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terça-feira, 2 de abril de 2013

A boneca


Uma reunião de trabalho ao final da manhã levou-me a alterar as rotinas. Aproveitei as duas horas a mais, num dia a menos, para ler os jornais.
Toca a campainha. Àquela hora só podia ser o neto do meio que vinha passar o dia com a avó. Abro a porta e deparo-me com o menino, cada vez mais lindo, de mão dada com a mãe, transportando com a esquerda um cestinho com laços azuis, que, em tempos, foi utilizado para as suas "coisinhas" de bebé. Dentro do cesto dois bonecos. Transportava-os com cuidado. Depois dos cumprimentos, perguntei-lhe como é que se chamavam.
- Este é o Francisco e esta é a Joana Francisca.
- Muito bem. Que idade é que eles têm?
- O Francisco tem dois anos e a Joana dois meses.
- Ah, pois! A Joana é mais pequenina. Gostas deles?
- Gosto. E, de uma forma muito doce para o que é habitual, deitou-os e cobriu-os com uma ternura que me tocou. Depois, conversámos um pouco e soube que tinha matado os monstros, todos. Gosta de brincar com alguns jogos computadorizados, que muitos consideram como violentos, assim como outras práticas reveladoras da existência de níveis de testosterona, que, embora baixos, são mais do que suficientes para exteriorizar a agressividade típica dos machos. Nada que me incomode, porque a agressividade é desejável e passível de "domesticação", o que só se pode fazer caso se manifeste, como é óbvio.
Surpreendeu-me o seu ato, um desvelo que já me tinham contado, porque o safado é mesmo um traquina.
Considero muito agradável o comportamento do miúdo, coisa que não acontecia noutros tempos, em que brincar com bonecas era visto como sinal de mariquice e objeto de gozo por parte de outras crianças e, até, adultos. Ainda hoje é possível observar esta disfuncionalidade mental.
Ao olhar para os "manos", lembrei-me de uma boneca de uma amiga minha com quem brincava em pequeno. Tinha lindos cabelos louros. Os olhos abriam e fechavam quando mudava de posição, revelando, em pé, duas lindas pupilas azuis que brilhavam como se tivesse vida. O vestido, de cor-de-rosa, ornado com rendas, fazia sobressair o olhar azul e os lábios sorridentes. Não gostava muito da cor, faltava-lhe sangue para avermelhar a pele "amarelada". Mesmo assim, encantava-me. Pedia-lhe para que me deixasse pegar-lhe. Ela deixava e ria-se. Eu levantava-a e deitava-a vezes sem conta para vê-la a abrir e a fechar os olhos. Nunca tinha visto nada assim. - Como é que ela faz isto? Perguntava, silenciosamente. Sempre que ia a sua casa, brincava com a "loura de olhos azuis", mas às escondidas, porque diziam que os meninos não brincam com bonecas. Maricas! "Menina"! Eram alguns mimos, entre outros.
Um dia, a doença má atacou a localidade. Alguns meninos morreram. Eu adoeci e a minha amiga também. Eu adoeci primeiro. Ela adoeceu quando eu já estava bem. Ela morreu. Tínhamos cinco anos. Levaram-me a sua casa. Estava deitada com olhos fechados, vestida como uma boneca. Aos pés da cama estava deitada, também, com os olhos fechados, a "loura de olhos azuis". Olhei para as duas e vi que a cor da pele era muito parecida, amarela, sem sangue a correr para dar cor. Toquei-lhe, a pele não tinha o calor dos dias de brincadeira, estava fria. Ainda pensei em levantá-la para ver se abria os olhos como a boneca, mas tiraram-me do quarto, dizendo que já chegava. Saí. No dia seguinte voltei e fui atrás dela. A carreta negra, com dourados muito feios, transportava a pequena urna branca. À frente, a irmandade, vestida de negro, com bandeiras estranhas, assustou-me, mas mais assustado fiquei com o som da matraca. Um som que perdura e que nunca esqueci. Só se calou no cemitério. Foi a primeira vez que entrei naquele espaço e vi colocar a urna na cova que me pareceu muito funda e escura. Olhei para o fundo. O sol deixou de iluminar o branco. Uma sombra fria cobriu a urna e fiquei a pensar se a boneca loura de olhos azuis estaria a fazer-lhe companhia. Nunca mais vi a minha amiga e a sua boneca.
Agora, ao meu lado estão os "manos" dentro do cesto. O meu neto foi brincar durante a tarde e, como não voltou a casa, não os levou, mas telefonou à avó para que tomasse conta dos seus "filhos".
- Tomas conta dos meus filhos, vovó?
- Tomo, está descansado.
- Amanhã, levo-os.
- Está bem.

