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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Biologia da pobreza

A pobreza é um dos fenómenos mais ingratos e anti-humano que se conhece embora seja produzida e fomentada pelos homens. A pobreza está associada a várias consequências, entre as quais, inevitavelmente, graves problemas de saúde que, por sua vez, perpetuam e agravam mais a pobreza. Basta olhar para alguns indicadores, como a esperança de vida ou a mortalidade infantil, entre os países mais desenvolvidos e os subdesenvolvidos para obter uma quantificação verdadeiramente obscena. Mas dentro de um país, também é possível verificar a existência de discrepâncias de uma ordem de grandeza no mesmo sentido entre as comunidades mais ricas e as mais pobres.
Portugal está a braços com uma população de pobres muito preocupante e que continua a agravar-se face às crises, interna e externa, e a um desemprego crescente. Afinal, quem é que morre e adoece mais? Os pobres, claro. Quem sofre mais enfartes? Os pobres. Quem faz mais acidentes vasculares cerebrais? Os mais pobres. Quem são os mais hipertensos? Os pobres. Quem sofre mais de diabetes e de obesidade? Os pobres. E a lista poderia continuar. Não é difícil vislumbrar que certos hábitos e estilos de vida são mais comuns nos que vivem em privação contínua. Do mesmo modo, o acesso aos cuidados de saúde, apesar do nosso serviço nacional de saúde ser universal, começa a revelar algumas fraquezas.
Hoje, já está devidamente individualizada a nova síndroma de status que condiciona e explica muitas doenças. Quanto mais baixo o nível socioeconómico maior é o risco de doença e pior são as consequências. Os fatores têm a ver com a acessibilidade, o nível cultural, quanto mais elevado mais cedo socorrem dos serviços de saúde, capacidade económica e distância que separa os doentes dos serviços especializados. Todos estes aspetos são fáceis de compreender, como é óbvio, e caiem no âmbito social. Assim, a pobreza, estando associada com a maioria dos fatores enunciados poderá explicar mais doenças e mais mortes. Agora, alguns estudos começam a apontar para o efeito da pobreza e da privação a nível da própria biologia, ou seja, as pessoas que vivem em zonas mais pobres apresentam “marcas” no funcionamento do seu corpo. Um estudo sobre a sobrevivência do cancro da mama em mulheres revelou que as que vivem em condições de pobreza apresentam uma mutação de um gene que favorece o rápido desenvolvimento do cancro da mama e morrem muito mais cedo do que as que não apresentam alteração de tão importante gene. Neste caso concreto, é assustador verificar que as más condições sociais possam associar-se, além do conjunto de fatores já analisados, a uma elevada prevalência de uma anomalia produzida a nível biológico. As mulheres mais pobres têm uma mutação mais prevalente de um gene que regula o controlo das células cancerígenas, e, deste modo, não conseguem sobreviver como as outras, morrendo prematuramente. Quais as razões para que essa mutação ocorra mais frequentemente nas zonas menos favorecidas? Não se sabe ainda muito bem, mas não é de excluir os hábitos alimentares, consumo de tabaco, de álcool ou outros fatores ainda não estudados. De qualquer modo, se se comprovar que este fenómeno é consistente, então poderemos abrir um novo capítulo da biologia, a “biologia da pobreza” que poderá favorecer não só o aparecimento da doença como conferir-lhe mau prognóstico.
Numa altura em que as despesas na saúde são uma das principais dores de cabeça da sociedade, importa investir em áreas que possam traduzir-se em mais e melhor saúde. E a principal, começa a ser o nível socioeconómico. Um combate eficiente à pobreza é a solução para muitos males da saúde, ao ponto de permitir, neste caso concreto, cancro da mama, que as mulheres possam ter uma esperança de vida idêntica às que não sofrem na sua biologia mutações de cariz “socioeconómico”.
Já não basta ser pobre, quanto mais, ainda, sofrer mutações que tornem certas doenças particularmente agressivas.

16 comentários:

PA disse...

Caro Professor li atentamente o seu post, que é sempre um delicioso momento de aprendizagem para mim.

Não me canso de referir o Prof. Cirurgião Miguel Pinto (de origem cubana), da Faculdade de Medicina de Lisboa, e radicado em Portugal há muitos anos. Conheci numa entrevista por Mário Crespo, na SICN

A população de Cuba é pobre, mas em termos de saúde, é mais saudável que a população portuguesa. O professor Miguel Pinto referiu que por ex. o rastreio da do cancro da mama há muito que é feito neste País.

Há mesmo uma obrigatoriedade na prática deste tipo de rastreio à população.

Será a pobreza, o problema ?

Ou será uma errada política de saúde, e uma pobre prática de Cuidados Primários que não socorre a tempo, a detecção da mutação do gene ?

