Nós que não somos médicos e que não lidamos directamente e diariamente com a doença e com a morte, a não ser quando somos confrontados com problemas de saúde que requerem tratamento hospitalar ou nos deslocamos a estes locais para visitarmos familiares e amigos que precisam de acompanhamento ou estão internados, pouco ou nada sabemos sobre a organização e o funcionamento dos hospitais. Não conhecemos o que se passa lá dentro.
Se estamos doentes e internados no hospital preocupamo-nos com o nosso estado de saúde, com os nossos familiares e amigos que deixámos em casa, ficamos ansiosos por tudo terminar bem e rapidamente, agradecemos as atenções médicas e do pessoal de enfermagem que tratam de nós e de quem dependemos enquanto ali permanecemos. É normal que assim seja, estamos num local estranho, por razões que normalmente são motivo de angústia e preocupação, ficamos diminuídos, as nossas companhias, as nossas rotinas e os nossos gostos são temporariamente quebrados, somos atingidos pelo medo e pensamos em muitas coisas que não devíamos pois o tempo é muito e passa devagar…
Se não estamos doentes e vamos ao hospital para visitar alguém a nossa preocupação centra-se na pessoa do doente, levando amizade e carinho, procurando fazer-lhe companhia para que se sinta bem e contribuir para minimizar o sofrimento e a dor que porventura esteja a passar e tratando de conhecer melhor o seu estado de saúde e a evolução esperada.
Parece então que tudo o mais não importa, porque o que importa mesmo é que os médicos resolvam os problemas de saúde dos doentes e tratem bem deles, que os doentes recuperem e se salvem. A competência médica é colocada acima de todas as outras exigências igualmente importantes mas que nestas circunstâncias pouco ou nada importam.
O problema é que “tudo o mais” pode ser muito e em muitos casos é mesmo. Fiquei chocada com o que me foi dado observar na visita que fiz ao meu Amigo. Trata-se de uma unidade hospitalar pública, dotada dos mais modernos equipamentos médicos e das tecnologias mais evoluídas, mas com condições de acolhimento dos doentes que aí permanecem hospitalizados e dos familiares que os visitam difíceis de imaginar.
A reserva da intimidade e o respeito pela privacidade do doente não existem. Os doentes estão agrupados em quartos de quatro camas com uma área total que não deve ultrapassar 30m2, sendo observados por uns e por outros 24 horas por dia. Se uns foram operados a uma apendicite, e aí permanecem três a quatro dias, já outros foram submetidos a cirurgias de extrema gravidade e não terão outra hipótese que não seja passarem semanas em convalescença. Uns estão desolados e a sofrer, outros nem por isso. Uns estão entubados por todos os lados, outros estão aparentemente mais aliviados. Uma televisão encontra-se colocada no topo de uma parede bem ao centro para que todos sejam obrigados a ver, de acordo com o gosto de quem se lembra de carregar nos botões. Os telemóveis tocam ao som de ruídos diferentes e as vozes do lado de cá ora são mais discretas ora mais graves consoante o que tem de ser. Chegam a concentrar-se simultaneamente num espaço tão exíguo e tão desabrigado um total de doze pessoas, quatro doentes e oito visitas, duas por cada doente, quando não são mais porque as “cunhas” funcionaram. A confusão é geral, a incomodidade de uns é a festa de outros. O silêncio de que uns necessitam e que se justifica é substituído pelo movimento na acção que os outros desejam ter.
No meio deste esquema o doente vê-se despido da sua intimidade, que justamente nestes momentos deveria ser por maioria de razão respeitada, e a privacidade dá lugar ao colectivo, num quadro em que tudo o que não interessa aos outros é – lhes forçadamente mostrado.
Chamo a tudo isto falta de humanidade. Custa-me perceber porque fazemos coisas assim? Custa-me perceber porque não somos capazes (ou, porventura, não queremos) de proteger a dignidade humana. Não estou enganada por considerar que a dignidade humana é um primado da vida, é um valor que não tem preço. Custa-me perceber que quem toma decisões tão importantes, que nunca sabemos quem são porque a responsabilidade nunca é de ninguém, não seja capaz de ver que a tecnologia só por si não é um caminho, não é um fim em si mesmo.
Os médicos são competentes e simpáticos, o pessoal de enfermagem é dedicado e atencioso. Então porquê este estado de coisas? Não somos todos pessoas humanas? Na alegria e na tristeza?
Estamos em crise, vivemos uma crise de valores. Não é apenas uma crise de carência de recursos financeiros, de défices orçamentais. Há mais crise antes e para além dos recursos financeiros. Os problemas não se resumem a dinheiro. Estamos de facto mais pobres…