Sonata de Outono é um daqueles filmes que doem de cada vez que se vê.
No confronto cruel entre uma mãe e uma filha colocamo-nos na posição de uma e de outra, ora acusando ora sendo acusadas, ora sentindo a dor da criança que queria um amor exclusivo e absoluto a que se acha com direito, ora captando a perplexidade da mulher adulta que não quis renunciar à glória de um talento reconhecido.
O filme trata de um ajuste de contas que sempre chega à vida de qualquer mulher, com mais ou menos violência. Se escolheu ser o centro afectivo da família, o seu suporte incondicional e exclusivo, mais tarde será ela a cobrar aos filhos, incrédulos, o preço do vazio que resta depois de eles saírem de casa. Quantas vezes é esse diálogo ao contrário, as mães a fazer a pergunta afiada, “porque é que nunca repararam que eu existia? Devem-me isso, essa dedicação e essa renúncia”. Se arriscou ter êxito e não apenas ajudar ao sustento da família, esse tempo é sempre visto como “roubado” à família, é um abuso apenas tolerado e aberta ou insidiosamente apontado como “a culpa” de tudo o que possa correr mal na vida familiar. Como se uma mulher tivesse obrigação de se realizar na maternidade e tudo o resto fossem divagações apenas permitidas com transitória condescendência. É dessa culpa terrível que nos fala Bergman, pela voz da filha, culpa agravada pela "inconsciência" demonstrada pela mãe ao invocar em sua defesa os seus feitos como pianista. A filha não a ouve, critica-lhe os êxitos como se cada um fosse o símbolo da privação suportada pelas filhas, um egoísmo intolerável que tinha agora o dever de expiar, não podia partir sem carregar esse peso com ela. No filme é muito interessante reparar que a grande vingança da filha foi que assumiu ela o que pensou ser o fardo da mãe, a irmã doente, a casa, o isolamento e a solidão, tornando-se a prova viva do sofrimento que a outra não aceitou. Estou aqui, não vês, onde tu devias estar, não tinhas o direito de viver uma vida diferente desta, deves-me isso, roubaste-me a minha vida, fiquei no teu lugar, a cuidar da menina doente. Massacra-a com a memória das suas ausências, nem por um momento mostra interesse ou orgulho no êxito da pianista, nem por um momento se compadece do seu esforço, da sua luta, dos obstáculos que encontrou e venceu. Nem por um momento lhe ocorreu retribuir o amor que exigia.
Bergman expõe um conflito em que os homens são ausentes e que, apesar de todos os progressos, não é hoje menos actual, apenas o descreve com uma terrível análise de sentimentos a que nos desabituámos.
A baixa de natalidade aí está a demonstrá-lo, a dissolução das famílias também, o adiamento da maternidade ou o fracos índices de lugares de topo ocupados pelas mulheres são sinais evidentes de que há conciliações bem difíceis e que a culpa continua a ser um sentimento insuportável que poucas ousam arriscar.
No confronto cruel entre uma mãe e uma filha colocamo-nos na posição de uma e de outra, ora acusando ora sendo acusadas, ora sentindo a dor da criança que queria um amor exclusivo e absoluto a que se acha com direito, ora captando a perplexidade da mulher adulta que não quis renunciar à glória de um talento reconhecido.