Desculpe o atrevimento da pergunta.
quem sou eu ....!?

Mas arrisquei, pronto.


Respeitosos Cumprimentos.

Massano Cardoso disse...

Este texto tem como objetivo focar a atenção num ponto até agora desconhecido, ou seja, certos fatores de natureza socioeconómica poderão ter um impacto à escala molecular. Se tal se vier a comprovar, então, abrem-se novas perspetivas para estudar certos problemas e re-equacionar certas políticas no futuro.
Quanto à sua observação, tenho algumas dúvidas sobre o real estado de saúde dos cubanos. É um país singular, pelo menos é o que pretendem vender por esse mundo fora.
Quanto à pergunta se a pobreza é o problema, posso-lhe dizer que, infelizmente, é. E de que maneira!
As políticas de saúde têm os seus limites e muitas das intervenções focam quase essencialmente a prestação de cuidados de saúde. São importantes? São, mas não é por aí que se resolvem os verdadeiros problemas de saúde. E é bom que comecemos a focar a nossa atenção no essencial. Veja, neste caso concreto, aumento da prevalência de uma mutação, não sei até que ponto não poderá ter continuidade na descendência, isto para não falar dos aspetos da epigenética e das consequências na saúde de filhos e netos de pais e avôs que estiveram expostos a certas condições ambientais e socioeconómicas. “Garanto-lhe” que o futuro da ciência irá desencadear muitos problemas de natureza ética e entroncar-se com uma lapa à socioeconomia e à política. Basta estar atento a pequenos trabalhos que começam a aparecer e que vão desencadear novos paradigmas e até, quem sabe!, algumas “revoluções” sociais.

jotaC disse...

Caro Professor Massano Cardoso:
Tal como a cara pézinhos diz, é um prazer lê-lo, embora nem sempre seja fácil comentá-lo, considerando a especificidade do assunto...

PA disse...

Caro Professor, muito grata pela sua amável resposta, que me permitiu perceber melhor a amplitude do conceito, "Biologia da Pobreza", e o seu entrosamento com outras dimensões de análise da actividade humana.

Não sou capaz de reconstituir tudo o que foi exposto pelo Professor Miguel Pinto, acerca da prática da Medicina em Cuba, e dos efeitos benéficos sobre a população cubana.
Mas fiquei com a ideia que em Cuba a aposta na Medicina Primária, foi uma aposta ganha e comprovada na estatistica, especialmente na detecção da neoplasia.


Cumprimentos.

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Professor Massano Cardoso
É muito interessante o tema do seu texto.
As condições de pobreza e de privação são factores de exclusão social com implicações na acessibilidade a um conjunto de bens e serviços que interferem na qualidade de vida das pessoas. A pobreza pode ser hereditária, porque o ciclo de pobreza não se confina muitas vezes a uma geração. Não me custa perceber que a pobreza tenha impacto à escala molecular, porque os hábitos de vida condicionados pela qualidade de vida e bem estar interferem na condição física.

Fenix disse...

Caro Professor
Correndo o risco de me tornar monocórdica, mas não posso deixar de comentar quando o tema me "auto-retrata"!
Tenho cancro da mama,(estou na fase da sua destruição, não sei se conseguirei) e em virtude disso também me encontro num processo de descensão para a pobreza... Perante a impotência face à situação, só me resta o consolo de servir de "matéria-prima" para uma certa camada social hipócrita, poder praticar a caridade... Pois se não houver pobres como é que se pode praticá-la! E por aqui me fico!

Massano Cardoso disse...

Caro jotaC

O assunto é específico mas, quem sabe, se não terá um impacto muito grande a outros níveis, mexendo com tantas áreas que ninguém ficará indiferente. Vejamos, apenas para abrir o apetite; se um dia se provar que a privação socioeconómica tem, efetivamente, um papel importante na mutação de alguns genes responsáveis pela saúde e conservação do bem-estar de um cidadão, poderá ou não essa vítima responsabilizar a sociedade por esta não ter assegurado as condições sociais e económicas que evitassem as tais mutações? Agora imagine comunidades de seres nessas condições a exigirem compensações e medidas adequadas? Será que isso irá acontecer um dia? E quando? Não sei. Há 50 anos o tabaco não fazia “mal” e agora é o que se sabe e nos E.U.A. as indemnizações atingem cifras loucas. Agora, os responsáveis pela obesidade, cadeias de fast-food, andam a braços com pedidos de indemnizações umas atrás das outras. Ainda no post anterior, a propósito da poluição luminosa, o governo dinamarquês já indemnizou algumas mulheres com cancro da mama. Ou seja, à medida que o conhecimento científico aumenta, sobretudo em certas áreas, é de esperar mudanças face a certas situações até aí perfeitamente aceites e ignoradas quanto aos seus efeitos. E a seguir... A seguir vão ocorrer mudanças. Às vezes mudanças bastante significativas!

