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sábado, 13 de abril de 2013

"O sol quer brincar..."



Conheço o sol há muito tempo, muito para mim, claro, porque para ele eu não valho um espirro de uma formiga. Mesmo assim, já o conheço suficientemente para dizer que pode ser louco, irrequieto, tímido, mau, meigo, mortal, amoroso, triste, enfim, nunca vi nada na minha vida parecido com as suas múltiplas facetas. Bem mais previsível é a sua sombra da noite, a lua, sempre discreta, fria, com laivos permanentes de uma enigmática tristeza, apenas suspensa durante belos momentos em que, cheia que nem um odre de vinho, se levanta no horizonte encharcando o espaço de um abraço acobreado, despertando e transformando seres que só ela conhece.
Agradeço ao sol algumas das mais belas e inesquecíveis imagens gravadas com raios tépidos no corpo e na mente de uma criança. Ansiava por esta altura do ano, embora não tivesse ainda muitas memórias de outros. Imaginava que fora sempre assim.
O sol ensinou-me a compreender o sentido de muitas palavras e as estações do ano. Afinal de contas não eram as velas do bolo do aniversário, e nem as prendinhas, que marcavam um novo ano, mas sim a repetição de um belo ritual, o prolongar do dia, o corar do céu ao final da tarde, o ir para casa mais tarde e as brincadeiras na laje de cimento aquecida pelo calor da tarde. Quando desaparecia, atrás da serra, ficava a saboreá-lo através do calor que irradiava do chão, onde desenhava, com um giz pifado da escola, estradas tortuosas por onde teriam de andar as caricas, imitando os ciclistas, como se fosse uma volta a Portugal. Tinha de ter cuidado ao disparar com o dedo médio, porque se saíssem das linhas traçadas tinham de voltar ao início. O sol ficava intrigado com o jogo, mas quando ia perguntar o que é que eu estava a fazer, já a serra o tinha escondido. - Deixa lá, amanhã digo-te. Quando começava a desenhar novamente, no dia seguinte, ao final da tarde, novos trajetos para o meu jogo, o sol, curioso, olhava-me com esperança de saber o que estaria a fazer. Quando começava a jogar, a serra começava a tapá-lo e ouvia-o dizer muito à pressa: - O que é que estás a fazer...? - Amanhã digo-te. Entretanto, deitava-me no cimento e gozava com aquele calor que ele me deixava, debaixo de um céu muito vermelho que pintava as minhas pistas, as minhas caricas, dando uma cor muito especial ao meu jogo.
Hoje, o sol despertou de uma letargia, de uma depressão prolongada, e, cheio de humor, fez-me reviver esse período. Só agora me lembrei que nunca lhe disse o que estava a fazer. Digo-lhe agora: - Sabes sol, brincava à  volta em Portugal com caricas de garrafas de laranjada e de cerveja. Tinha que me treinar por causa dos campeonatos na escola. Ficou surpreendido, por só agora lhe ter respondido. - Obrigado. Disse, timidamente, mostrando desejo de brincar. Apercebi-me da sua intenção e perguntei-lhe: - Queres também jogar? - Quero, pois! Respondeu com ansiedade infantil. - Bom, então, que tal jogarmos amanhã? - Sim, sim, jogamos amanhã, mas quem escolhe as caricas sou eu. - Está bem! Podes escolher. Até amanhã. - Até amanhã. Disse com muita satisfação, algo que não devia sentir há muito tempo. E deixou-se cair alegre que nem uma criança ansiosa atrás da serra do Caramulo, vermelho de excitação.
Bom. Pelo menos, sei que amanhã vamos ter um belo dia, alegre e infantil, com o sol ávido de brincadeiras, mas só ao final da tarde, não vá ele despertar mal disposto. Se quer jogar tem que se portar bem...

1 comentário:

Bartolomeu disse...

«...para ele eu não valho um espirro de uma formiga.»
Na minha opinião, está o meu caro amigo inteiramente certo. Tanto para o Sol, como para Deus, tem cada um de nós (o Senhor, Eu e a Formiga engripada), o valor da existência. Um valor para o qual não existe peso nem medida.
Ou pensa o caro Professor que se assim não fosse, o Sol se incomodaria em nascer a cada dia, Deus, teria a sua representação no Homem, ou no espirro da formiga? Naaaa! Não me parece nada.
Quanto a mim, o Sol é como que o cadinho da existência universal, a prova e a experiência dessa existência. Nós... o metal que se vai fundindo nesse vaso, geração após geração, dando origem à renovação, à manutenção, tanto da existência como do Sol, de Deus e da formiga.
Sim... e do espirro também. Que seria de nós, se a formiga não espirrasse, uma vêz que já tinha catarro...
;))