Adiro com gosto à proposta do David Justino de trazer aqui, a propósito dos 31 anos do 25 de Abril, breves reflexões sobre o que foi e o que mudou (e, logicamente, o que não mudou).
Entre muitas possibilidades, evoco o constitucionalismo emergente da Revolução de 25 de Abril.
Fazer uma lei fundamental democrática e pluralista foi uma das promessas da Revolução. O texto originário da Constituição de 1976 viu, no entanto, ser-lhe impressa a marca das ideologias dominantes no aparelho de Estado no período imediato à Revolução.
Mas a Constituição de 1976 não sucumbiu ao império dessa ideologia. Ela representou na conjuntura um compromisso que em muito contribuiu para a paz social. Constituiu um fruto das tensões político-filosóficas entre as elites que emergiram com o 25 de Abril. O texto retrata-as claramente quando exprime de um lado a perspectiva liberal da afirmação e defesa dos direitos individuais; ao mesmo tempo que dá dimensão socializante, nunca vista em textos congéneres contemporâneos, aos direitos sociais. Ou quando nela se expressa o respeito pela propriedade e inciativa privadas e paralelamente se defende a apropriação colectiva dos principais meios de produção...
Mesmo as marcas do marxismo dominante deixadas no texto foram consequência do compromisso que, para alguns, constituiu mesmo condição de sobrevivência nos anos dificeis do período pré-constitucional. O CDS de Freitas do Amaral apresentou à Constituinte o seu projecto de Constituição onde propunha a construção de uma sociedade sem classes...
É em Eduardo Lourenço que encontro a melhor reflexão sobre as marcas ideológicas do texto constitucional originário. Vale a pena alongar um pouco mais este post e citá-lo: "É dificil encontrar um exemplo, não só na Europa, mas fora dela, de um texto constitucional, tão organicamente ideológico, não tanto pela doutrina nele expressa, que embora de hegemónica presença do discurso cultural marxista, comporta «lexemas» de discursos antagónicos, mas pela desfasagem histórica entre a realidade mítica dessa imagem de Portugal «em transição para o socialismo» (outro dos seus temas) e o conteúdo efectivo da sociedade portuguesa a quem o texto era destinado. Nunca o idealismo português, a nossa proverbial tendência para confundir os sonhos com a realidade, ou de viver a realidade de maneira onírica teve, entre nós, uma expressar tão espectacular" - A galáxia ideológica no pós-25 de Abril e as suas raízes culturais in Portugal - O sistema político e constitucional 1974-87 (ICS- 1989).
O devir encarregou-se de neutralizar ideologicamente a Constituição, devolvendo-a curiosamente à intenção genética - democrática e pluralista - do Programa do MFA. Processo que se foi desenvolvendo à medida que o socialismo foi sendo metido na gaveta pelos próprios mentores, aproximando o projecto constitucional de sociedade às realidades da organização político-social com que a larga maioria da população se identifica.
De revisão em revisão constitucional, a matriz constitucional portuguesa emergente do 25 de Abril foi revelando um quadro estável no qual se afirma o respeito pelos direitos, liberdades e garantias e por um vasto elenco de direitos sociais, económicos e sociais; que aposta num sistema de divisão e interdependência dos poderes soberanos; que permitiu a integração sem dor no espaço comunitário europeu.
É certo que sobraram no texto algumas expressões e referências ideológicas. Não fazem parte do projecto constitucional. São os restos evocativos de um período que não pode nem deve ser apagado da história recente de Portugal. Têm o valor que de comum se dá aos vestígios.
O que não mudou? Não mudou a nossa endémica incapacidade de, como sublinha Eduardo Lourenço, passar do sonho à realidade, dos princípios à prática. Basta reler o texto para verificar que desde direitos por respeitar, liberdades por garantir, passando pelos desideratos por cumprir (veja-se o caso da descentralização administrativa) muito da Constituição continua, como a utopia socialista, na gaveta...
(a continuar...)
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