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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A lição de caligrafia





“Levanta-te, filho, que já luz o buraco!” Foi assim que, durante uma lição de caligrafia, o meu avô começou a contar o episódio da sua infância que havia de o marcar para sempre.
Na pequena casa da aldeia onde viviam, a mãe acordava-o de manhã para ir à escola logo que a luz entrava pela pequena janela do quarto do fundo, cuja vidraça fosca apenas deixava adivinhar o raiar de um novo dia.
O pai, levado muito novo por uma febre tifóide, tinha sido escrivão, usava uma manga de alpaca e ainda ali estava o pedaço preto e lustroso do tecido, a comprovar o zelo que ele punha quando alinhava a sua bela caligrafia nos papéis da repartição.
Ele ia à escola com muito sacrifício. Não que não gostasse de aprender, pelo contrário, o seu sonho era saber escrever numa linha direita, com mão firme, com letras tão elegantes como as que o seu pai tão bem soubera fazer, mas o seu coração apertava-se ao chegar à porta, às vezes chorava um pouco no caminho, e esse desgosto tinha uma explicação.
Logo no primeiro dia a mestra lhes mostrou as letras, desenhando na lousa, em grande tamanho, as formas caprichosas das vogais. Ele quis aplicar-se a imitar aqueles arrebiques, gostava de ver os riscos a ganhar forma e ansiava por aprender a desenhá-los, agarrou o pedaço de giz com a mão esquerda e iniciou um traço incerto no desenho. Concentrava-se, ansioso, no seu trabalho, quando viu a sombra da mestra junto a si, o negrume do seu vestido austero e a palmatória na mão, levantada de súbito a bater-lhe num golpe que o fez cegar de dor. “Não é com a mão esquerda que se escreve, que isso não volte a acontecer, não te ensinaram a usar a mão direita? Não quero canhotos aqui na sala.”
Foi um tormento para se habituar a usar a mão direita, que não lhe obedecia com a prontidão e a firmeza da mão esquerda, a mestra chegava a atar-lhe a mão à cadeira para que não fizesse batota mal ela virasse costas. Passou a espiar a mão esquerda, a cortar-lhe o impulso de se adiantar para pegar nas coisas, e, com o treino, as palmatoadas espaçaram-se e as letras lá se iam alinhando com aprumo.
Quando saíu da escola começou a ir para a oficina de marcenaria do tio, que queria ensinar-lhe o ofício, e de novo aí se concentrava no manejo das mãos para disfarçar que era canhoto. Foi quando pensava que já se tinha habituado a usar a mão direita que lhe aconteceu o acidente.
Nesse dia tinha que cortar uns madeiros, talhá-los mais finos e prepará-los para o tio lhes dar a forma final. Arregaçou as mangas e começou a assobiar, descontraído. O instinto levou-o a agarrar o machado com a mão esquerda, era um trabalho difícil que exigia precisão, mas o tio andava por perto e ele corrigiu de imediato a tentação. Com a mão esquerda agarrou no madeiro, com a direita o machado, calculou a força necessária mas atraiçoou-o a precisão do golpe, a mão direita não lhe obedeceu e a esquerda não teve tempo de fugir, o machado acertou em cheio no indicador da mão esquerda, decepando-o sem dó.
Não gritou logo, ficou a olhar especado a sua mão mutilada que começava a sangrar abundantemente e, quando o tio lhe acudiu, gritando de aflição, deixou-se cair desfalecido, ouvindo apenas vagamente a palavra “canhoto” e “desajeitado”, que lhe doeram mais do que o dedo perdido.
O meu avô terminava a sua história abanando a cabeça numa eterna censura muda, enquanto tocava ao de leve no coto arredondado da mão esquerda, onde devia estar o dedo indicador. Depois, retomava a caneta de tinta permanente com a mão direita e exigia a atenção da neta para a lição de caligrafia. Inclinava um pouco o aparo até ajustar a firmeza do punho e desenhava as letras com aquela forma aguçada, inclinada e firme, pegando-as umas nas outras com uma disciplina tão rígida que parecia que o espartilho das duas linhas as impediam de respirar. No seu desenho pontiagudo e muito alinhado, cada letra parecia suster a força de uma farpa certeira apontada aos céus.

12 comentários:

Bartolomeu disse...

Doce, trágico e tremendamente real.
Quantas mestras, (parafraseando Camões) lá no assento etéreo onde subiram, se memória desta vida lhes for consentida, se arrependerão dos métudos duros de que se serviram, em nome da defesa de preconceitos da época que hoje, finalmente são entendidos e acarinhados, quando não, incentivados.
Mudam-se os tempos...
A propósito, aproveito para perguntar à estimada Drª Suzana e a quem souber, por notícias do nosso estimado Professor Massano Cardoso.
À demasiado tempo, não nos é dado o ensejo de apreciar também, os seus maravilhosos textos.

Bartolomeu disse...

