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domingo, 5 de outubro de 2008

A Lei e a Ética…

A atribuição discricionária de casas pela CML foi alvo de múltiplos comentários e opiniões de altos responsáveis e ex-responsáveis do Município que de um modo geral deixaram na opinião pública a ideia de que nada de especial aconteceu, que as decisões no seu tempo foram correctamente tomadas sem favor ou preferência. Confrontados com situações concretas de duvidosa e questionável aceitação, as explicações e justificações não se fizeram esperar em tom de total respeito pela legalidade.
A gestão discricionária de bens públicos é do meu ponto de vista totalmente inadmissível por não respeitar o princípio básico da transparência. Um sistema sem regras e critérios potencia a manipulação da decisão, não garante a correcta afectação e utilização desses bens e pode ser, mais do que tudo, gerador de injustiças quando estão em causa bens com vocação simultaneamente económica e social.
Um outro plano de análise é o da ética política. No exercício da função política, como em muitas outras funções na vida, a exigência ética é um dever. A ética, ao contrário de muitas vozes que se fizeram ouvir no caso das casas da CML, não é uma questão de estilo, é uma questão de princípios e valores, assim como a ética não se confunde com a lei, isto é, a ética não se esgota na lei. A ética vai para além da lei. Lei e ética não são a mesma coisa. Justificar uma atitude ou um comportamento sob a capa de que não houve uma ilegalidade pode não ser suficiente. Também não é suficiente invocar a seriedade da pessoa do decisor. Na vida política, como em muitas outras facetas da vida, não basta ser, é preciso parecer. Muitas vezes a lei não proíbe e, contudo, a responsabilidade e o exemplo políticos recomendam que não se pratique um determinado acto. As razões podem ser de natureza ética. Assim como a inexistência de lei ou a falta de uma disposição legal em concreto que trate uma situação em particular não podem justificar que haja campo aberto para certos comportamentos e atitudes. Nestas circunstâncias o que seria normal esperar seria um acrescido sentido de exigência e responsabilidade políticas.
No caso das casas da CML a inexistência de um quadro legal ou regulamentar de estabelecimento de regras e critérios de atribuição e de controlo e, inclusive, de delimitação de situações de incompatibilidade associadas a conflitos de interesses lesivos de decisões eticamente reprováveis, não deveria servir ao poder discricionário para decidir arbitrariamente. Se o faz abre espaço para uma responsabilidade ética criticável, susceptível de gerar a maior desconfiança. E sem confiança, como todos sabemos, desaparece uma das condições absolutamente necessária ao normal exercício da função política.
Não é, portanto, difícil concluir que a falta de ética política que pauta certos comportamentos e decisões afecta a credibilização da política. E, com ela, a autoridade. Tão grave quanto o incumprimento da lei, é a falta de ética. Embora censurável política e socialmente, a falta de ética não se submete ao crivo judicial, ficando assim mais à vontade para se manifestar se for essa a vontade do decisor político. Quando a censura deixa de estar activa porque os comportamentos desviantes se transformam de excepção em regra ou adquirem o estatuto de normalidade chegamos à vergonhosa situação da CML em que o sistema de atribuição de casas tal como foi denunciado está instalado há trinta anos e com vontade de ficar. É que parece que não foi cometida qualquer ilegalidade!

3 comentários:

Anónimo disse...

Margarida:
Quando se trata de actos da Administração, ainda que no uso de poderes discricionários, o problema da opção entre lei e ética nem sequer se pode por.
Os actos da administração obedecem todos ao princípio da legalidade. A lei constitui o fundamento e o limite da actividade administrativa, mesmo quando os órgãos disponham de alguma margem de liberdade na sua actuação.
O caso que refere é bem mais grave porque se trata não de discricionariedade mas de ausência absoluta de regras e critérios. A isso chama-se livre arbítrio, e nenhuma administração democrática deve funcionar arbitrariamente.
O caso faz-me pensar, noutro plano, na fragilidade dos mecanismos de fiscalização e controlo. Não são raros os casos de irregularidades financeiras, impostas tantas vezes pelas circunstâncias que assumem foros de escandalo público. Fazem as delicias da imprensa, ávida do pequeno escândalo, que amplia ajudada sempre pelos habituais moralistas do reino.
Agora, as práticas a que se refere no post, que ao que parece vêm de tempos anteriores à revolução, sempre passaram os crivos das inspecções, sindicâncias, inquéritos. Não deixa de ser estranho. Ou não...

PA disse...

Alguém me disse um dia que a "cunha" foi um conceito e uma prática que se instituiram por altura dos Descobrimentos Portugueses.

As primeiras "cunhas" eram "metidas", passo o termo, para sobreviver, conseguindo entrar nas naus dos descobrimentos, à descoberta de novos mundos.

500 anos depois de termos descoberto novos mundos, descobrimos com o lisboagate que ainda usamos a "cunha".

Quem diria ?

E o problema é que se não fosse a "cunha", muitos dos nossos problemas, em especial, na pesada, vagarosa e complicada máquina do Estado, não se resolveriam.

Moral da ópera:

Sem a cunha, "o sistema" não funciona.
O "sistema" com aspas, claro.


abraço


Aconselho este artigo fantástico sobre o tema:

http://www.jornaldenegocios.pt/index.php?template=SHOWNEWS_OPINION&id=333794

Marina Costa Lobo

Política e ética

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

José Mário
Não é um problema opcional. O que está em causa é uma questão de complementaridade. Lei e ética não se confundem. Com lei ou na falta dela o que se exige do decisor político é um comportamento ético, respeitador de determinados princípios e valores.
O pecado "mortal" neste dossier da atribuição de casas é a falta de transparência.
A fiscalização e o controlo pouco ou nenhum efeito regulador terão se não existirem regras e critérios. A fiscalização vai julgar o quê? Uma decisão discricionária? Não adianta, porque o problema está a montante.
Um comportamento ético determinaria, por exemplo, a adopção pelo decisor do princípio da transparência e do princípio da incompatibilidade de o decisor ser simultaneamente beneficiário ou pura e simplesmente ser excluído.
Se o sistema está de pedra e cal há trinta anos que eficácia se pode esperar das "inspecções, sindicâncias, inquéritos" que porventura foram feitas? Nenhuma, tanto quanto se sabe. Quem faz as inspecções e os inquéritos? Sendo o mesmo decisor não funcionam, como aliás não funcionaram para os efeitos pretendidos!

Cara Pézinhos n Areia
Oportuna a sua nota sobre a "cunha".
Se há 500 anos que cultivamos o culto da "cunha", como podemos condenar a "lisboagate" que só tem 30 anos?
O português gosta muito e convive bem com a "cunha", queixa-se mas depois não passa sem ela, seja quando pede, seja quando faz o jeito, desde o berço ao caixão.
A "cunha" é um entrave à desburocratização administrativa porque esta põe em causa o pequeno poder instalado, disperso por tudo o que é "guichet".
Quem tem responsabilidades políticas não deveria contudo ceder e participar neste sistema diria "paroquial" que de tantas paróquias que serve acaba por colocar em causa princípios elementares da democracia.