-me, porque não consigo vê-lo a contar as cuecas peça a peça e ainda por cima enlameadas. - Vê lá tu. Isto não pode continuar. Estamos a pensar em distribuir os feirantes pelas ruas e sair daqui. Da outra vez tivemos que pagar 1.500 euros aqui ao Teixeira dos frangos, e agora foram mais 3.500. Enquanto me contava mais este episódio, reparo que estava mesmo ao lado da ribeira junto a um daqueles faróis próprios da aeronáutica. Pensei: - Estou com sorte. Hoje ainda não levantaram voo, senão ainda poderia levar com uma chuva de ossos de frango - é que o meu prato já estava cheiinho -, ou com uma chuva de cuecas de senhora ou até cuecas com ossos! Chuva por chuva prefiro o orvalho de São de João.
O almoço soube-me bem, a companhia encheu-me o espírito e o ambiente aldeão libertou-me da ansiedade do dia-a-dia.

9 comentários:

Bartolomeu disse...

Já se conhecia o roubo por "esticão" e por "arrastão", a nova modalidade que o Sr. Professor nos relata, por "sucção" assim que seja aprefeiçoada, irá constituir certamente, o furor da ladroagem.
Por enquanto, os artigos furtados, ainda são devolvidos, mas um dia virá, em que deixarão as cuecas femininas de ser o móbil e outros valores mais altos, passarão a elevar-se nos céus... sem retorno.
Bela estória, Senhor Professor, a confirmar que entre cuecas e helicópeteros, existe uma forte incompatibilidade!
;)

Catarina disse...

Esta foi uma estória bem saborosa! : )

Anónimo disse...

É verdade!

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Professor Massano Cardoso
Se a história dos frangos, cuecas e ossos a voar não fosse contada por si acho que não acreditava. Há coisas que só mesmo vistas.
Realmente parece avisado mudar o local da feira.

Suzana Toscano disse...

Estou com a Margarida, só visto ou contada por si! Mas esta estória fez-me lembrar a feira de Mafra, que era no 3ª sábado de cada mês, apesar de não ter comes e bebes era sempre uma animação para as compras. Acabou, como muitas feiras que havia por aí, não sei se por zelo da ASAE se por modernidade da urbe, mas foi pena.

Suzana Toscano disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Pratos de Ouro disse...

http://quadratura-do-circulo.blogspot.com/

Bartolomeu disse...

Não tem nada a ver, é simplesmente um aparte meu, coisa de néscio... Sempre que oiço falar em "quadratura do circulo", ocorre-me a figura daquelas pessoas do campo, quando íam às feiras e às romarias e colocavam no toutiço, o lenço de assoar com um nó dado em canta canto, para se protegerem do sol.
É evidente que este processo era ao inverso, ou seja; era a tentativa de tornar o quadrado, circular, adaptando-o desse modo ao toutiço.
A dificuldade toda surgia, quando o toutiço se apresentava mais quadrado, que redondo, ou... paralelipipédico, assim... tipo uma pedra da calçada, mas... em graaande!
;)))

Sargento do Templo disse...

Essa coisa de paralelos - ou as pedras em forma de cubo - faz-me lembrar os "jardins" de pedra e pó de Santa Comba Dão, a cuja feira semanal se reporta o presente artigo da autoria do Prof. Massano Cardoso.

Entretanto, o Professor - que é pessoa muito ligada a estas questões do ambiente e do bem estar das populações - reconhecerá, concerteza, que o heliporto em questão - e que tantos ossos de frango e cuecas de senhora tem mandado ao ar - já há muito estava instalado no sitio em que se encontra.

Isto apenas para dizer que foi uma péssima opção do actual executivo camarário ter deslocado a feira semanal para o terreno onde agora se encontra.
Além disso, aquele terreno onde se encontra a feira actualmente podería ter sido utilizado para ali se construir um pequeno parque verde - já que em Santa Comba Dão as zonas verdes são diminutas e em número muito reduzido, o que faz com que os dias de Verão sejam de autêntico sofrimento para quem tem de andar pelas ruas, tal é a desarborização feita nessa terra de que o Professor é - e com devido mérito! - Presidente da Assembleia Municipal.
Confiante na sapiência dos conselhos do Professor Massano Cardoso, veja o que pode fazer pelo bem estar dos municipes.

Cumprimentos Sinceros.