Uma sexta-feira de manhã, fria e chuvosa, que teima em perpetuar um longo período de invernia, ofereceu aos transeuntes do Parque Verde um quadro pouco habitual. No meio das grelhas do espaço hídrico, junto ao muro dos esguichos, encontrava-se um pequenino cão preto a tremer vigorosamente, sinal de hipotermia mais do que evidente. Várias pessoas presenciavam a cena, incentivando o animal a sair de tão desconfortável situação. No entanto, o animal ignorava os diversos apelos, mantendo-se pateticamente na água fria sem que houvesse motivo, já que não estava aprisionado. Uma senhora, ao presenciar a cena, não esteve com meias medidas. Descalçou-se e mergulhou as pernas naquele pequeno lago que parecia uma amostra das águas geladas da Antártida. Ao aproximar-se, desejosa de libertar o animal de tão insólita situação, foi sujeita a uma reação hostil acabando por ser mordida num dedo. Cão pequeno, mordidela pequena. Mesmo assim, voltou à carga, mas desistiu face a um rosnar aos tremeliques mais do que suficiente para dissuadir quem quer que seja. Sem perder o controlo, solicitou a comparência de técnicos municipais que resolveram o problema resgatando o animal.
Como é que o pobre cãozito foi parar aquele sítio? Por vontade própria? Não creio. É animal, mas não deve ser estúpido ao ponto de entrar e permanecer no inóspito espaço. Será que alguém o terá lançado durante as incursões noturnas dos predadores urbanos que costumam rondar aquelas bandas? A reação do animal era previsível? Talvez sim, talvez não. Às tantas reagiu à aproximação da senhora como sendo um sinal de perigo. Não soube vislumbrar o gesto de carinho e de ajuda que lhe estava a ser oferecido. Para ele, quem sabe se a visão de um ser humano não terá desencadeado tamanha desconfiança!
Nem sempre os animais se comportam desta maneira. Há quarenta anos, no último dia de veraneio na praia, presenciei, na avenida à beira-mar, um carro a atropelar um cão. Um miúdo ao meu lado gritou e ficou especado. O carro continuou na sua marcha. Entretanto, várias pessoas pararam para ver o pobre animal que gemia, gritava, uivava, ladrava, fosse o que fosse, exprimindo sofrimento capaz de gelar a alma de qualquer um. Aproximei-me do animal e ouvi vozes a advertirem-me do perigo que corria, porque o animal podia morder. Indiferente aos avisos, olhei para uns olhos tristes, mortiços e cheios de dor. Toquei-lhe ao de leve no dorso, deixou. Em seguida comecei a fazer-lhe festas até chegar ao cachaço, deixou. Acalmou-se um pouco e a cabeça tombou no asfalto. Vi que tinha a perna partida. O miúdo que tinha dado o grito, estava à minha frente. Acocorou-se. Perguntei-lhe? – Conheces o animal? – Sim. É de um senhor que mora lá em cima. Ao mesmo tempo apontava com a sua mãozita para o cume da colina. – Como é que ele se chama? – Não sei. És capaz de arranjar um pedaço de madeira e umas tiras quaisquer para imobilizar a pata? Sai disparado e de repente traz-me umas roupas velhas e um pedaço de madeira, mesmo à maneira. O cão virava, de vez em quando a cabeça com olhos de dor, mas não ladrava, nem uivava. Deixava fazer tudo. Segura aqui no pescoço, mas docemente. – Sim. Coloquei a tala na pata traseira e com ajuda das tiras de roupa velha consegui imobilizá-la. Parti do princípio que com os animais também se aplicam os princípios dos humanos, embora andasse no segundo ano da faculdade. Após o gesto ortopédico, agarrei com muito cuidado no rafeiro e coloquei-o à sombra, no passeio, à guarda do miúdo que ficou incumbido de avisar o dono do sucedido. Estava a dar as instruções quando o animal vira novamente a cabeça na minha direção e começou a lamber a minha mão. Nem queria acreditar. Não só não me mordeu como ainda agradeceu à sua maneira. Provavelmente, no futuro, sempre que visse um carro deveria ficar com uma vontade louca de o morder, ao associá-lo ao seu drama. Mal ele sabe que quem conduz os carros são os humanos. Se tivesse sabido naquela altura quem tinha sido o autor do seu sofrimento, um ser humano, às tantas não me deixaria tocá-lo e, provavelmente, até me morderia.
Como é que o pobre cãozito foi parar aquele sítio? Por vontade própria? Não creio. É animal, mas não deve ser estúpido ao ponto de entrar e permanecer no inóspito espaço. Será que alguém o terá lançado durante as incursões noturnas dos predadores urbanos que costumam rondar aquelas bandas? A reação do animal era previsível? Talvez sim, talvez não. Às tantas reagiu à aproximação da senhora como sendo um sinal de perigo. Não soube vislumbrar o gesto de carinho e de ajuda que lhe estava a ser oferecido. Para ele, quem sabe se a visão de um ser humano não terá desencadeado tamanha desconfiança!