O filme trata de um ajuste de contas que sempre chega à vida de qualquer mulher, com mais ou menos violência. Se escolheu ser o centro afectivo da família, o seu suporte incondicional e exclusivo, mais tarde será ela a cobrar aos filhos, incrédulos, o preço do vazio que resta depois de eles saírem de casa. Quantas vezes é esse diálogo ao contrário, as mães a fazer a pergunta afiada, “porque é que nunca repararam que eu existia? Devem-me isso, essa dedicação e essa renúncia”. Se arriscou ter êxito e não apenas ajudar ao sustento da família, esse tempo é sempre visto como “roubado” à família, é um abuso apenas tolerado e aberta ou insidiosamente apontado como “a culpa” de tudo o que possa correr mal na vida familiar. Como se uma mulher tivesse obrigação de se realizar na maternidade e tudo o resto fossem divagações apenas permitidas com transitória condescendência. É dessa culpa terrível que nos fala Bergman, pela voz da filha, culpa agravada pela "inconsciência" demonstrada pela mãe ao invocar em sua defesa os seus feitos como pianista. A filha não a ouve, critica-lhe os êxitos como se cada um fosse o símbolo da privação suportada pelas filhas, um egoísmo intolerável que tinha agora o dever de expiar, não podia partir sem carregar esse peso com ela. No filme é muito interessante reparar que a grande vingança da filha foi que assumiu ela o que pensou ser o fardo da mãe, a irmã doente, a casa, o isolamento e a solidão, tornando-se a prova viva do sofrimento que a outra não aceitou. Estou aqui, não vês, onde tu devias estar, não tinhas o direito de viver uma vida diferente desta, deves-me isso, roubaste-me a minha vida, fiquei no teu lugar, a cuidar da menina doente. Massacra-a com a memória das suas ausências, nem por um momento mostra interesse ou orgulho no êxito da pianista, nem por um momento se compadece do seu esforço, da sua luta, dos obstáculos que encontrou e venceu. Nem por um momento lhe ocorreu retribuir o amor que exigia.
Bergman expõe um conflito em que os homens são ausentes e que, apesar de todos os progressos, não é hoje menos actual, apenas o descreve com uma terrível análise de sentimentos a que nos desabituámos.
A baixa de natalidade aí está a demonstrá-lo, a dissolução das famílias também, o adiamento da maternidade ou o fracos índices de lugares de topo ocupados pelas mulheres são sinais evidentes de que há conciliações bem difíceis e que a culpa continua a ser um sentimento insuportável que poucas ousam arriscar.
5 comentários:
Um argumento que obriga qualquer um a pensar, muito, seja mulher ou homem.
Em muitas ocasiões das nossas vidas, impomo-nos decisões e opções, que nem sempre se encaixam no puzzle que são as nossas relações familiares, sociais e profissionais.
Quando a Cara Drª. Suzana refere as opções profissionais em deterimento de parte das "obrigações" familiares, talvez não esteja a considerar ou a valorizar a parte pessoal, a aparte íntima. Cada um de nós sente a necessidade premente de garantir ou contribuir para que o núcleo familiar seja estável, equilibrado, harmonioso. A forma como a nossa sociedade está organizada, obriga a muitas concessões sejamos obrigados a fazer, em troca de alguns benefícios, muitos deles materiais, mas que julgamos numa primeira análise, imprescindíveis.
O que depois acontece, e poucas vezes tomamos consciência de que assim é, tem a ver com os tempos.
É que, quando optamos, quando decidimos, fazêmo-lo num tempo, quando analisamos, ou avaliamos a "conta-corrente" e o resultado da "gestão" dessas opções, fazêmo-lo num tempo diferente, numa conjuntura diferente, numa idade diferente, com um amadurecimento e uma experiência, diferentes.
De qualquer modo, só temos uma vida para ser vivida, e desejamos obsessivamente, vivê-la da melhor forma possível.
Em minha opinião, se o fizermos da forma mais honesta e transparente possível, para com nós próprios e para com aqueles que nos rodeiam, pouco haveremos de nos arrepender de ter ou não ter feito, por conseguinte, pouco teremos a pedir desculpas, ou a esperar que nos peçam.
;)
Cara Dra. Suzana Toscano:
Ora aqui está como se aprecia, de forma critica e brilhante, neste caso positiva, um filme intemporal que põe a nu a explosão de sentimentos recalcados de duas pessoas que ao mesmo tempo se recriminam e acusam impiedosamente.
