Avisaram-me que a filha, de catorze anos, tinha morrido em Outubro. A mãe aguardava a consulta de rotina que, periodicamente, é obrigada a realizar.
Conheço-a há muitos anos e, devido à condição da menina, tinha todo o direito a certos condicionalismos de modo a compatibilizar a actividade profissional com os cuidados a prestar. A criança, gémea de outra, sofreu um problema ao nascer, motivando uma grave paralisia cerebral, ao ponto de ficar totalmente dependente.
A angústia estava sempre presente nos momentos da consulta. Dedicação total. Carinho absoluto. Perguntava sempre como ia a menina, ou melhor as meninas. Com um sorriso triste e olhos meio marejados dava-me conta da situação e dos cuidados que tinha que ter para evitar complicações. A menina era alimentada a sonda. Lutadoras, a mãe e a filha. Quando saía da consulta transmitia-me uma estranha esperança. Hoje, com os olhos inundados de lágrimas e de braço dado com um suave soluço, disse-me o que tinha acontecido. Calei-me. Em seguida, respondendo às minhas perguntas silenciosas, descreveu os pormenores. Ouvi-a com toda a atenção. Descreveu a filha como tendo sido uma criança feliz. Verdadeiramente feliz. - Eu sei que foi! O amargo de um acidente infeliz acabou por se transformar numa vida doce. Para provar, retirou da mala duas fotografias em que sobressaíam um sorriso encantador irradiando alegria, não obstante as dismorfias e o facto de ser totalmente dependente. Continuou o seu discurso afirmando que a filha foi, e é, uma grande lição de vida. O mundo, a gémea e um terceiro filho, entretanto nascido, são encarados de forma muito diferente. Confessou que não apreciava que lhe dissessem que tinha os outros dois. A Mariana é insubstituível e sente uma grande falta. Disse poucas coisas. Os olhos e os ouvidos dizem muito mais do que as palavras, mas não resisti a dizer-lhe que a respeitava e admirava muito. Replicou de imediato dizendo que qualquer pai e mãe teriam feito o mesmo que eles. Ao dizer isto, perpassou-me pela mente casos semelhantes, pais com filhos deficientes, muitos dos quais já faleceram. Partilham, de facto, um amor e dedicação muito especiais que, ao converterem-se na dor da separação, acabam por ser verdadeiras lições de vida.
Hoje, recebi mais uma lição!
Na próxima visita, a primeira pergunta que irei fazer é saber como estão os filhos...
Conheço-a há muitos anos e, devido à condição da menina, tinha todo o direito a certos condicionalismos de modo a compatibilizar a actividade profissional com os cuidados a prestar. A criança, gémea de outra, sofreu um problema ao nascer, motivando uma grave paralisia cerebral, ao ponto de ficar totalmente dependente.
A angústia estava sempre presente nos momentos da consulta. Dedicação total. Carinho absoluto. Perguntava sempre como ia a menina, ou melhor as meninas. Com um sorriso triste e olhos meio marejados dava-me conta da situação e dos cuidados que tinha que ter para evitar complicações. A menina era alimentada a sonda. Lutadoras, a mãe e a filha. Quando saía da consulta transmitia-me uma estranha esperança. Hoje, com os olhos inundados de lágrimas e de braço dado com um suave soluço, disse-me o que tinha acontecido. Calei-me. Em seguida, respondendo às minhas perguntas silenciosas, descreveu os pormenores. Ouvi-a com toda a atenção. Descreveu a filha como tendo sido uma criança feliz. Verdadeiramente feliz. - Eu sei que foi! O amargo de um acidente infeliz acabou por se transformar numa vida doce. Para provar, retirou da mala duas fotografias em que sobressaíam um sorriso encantador irradiando alegria, não obstante as dismorfias e o facto de ser totalmente dependente. Continuou o seu discurso afirmando que a filha foi, e é, uma grande lição de vida. O mundo, a gémea e um terceiro filho, entretanto nascido, são encarados de forma muito diferente. Confessou que não apreciava que lhe dissessem que tinha os outros dois. A Mariana é insubstituível e sente uma grande falta. Disse poucas coisas. Os olhos e os ouvidos dizem muito mais do que as palavras, mas não resisti a dizer-lhe que a respeitava e admirava muito. Replicou de imediato dizendo que qualquer pai e mãe teriam feito o mesmo que eles. Ao dizer isto, perpassou-me pela mente casos semelhantes, pais com filhos deficientes, muitos dos quais já faleceram. Partilham, de facto, um amor e dedicação muito especiais que, ao converterem-se na dor da separação, acabam por ser verdadeiras lições de vida.
Hoje, recebi mais uma lição!
Na próxima visita, a primeira pergunta que irei fazer é saber como estão os filhos...
5 comentários:
Estranho muito que, por estes dias, a questão da "presunção da inocência" seja tão defendida por quem durante três anos em que fui acessor de Valentim Loureiro sempre praticou convictamente a doutrina da "presunção da culpa"...
http://aoutravarinhamagica.blogspot.com/
Comovente este seu post, caro Professor, sobretudo se pensarmos: Nós, aqueles que bafejados pela sorte, que somos pais de filhos saudáveis, quer física quer mentalmente, não pensamos, ou não valorizamos tão efectivamente o facto. Damo-lo por naturalmente adquirido.
Contudo, não custa entender o drama daqueles que tal como a Senhora do texto, têm vedada à partida, a possibilidade de ver crescer e desenvolver-se o sonho da sua vida. Diz-se que a falta de um sentido, potência os restantes. Talvez esse seja o motivo, que leva os pais de crianças diminuídas a viver com uma intensidade diferente todos os momentos das vidas, por vezes curtas dos seus filhos.
O poder de transformar as limitações em felicidade, mesmo que de lágrimas nos olhos,é verdadeiramente impressionante, é efectivamente uma grande lição de vida. Podemos ainda imaginar o drama maior daqueles pais, cujos filhos, alguns deficientes profundos, começam a ver chegar a velhice e o inevitável fim de vida, sem conseguirem deixar garantido para os seus filhos o conforto e carinho que só eles, com a sua imensa paciência e infinito amor lhes foram proporcionando.
Caro Professor Massano Cardoso
Muito tocante a história de vida que nos conta.
Todos nós somos, mais ou menos, dependentes de afectos e carinhos. As pessoas com deficiência devido à impossibilidade de viverem a sua vida de uma forma normal, dependendo, na maioria dos casos, das ajudas de outros, tocam muito particularmente os seus familiares que procuram dar-lhes como que um suplemento de atenção e protecção que redunda numa ligação afectiva reforçada.
Em tempos, relacionei-me de perto com a problemática de crianças com deficiência e sempre me impressionou a sua bondade, reflectida na vontade de dar e receber carinho. Guardo no meu coração a ternura que essas crianças me ofereceram e como me ajudaram a ser mais humana.
Caro amigo, a vida de um médico com a sua sensibilidade e curiosidade pelas pessoas é uma especie de caleidoscópio e a nossa sorte é podermos ir espreitando esses pedacinhos todos que foi juntando ao longo da vida.
Caro Nuno Nogúeira Santos,desculpe mas não resisto a perguntar-lhe: presunção de culpa ou de inocência DE QUÊ?
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