Domingo de manhã. Movimento adequado a um dia sem trabalho. Hora do almoço. No regresso reparei numa rapariga, jovem, limpa e vestida de cor, a descer a íngreme ladeira com a sua bengala. Procurava obstáculos a fim de saber se podia andar. A bengala tinha um movimento próprio ao mesmo tempo que a sua cabeça oscilava em sentido contrário à procura de sons. Subitamente, começou a apalpar a parede até encontrar duas cavidades. Enfiou a mão na primeira. Foi suficiente para, em ângulo reto, rodar para a direita. Tinha as suas referências, as quais foram postas à prova na travessia da rua e na subida para o passeio. Andou sempre, auscultando os obstáculos ou os pontos já conhecidos, como os postos de iluminação. Encontrou a pequena escadaria, em forma de L, descendo-a com imenso cuidado e segurança. A jovem vestida de cor, revelava elegância e dignidade, desafiando com sabedoria quaisquer obstáculos que se lhe atravessavam no caminho. Presenciei esta cena até a perder de vista. Cega, mas digna. Cega, mas com vontade de ultrapassar as barreiras da vida.
Ao descer com o carro, deparei-me com um sem-abrigo deitado de bruços numa escadaria. Momentos antes, a cega passou ao seu lado com toda a clarividência e vontade de vencer, mas não o viu. O sem-abrigo também não deu conta da sua passagem. Eu sim, vi-os.
Os dois surpreenderam-me. Enquanto a jovem cega, vestida de cor, ilustrava a vontade de viver e de ver o que a vida tem para lhe oferecer, o miserável, descalço, deitado nas escadas ao sol do meio-dia, oferecia a faceta chocante e indigna da vida.
Dois seres da minha espécie, num perfeito contraste, de um lado a dignidade, do outro a miséria. E eu no meio dos dois, sem ser visto, a pensar na morte de um velho amigo e sem entender nada da vida. Cegueira, miséria e morte.
Vejo e não sou visto. Mas não sou só eu...
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