Sei que não é fácil atingir este poder se síntese, de análise, de encadeamento das palavras que de um modo geral os seus textos nos oferecem, mas fica o estímulo, a referência, de como se deve fazer…
Suzana
É extraordinária a representação de Liv Ullmann e Ingrid Bergman. A Sonata de Outono é um filme de uma intensidade de sentimentos arrepiante. Num curto período tempo mãe e filha expressam uma tempestade de sentimentos, envolvendo amor e ódio, culpa e perdão. Estes sentimentos expressos de forma tão intensa e “perfeita” mostram-nos que há mágoas na vida que são eternas, impossíveis de remediar, tal é a carga da presença ou ausência de sentimentos recalcados pelo tempo, que o diálogo frontal e doloroso incendeiam ao ponto de um não retorno.
A Sonata de Outono mostra-nos como a natureza humana também é cruel, feia e brutal. Ao contrário do Outono que despe as árvores das folhas que as adornam e que a Primavera se encarregará de alindar, devolvendo-lhes a beleza outrora perdida por um tempo, há vidas marcadas pela mágoa impossível de reparação. Não é uma questão de tempo, de encontro ou reencontro, de arrependimento e de perdão. É a infinita profundidade da sua dimensão íntima. Por vezes é trágico…
Vi uma entrevista com Isabella Rossellini durante a qual ela disse que a mãe só tinha participado num filme de Ingmar Bergman. Foi este afinal. Bibi Andersson e Liv Ullman foram, digamos, a suas musas sempre presentes. A psicologia feminina foi, de facto, um dos temas predominantes nos filmes deste cineasta. Ia continuar a comentar... mas depois de ler o comentário da cara Margarida... achei que estava tudo dito... muitíssimo bem dito! : )
caro Bartolomeu é mesmo muito sensata a sua observação,que parte do princípio de que cada um faz o melhor que pode a cada momento, de acordo com a sua avaliação naquelas circunstâncias e que todos os juízos a posteriori são injustos.Mas o filme prova que as coisas não se passam bem assim, não há essa tolerância, chamemos -lhe assim e há um grande complexo de culpa em relação a certas escolhas. Há dias um jornalista foi entrevistar uma deputada, mãe de 3 filhos pequenos, que participou nas negociações sobre o orçamento, o que implicou 14 h seguidas de reunião e mais uma ou duas reuniões ao fim de semana. A pergunta prinicpal foi:como geriu essa indisponibilidade para os seus filhos, como é que eles reagiram à falta da mãe?Ela respondeu que teve que explicar longamente o que tinha estado a fazer e a importância do assunto mas que a sua participação na política tinha sido precedida de um acordo quanto a reuniões fora de horas e actividades ao fim de semana. O que é curioso é que nunca ouvi ninguém fazer semelhante pergunta a um jovem deputado pai de filhos pequenos...Lá estava, muito nítido,o risco da tal culpa, a ideia de que esse tempo era "roubado" ao lugar natural da mãe, em casa com os filhos.
Caro jotac, espero que tenha gostado do filme, apesar de ser um pouco deprimente, por mim acho muito interessante tudo o que mostra e analisa as reacções e as relações entre as pessoas, desde que feito com inteligência e não como imposição de modelos,como é o caso, ou seja, que nos deixam a reflectir sobre o que vimos.
Margarida, como diz a Catarina, a sua análise é excelente, é incrível a profundidade dos sentimentos que se guardam e o alcance que têm para influenciar a vida ao longo dos anos. E também é certo que às vezes se criam nos outros ressentimentos graves dos quais não se chega a ter consciência, que se consideram mesmo injustos, mas que se tem que enfrentar quando menos se espera.
Cara catarina tem razão, este foi o único filme em que Ingrid Bergman participou dos realizados por Ingmar Bergman, mas é um papel inesquecível esta contracena com Liv Ullman essa sim, a actriz permanente do realizador. O último filme dele, a Sarabanda, em que reune os mesmos personagens de Cenas da Vida Conjugal, com um intervalo que deve ser de cerca de 20 anos (não fui confirmar)é igualmente perturbante pelas mesmas razões, realismo, capacidade de captar emoções e de as expor com toda a crueza. Mas eu sempre fui uma grande admiradora deste realizadora, o meu filme preferido até um um pouco fora desta matriz "feminina", é "Morangos Silvestres".
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