4 comentários:

jotaC disse...

Muito bonito...

Bartolomeu disse...

Habituei-me em criança, a acreditar que os velhos são perpétuos.
Quando era criança, os velhos não morriam. Quando muito, ficavam doentes, de cama e, depois desapareciam.
Mas, recordo-me perfeitamente que os velhos da minha infância, tinham um cheiro agradável, mesmo os mais humildes possuíam um cheiro especial. Hoje, sei que esse cheiro especial, se denomina por sabedoria.
Os velhos da minha infância eram inteiramente, completamente sábios. Mas, mais sábios eram, porque possuíama a avidez de oferecer essa sabedoria aos mais jóvens. E eles; nós os mais jóvens, recebia-mo-la com gosto, com inteiro prazer, como o mais apetitoso doce, ou o mais desejado brinquedo. Hoje, interpreto-a como uma dádiva.
Eu brinquei com bonecas. Conta a minha mãe, que o meu pai pouca graça achava à minha preferência.
Freud, num estudo que publicou acerca de Da Vince, concluia que a sua homosexualidade se devia ao facto de ser filho ilegítemo e de ter sido criado e educado, exclusivamente pelo pai.
Da Vince, que foi impedido de obter formação académica, devido à sua condição social, foi no entanto uma mente brilhante, alguns consideram-no até, o "Pai da Ciência".
A convivência que mantive em criança, com pessoas mais velhas, o carinho e as dádivas que deles recebi e qui-ça, o meu apreço por bonecas, foram responsáveis, creio, pela formação, em parte, da minha personalidade. Segundo o testemunho da minha mulher, soube ser um bom pai.
E o pequeno, tudo indica que está no bom caminho.
;)

Suzana Toscano disse...

Uma história triste, deve ser terível para uma criança ter a consciência da morte de um companheiro de brincadeiras, hoje poupar-se-ia isso a uma criança, não sei se bem se mal.
Muito bonito também o comentário do caro Bartolomeu, a lembrar as suas preferências por bonecas, acho que todos os rapazes tinham um bocadinho de fascínio pelas nossas bonecas, veja-se como o Massano Cardoso se lembra tão bem dos olhos azuis! Já agora devo dizer que me irritavam as bonecas de olhos azuis, porque toda a gente as achava lindissimas e nós, as meninas de olhos castanhos, ficávamos um bocado ciumentas :) Eu tive uma boneca preta, cheia de caracóis e os lábios cor de baton, era uma beleza, de longe a minha preferida...

Massano Cardoso disse...

As bonecas com olhos azuis fascinavam, sem sombra de dúvida. Desconhecia os "ciúmes" das meninas de olhos castanhos.
Quanto ao assistir à morte em pequeno, tenho várias experiências, as quais ajudaram-me muito, e continuam a ajudar-me. Aprendi a lidar com a morte de uma forma que me surpreende. Na altura, os meus pais e avós colocavam-me perante a mesma e não me escondiam nada. Afinal, a "morte é uma facto como a vida", segundo li há pouco no livro que descrevi no post "Óscar". Por vezes até sinto um certo "remorso" pela forma como a encaro, mesmo nos familiares mais próximos, mas não é por uma questão de insensibilidade, mas sim como algo "normal". Eu sei que é normal. Respeito a morte e respeito a vida. Perante a morte consigo controlar os meus sentimentos e emoções, muito melhor do que certos acontecimentos da vida. Porquê? Bom, talvez eu saiba. Comecei a ver mortos muito cedo e vi mesmo pessoas a darem os últimos suspiros. Habituei-me? Não, aprendi a vê-la de outra forma. Hoje, as crianças não veem a morte.
Faz falta ver a morte...