Massano Cardoso disse...

Fénix

Na minha família já passámos por situações idênticas. Várias! Mas mesmo assim, sempre se conseguiu ultrapassá-las. Vamos a isso.

Bartolomeu disse...

Texto muitíssimo interessante, comentários muitíssimo interessantes.
Como declara a nossa amiga Pezinhos nos seu primeiro comentário, texto pedagógico, como é esperável, tendo sido escrito pelo nosso caríssimo Professor Massano Cardoso.
Tal como outras matérias que dizem respeito à sociedade, também a saúde necessita ser vista de forma global e interligada a outras questões, também elas sociais.
Pessoalmente, enquadro tudo o que à sociedade dis respeito, no idealismo socialista; sistema daqueles que querem transformar a sociedade pela incorporação dos meios de produção na comunidade, e pela repartição entre todos do trabalho comum e dos objectos de consumo.
;)
Karl Marx, fundou esta ideologia, acompanhada de uma particularidade que não incluí, que tem a ver com a retirada aos seus proprietários da propriedade privada e entrega à colectividade.
É obvio que a filosofia capitalista, retira a exequibilidade a um idealismo socialista, criando fossos sociais, não deixando inclusivé que uma sociedade progrida nos seus mais básicos direitos.
Muito é necessário alterar na nossa sociedade e no mundo mas, antes que algo seja realmente mudado, é fundamenta e imprescindível compreender e aceitar de forma natural a igualdade entre os seres humanos, abandonando por completo o sentimento de esmola, de caridade, transformando-o em partilha.

Catarina disse...

Na semana passada dei uma olhadela numa revista de uma associação médica e num dos artigos indicavam que a esperança de vida aumentou de 78 anos em 1996 para 81 anos em 2006 mas que a geração actual das crianças americanas será a primeira a ter uma vida mais curta do que os seus pais, devido à obesidade (e todos os outros fatores de risco com ela associados) que ronda (se não estou em erro) pelos 30% . O que é estranho a meu ver é que nunca, como agora, estiveram as populações mais bem informadas sobre como seguir uma alimentação saudável. Não parece um paradoxo a obesidade estar associada à pobreza? Não é a quantidade que se come, não é? É a qualidade. E depois, todo o sedentarismo resultante dos jogos de video, dos computadores, televisão.. Em certas escolas, para além do período atribuído à educação física, como disciplina, incorporaram mais 15 minutos de exercício físico a ser efectuado, diariamente, na própria sala de aula devido, precisamente, ao aumento dos casos de excesso de peso nas crianças.
Costuma-se dizer (e acredito ser verdade) que a riqueza não traz felicidade.... Mas eu acho que ajuda muito... e a todos os níveis pelo que parece...
Por outro lado, não serão as famílias, mesmo as que infelizmente têm meios financeiros muito limitados, também um pouquinho responsáveis pela obesidade dos seus filhos (não sendo esta causada por doença ou hereditariedade se é que a obsesidade é hereditária)? Há formas mais saudáveis de confecionar os mesmos alimentos. Há crianças que levam um saco de batatas fritas e uma coca cola para o almoço! Uma carcaça e uma fatia fina de fiambre é capaz de custar menos! O que quero dizer, afinal, é que nós devemos, em parte, ser também responsáveis pela forma como cuidamos de nós, do nosso corpo, da nossa mente. Ou não estarei a ver “a coisa” bem?
Nos países pobres, compreende-se por que existem pessoas pobres....E nos países ricos como os Estados Unidos, por exemplo? Faz algum sentido? Faz algum sentido que milhões de pessoas não tenham acesso aos medicamentos e aos cuidados médicos que necessitam? ... (e o plano de saúde do presidente Obama não foi aprovado)...Que milhões de crianças cheguem à escola sem terem tomado o pequeno almoço? E todos sabemos quais os grupos predominantes nestas estatísticas.
Eu continuo na minha: os ricos ficarão mais ricos e os pobres... bem, os pobres ficarão mais pobres! E não é apenas em Portugal que isso se verifica como todos bem sabemos!
Depois de ler este texto do caro Prof. (textos sempre interessantes e informativos) fiquei numa de otimismo... dá p’ra ver! : )

