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sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Cristo

Ainda hoje recordo com nostalgia os momentos das férias, que aspirava ansiosamente, não para descansar, porque energia era coisa que não faltava na altura, mas para desfrutar mais à vontade as brincadeiras e as festividades que os embrulhavam. Quantas recordações desses tempos me acariciam o pensamento.
Mas não se pense que não tinha de dar, também, o meu contributo para as festividades. Dava, e com muito gosto. Nessas alturas, a turbulência infantil desligava-se, momentaneamente, quando era encarregado de limpar com cuidado um Cristo de marfim, que vinha do antigamente. Limpar o Cristo não era a mesma coisa que limpar as pratas com o “coração limpa metais”. Tinha que ser feito com o coração e o máximo de respeito. A minha avó, na altura da Páscoa, encarregava-me dessa tarefa. Em primeiro lugar retirava o pó, e, depois, com um pano embebido em água dava-lhe o tradicional banho, olhando sempre para a face, tentando observar se não estaria a incomodá-lo, porque quando me esfregavam a fuça, faltava-me sempre o ar, e eu não queria problemas. O olhar do Cristo era forte, não revelava propriamente sofrimento, mas intimidava, impunha respeito, era como se fosse um rei e era bonito. Ao longo dos braços compridos viam-se as veias, coisa que eu nunca tinha visto em mais nenhum, e imaginava o sangue a correr. Também não tinha as chagas, o marfim é duro. Por mais voltas que lhe desse não conseguia retirar aquele amarelo, nalguns pontos a descair para o torrado, mas, apesar de tudo, ficava com outro aspeto, sobretudo quando o expunha ao sol a” secar”. O amarelo, que parecia ser sujidade, passava a brilhar de forma dourada a responder ao sol na mesma moeda.
No domingo de Páscoa ficava na mesa, no meio da sala, rodeado de tudo quanto era bom, à espera do compasso. Aos pés, numa salva de prata, um envelope com dinheiro. Quando ouvíamos a sineta a avisar a chegada, corríamos todos para a sala. Entrava o puto a ribombar o sino, e a repetir a ladainha da ocasião, acompanhado pelos demais. Será que este ano alguém irá reparar no Cristo e dizer ao menos que é bonito? Era a pergunta que colocava sempre, porque o Cristo que nos davam a beijar era frio, de metal, uma imitação que não chegava aos calcanhares do “meu”. Mas não, nunca disseram nada. O homem da pasta de cabedal só se preocupava com duas coisas, recolher o envelope e enfiar mais um copo a tantos outros, ao ponto de não dizer coisa com coisa, nem olhava para o Cristo, e mesmo se olhasse devia vê-lo a duplicar ou a triplicar e muito embaciado; os outros despachavam-se fazendo deslocar o metal debaixo dos nossos olhos e bocas, mas mesmo assim ainda tinha tempo para ver que não tinha a categoria do rei da mesa. Esse sim é que merecia ser beijado. O padre, blá, blá, blá, corado, testa cheia de suor, espalhava a água benta por cima dos bolos e guloseimas sem se aperceber do Cristo de marfim, com enfado e desejoso de se ir embora. O pessoal acompanhante aproveitava o momento para enfardar novamente as suas panças de gula pascal, e eu ficava, mais uma vez, aborrecido por ninguém ter dito nada sobre o Cristo. No final do dia, colocava-o no seu poiso, a aguardar a Páscoa seguinte.
A vida roda e nunca mais soube dele. Acontece que há algumas semanas vi-o em casa de um familiar. Foi o suficiente para recordar numa fração de segundos tantos episódios. Não o cobicei, mas uma sensação de vazio foi-se construindo dentro de mim, sem me aperceber, até que, por uma mera casualidade, acabou por cair em minhas mãos, preenchendo esse espaço repleto de lembranças prontas a serem vividas.
Está mais escuro, sujo, até mais magro e um pouco triste, embora não tenha perdido aquele ar de rei, de senhor, e continua detentor de uma beleza que as imitações não conseguem atingir, as próprias veias dos seus longos braços deixam transparecer o sangue a circular; é quente, não é frio, mas está a precisar de um bom banho, tomara, há decénios que ninguém o limpa como eu fazia. Sei que não é Páscoa, estamos no Natal, mas é um bom momento para o fazer. Daqui a uns dias já deverá estar mais composto, com outro aspeto, mais alegre e, decerto, mortinho para reviver alguns episódios, meus, porque com a idade que tem quantas e quantas histórias não ficaram por contar...

4 comentários:

Bartolomeu disse...

Após tantos textos e tantas leituras desses textos escritos por si, caro Professor e Amigo, começo a sentir a confusão de não saber, de qual eu gosto mais.
Este, é realmente o melhor, não posso duvidar que o seja.
Porque, como muitos outros fala.
Fala de si e do seu olhar, da forma como sente e como intreperta o mundo que o rodeia e, da forma como o transmite.
Esta, clara, directa e isenta, recordou-me uma crítica de Saramago, relativamente ao seu livro "O Evangelho segundo Jesus Cristo". Nessa crítica, Saramago refere a figura humanizada de Jesus, como Homem concebido a partir da relação sexual entre Maria e José, num ambiente "especial", a qual pela forma como se relacionou com os povos e o mundo, no fundo lhe é grata. E O seu Cristo, caro Professor? Quem o terá concebido?
Onde terá o escultor do Cristo de marfim, ido buscar a inspiração, a visão que lhe conduziram a mão e o cinzel que transformaram o pedaço de marfim, que antes terá sido um dente de elefante, ou... uma barba de baleia, nessa imagem tão bela e tão expressiva a que(m) o menino Salvador, deu, carinhosa e respeitosamente banho, durante tantos anos?
;)
Um grande Abraço, meu Caro Amigo!

Pinho Cardão disse...

E agora, caro amigo Professor, aposto que serão os seus netos a dar banho á bela e nostálgica escultura sob os seus olhos atentos, ternos e vigilantes.
Belo texto, caro Professor.

Suzana Toscano disse...

Lindo texto, como sempre, subscrevo o que diz o caro Bartolomeu, quanto à dificuldade da escolha. O garoto de então fixou quanto é importante repararmos nos pequenos gestos dos outros, sentiu-se triste porque ninguém reparava no trabalho que tinha tido e no seu contributo para que tudo estivesse impecável para a visita do padre, o brilho do Cristo era uma parte essencial da festa. Muitas vezes os crescidos, em particular as donas de casa que gastam horas e horas a arranjar as casas, a escolher os enfeites de Natal e, por fim, a esmerar-se nos cozinhados, sentem essa indiferença. Talvez esta crise nos permita voltar a dar importância ao que não se compra mas que transmite tanto afecto e empenho no bem estar dos outros.

Catarina disse...

Qualquer que seja a composição química dos seres, estes estão sempre em “boas mãos” quando estão com o professor Doutor Salvador Massano! : )