PS.
Guardo ainda, dentro da caixa original, a caneta de tinta permanente, com que fiz o exame da quarta classe, escrita em papel azul de 25 linhas.
Só que a minha, não é da marca "Montblanc", como a da imágem... os pobres distinguem-se.
;))))

Suzana Toscano disse...

Eu também ainda guardo a minha, caro Bartolomeu, a primeira caneta de tinta permanente era uma espécie de chancela quanto à competência caligráfica e académica comprovada com o sucesso nos exames da 4ª classe e de admissão aos liceus. Não faço ideia de que marca é, mas sei que a usei durante muitos anos.

Ana Rita Bessa disse...

Ao acompanhar o desenrolar da história, imaginei que fosse suceder um acidente. Mas confesso que esperava que o corte fosse sobre a mão direita, para que este homem pudesse concliar-se com a sua natureza e, paradoxalmente, encarnar a sua pele.
Gosto de simple happy endings, mas aprendo que a vida tem mais densidade do que do isso...

Bartolomeu disse...

Cara Drª. Suzana,
A minha caneta, comprada em 1964, é da marca Kreuzer, de origem germanica, e ainda se encontra acompanhada da garantia nº3800453, assinada pelo Sr. J. Kreuzer.
;)
Aprecio bastante canetas de tinta permanente e relógios mecânicos, especialmente de bolso. Possuo alguns exemplares, tanto de uns, como de outros. As canetas, uso somente em casa, os relógios, por graça, uso-os no bolso presos a uma corrente de prata, por sua vez, presa à presilha das calças, uma vez que não trajo de colete.
;)))
Mas dá um gosto imenso, observar a reacção das pessoas, quando me vêem retirar o relógio do bolso, para saber as horas.
;))

Suzana Toscano disse...

Lamento, cara Ana Rita, a vida nem sempre contemporiza com a natureza e ele acabou mesmo por deixar de ter o dilema, ficou condenado a escrever com a mão direita. Mas, se sempre teve uma caligrafia impecável, já em qualquer trabalho de bricolage era um desastre, como ele próprio dizia, "nunca teve jeito de mãos",e o ofício de marceneiro ficou por ali.
caro Bartolomeu, olhe que a moda dos relógios de bolso está a voltar, pode dizer-se que é um vanguardista nessa matéria :)(ou que os ciclos da moda são uma fatalidade).

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Suzana
Realmente ninguém domina o destino. Quem diria que aquelas reguadas tão injustas acabariam por ter alguma utilidade? Mas o acidente não justifica a prepotência e a severidade tão próprias das professoras austeras da escola primária daqueles tempos e, mesmo, do nosso tempo.
A vida tem muitas surpresas, muitas coincidências e muitos desencontros. Nada acontece por acaso...

JotaC disse...

Cara Dra. Suzana Toscano,
Esta história contada na primeira pessoa é também uma lição de tolerância com aqueles que em todos os momentos da vida não souberam aceitar as diferenças dos outros, acabando por lhes infligir dor e sofrimento. Apesar de sabermos que há um bom punhado de anos atrás era normal encarar as vicissitudes da vida com resignação (já que as sequelas traumatizantes, ou as “desculpas” que influem o comportamento são coisas modernas !?), não posso deixar de enaltecer a elevada formação moral do seu avô, pois não se vislumbra nesta memória nenhuma réstia de rancor…
Excelente texto.

Suzana Toscano disse...

Margarida, o que acontece é que há pessoas que conseguem dar um sentido ao que lhes acontece e outras que não...
Caro Jotac, naquele tempo considerava-se que ser canhoto era "um defeito" a corrigir, por isso ele não guardou rancor a quem agia "por bem". Nem imagino o que ele pensaria se visse o Presidente dos Estados Unidos, o ídolo Obama, a assinar os documentos com a mão esquerda! Ainda bem que os tempos mudaram para melhor, distinguindo-se diferenaças de defeitos, pelo menos poupa-se muito sofrimento.

zamot disse...

Viva.
A história mesmo sendo trágica é muito bonita.
Como marceneiro, não posso deixar de achar que o mau da história terá sido o tio. Melhor, terá sido mau mestre.
O meu mestre de talha, Mestre Abrantes, ensinou-me a trabalhar com a goiva e a maceta tanto com uma ou com a outra mão. Mas antes disto, ensinou-me que nunca uma mão pode estar no caminho de uma lâmina.

Suzana Toscano disse...

Caro zamotanaiv, excelente observação, nunca tinha pensado nisso mas tem toda a razão. Há anos fiz um breve curso de culinária e, como já tinha muitos anos de prática para alimentar a família achei um bocado ridículo quando o chef começou por nos ensinar a pegar nas facas e depois nos legumes, insistindo na posição dos dedos para nunca ficarem "no caminho da lâmina" como diz. É claro que percebi imediatamente a diferença que vai entre "ajeitar-se" e saber fazer as coisas, com especial relevo para o saber-se fazer em segurança.
Obrigada pelo seu comentário.

zamot disse...

Ora essa!
cumprimentos!