P.S. A propósito da riqueza não trazer felicidade mas ajudar muito, recordo-me de ler há anos, numa revista portuguesa (quando ainda tinha artigos interessantes e não eram só páginas e páginas de publicidade como agora) um artigo que se debruçava sobre um caso real de uma mulher que em tempos teria tido uma profissão socialmente inaceitável, digamos assim, mas que teve a sorte de conhecer um senhor ligado à política, de bens, que se “apaixonou por ela”! Passou a ser “senhora” e a viver como todas as senhoras bem relacionadas: vivendas, jantares de gala, roupa de marca e até tinha motorista à sua disposição... que conduzia nada mais nada menos que um Rolls-Royce. Mas o encanto acabou . E então um dos comentários dessa senhora era, mais ou menos isto: “A riqueza não dá felicidade mas ajuda muito. Prefiro chorar num Rolls-Royce do que num mini! “ Caro Prof., as minhas desculpas por ter saído um pouco do tema... e por ter ocupado tanto do seu espaço! Sou incorrigível ! : )

jotaC disse...

Caro Professor Massano Cardoso:
Muito obrigado pela atenção e ajuda que que me dispensou, fiquei a compreender melhor as diversas implicações de toda esta problemática. Mais uma vez, obrigado.

Wegie disse...

Bibliografia recomendada para quem quiser aprofundar o assunto:

Um Adeus às Esmolas - Uma Breve História Económica do Mundo
Gregory Clark
Editora: Bizâncio
Tema: Economia
Ano: 2008

Wegie disse...

Clark explica no seu livro que a Inglaterra, berço do capitalismo moderno, contava com trabalhadores que tinham um dom “inato” para alcançar altíssima produtividade. Para provar esse ponto, comparou a qualidade dos operários nas indústrias têxteis da Inglaterra e na Índia no inicio do século XX. Mesmo trabalhando em fábricas semelhantes (já que a Índia era colónia inglesa) os operários ingleses eram muito mais produtivos que os indianos. Para o autor, é a escassez de indivíduos adaptados cultural e geneticamente à economia de mercado que explica a pobreza na África e América do Sul.

Bartolomeu disse...

E não só!
Se pensarmos bem, a economia de mercado é que vai "aliciar" esses indivíduos não preparados para coerresponder aos desafios e objectivos da mesma.
Um bocado mal comparado, é como se fôssemos para uma aldeia de índios na amazónia, convencê-los de que poderiam prosperar, e para isso deveríam abandonar a caça, a pesca e a recolha de frutos e aprender a dançar balet clássico. Construindo-lhes um ginásio e levando professores. Passado um ano ou dois, voltamos-lhes as costas e dizemos... bahhh!!! vocês são umas nódoas, nem sequer conseguem fazer uma piruette, os Venezuelanos dançam muito melhor... xau!
No fim, os índios já se tinham convencido que eram dançarinos, já não caçávam, nem pescávam, nem recolhiam frutos, nem dançávam... adoeciam, passavam a ser miseráveis e por aí adiante...

Massano Cardoso disse...

Não li o livro de Gregory Clark. No entanto, uma breve corrida pelos comentários ao livro sugerem um determinismo genético provocado por uma eventual seleção natural tornando os britânicos seres mais produtivos. Há quem intitule o "gene capitalista". Esta expressão levar-nos-ia a focar a atenção na sociobiologia que Wilson, em tempos, desenvolveu. Recordo que nessa altura também houve uma proposta no sentido de haver “genes comunistas”. Presumo que são formas reducionistas de ver o problema. Se tal fosse viável, então a genómica deveria encontrar as tais diferenças, o que não é o caso, tanto mais que as diferenças dos genes entre povos muito distintos são muito menores das que se observam dentro do mesmo povo. De qualquer modo não deixa de ser interessante algumas teses que nos obrigam a pensar. A alusão à obra de Gregory Clark fez-me recordar uma outra a de “Guns, Germs, Steel” de Jared Diamond que explica de outra forma o desenvolvimento de umas sociedades face a outras. Parece que a forma de circular, na transversal na Eurásia foi determinante para o crescimento e desenvolvimento de muitos povos, ao passo que a circulação na “vertical”, observada em África e na América do Sul impossibilitou o desenvolvimento. Vale a pena ler também esta obra, que já está traduzida em português, e que ajuda a compreender muitos fenómenos económicos. Mas ainda queria descrever um outro, do mesmo autor, fabuloso, diria mesmo, “Collapse”, que explica a ascensão e a queda das sociedades.

Wegie disse...

De facto as 3 obras referidas relacionam-se de alguma maneira sendo que a argumentação de Clark parte da hipótese demográfica de que ao longo dos séculos anteriores ao começo do moderno crescimento económico apenas os indivíduos oriundos de famílias mais prósperas e com habitos mais produtivos se teriam reproduzido. Este factor predominante na Europa de Noroeste teria conduzido à formação de populações mais produtivas.
Evidentemente que não existe qualquer prova genética destas afirmações e os estudos demográficos tambem não o confirmam.