Nem sempre os animais se comportam desta maneira. Há quarenta anos, no último dia de veraneio na praia, presenciei, na avenida à beira-mar, um carro a atropelar um cão. Um miúdo ao meu lado gritou e ficou especado. O carro continuou na sua marcha. Entretanto, várias pessoas pararam para ver o pobre animal que gemia, gritava, uivava, ladrava, fosse o que fosse, exprimindo sofrimento capaz de gelar a alma de qualquer um. Aproximei-me do animal e ouvi vozes a advertirem-me do perigo que corria, porque o animal podia morder. Indiferente aos avisos, olhei para uns olhos tristes, mortiços e cheios de dor. Toquei-lhe ao de leve no dorso, deixou. Em seguida comecei a fazer-lhe festas até chegar ao cachaço, deixou. Acalmou-se um pouco e a cabeça tombou no asfalto. Vi que tinha a perna partida. O miúdo que tinha dado o grito, estava à minha frente. Acocorou-se. Perguntei-lhe? – Conheces o animal? – Sim. É de um senhor que mora lá em cima. Ao mesmo tempo apontava com a sua mãozita para o cume da colina. – Como é que ele se chama? – Não sei. És capaz de arranjar um pedaço de madeira e umas tiras quaisquer para imobilizar a pata? Sai disparado e de repente traz-me umas roupas velhas e um pedaço de madeira, mesmo à maneira. O cão virava, de vez em quando a cabeça com olhos de dor, mas não ladrava, nem uivava. Deixava fazer tudo. Segura aqui no pescoço, mas docemente. – Sim. Coloquei a tala na pata traseira e com ajuda das tiras de roupa velha consegui imobilizá-la. Parti do princípio que com os animais também se aplicam os princípios dos humanos, embora andasse no segundo ano da faculdade. Após o gesto ortopédico, agarrei com muito cuidado no rafeiro e coloquei-o à sombra, no passeio, à guarda do miúdo que ficou incumbido de avisar o dono do sucedido. Estava a dar as instruções quando o animal vira novamente a cabeça na minha direção e começou a lamber a minha mão. Nem queria acreditar. Não só não me mordeu como ainda agradeceu à sua maneira. Provavelmente, no futuro, sempre que visse um carro deveria ficar com uma vontade louca de o morder, ao associá-lo ao seu drama. Mal ele sabe que quem conduz os carros são os humanos. Se tivesse sabido naquela altura quem tinha sido o autor do seu sofrimento, um ser humano, às tantas não me deixaria tocá-lo e, provavelmente, até me morderia.
4 comentários:
Quem sabe, o menino foi quem saíu mais beneficiado de toda a situação.
Primeiro porque recebeu a lição de ver acontecer à sua frente, duas ações diferentes e contrárias; assistiu à frieza e desumanidade do individuo que atropelou o cão e não lhe prestou assistência e em seguida assistiu à disponibilidade e humanismo do outro homem que ajudou o cão. Por último teve oportunidade de aprender a prestar os primeiros socorros e a colocar uma tala, práticas que como o caro Professor refere, são úteis quer para animais, como para humanos.
Ganhou o canídio, porque recebeu assistência e alívio para os males que o apoquentávam.
Ganhou o caro Professor Massano Cardoso, porque de uma assentada, ganhou 2 amigos e... como canta o Sérgio Godinho, os amigos são a coisa mais valiosa das nossas vidas.
Acredito que aquele menino tenha ainda aquele dia bem vivo na sua memória e quem sabe, hoje, será um excelente veterinário. O cãozinho, que por esta altura já se deverá encontrar no paraíso canídeo, deve rogar ao deus dos cães que protejam o seu benfeitor.
Tenho 6 cães, aliás, 2 cães e 4 cadelas, e um gato, que quando vão ao consultório do veterinário é um festival. Antes de chegarem, começam a ficar inquietos, não param no carro, de um lado para o outro, ganem, tremem, por mais que tente acalma-los, nada resulta. Assim que entram e os coloco em cima da mesa metálica, acalmam por completo e deixam que o médico os observe e vacine calmamente.
São uns bichos muito inteligentes e intuitivos.
Acudir a um animal ferido sem nos protegermos é extremamente perigoso pois, nessas alturas, quase todos os animais têm reacções estranhas...
Neste caso o pobre cão portou-se bem e soube reconhecer e compensar com lambidas a generosidade do seu benfeitor.
Mas há por aí à solta animais com duas patas bem mais perigosos do que cães raivosos, atacam, roubam e agridem com violência pessoas de bem, não se incomodando com o mal que vão provocando nas vítimas...
Pois é, estamos sempre sujeitos a umas dentadas, com razão ou sem ela, o mais importante é conseguirmos continuar a acreditar que a maioria das pessoas não morde nem merece dentadas. E também acredito que por cada pessoa que faz mal, provocando desconfiança e medo, há muitas outras dispostas a ajudar, a acudir e a acarinhar sem pedir nada em troca. Talvez o mal tenha essa virtude, a de tornar mais visível o bem e mais gratos os que o recebem.
O gesto de ajudar é sempre muito gratificante, ainda que não seja compreendido ou rejeitado.
Poderá ficar um sentimento de desilusão ou de impotência, mas o importante é tentar.
Fazer o bem nunca é demais para quem o dá e para quem o recebe.
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