Podia escrever muitas histórias. O pior é escolher entre os grãos de areia que se escapam da mão. Ficam sempre alguns agarrados à palma, colados pelo suor ou pelo medo de deixarem de existir. Olho. Ficaram dois, um, de cor indefinida, a tombar para o cinzento, forma irregular, provocou-me mal-estar e revolta. Fez-me lembrar a atitude da trabalhadora quando lhe perguntei se no último ano tinha tido algum problema de saúde. Respondeu-me de forma agressiva e humilhante. Não teve nada e nem tinha nada a dizer. Via-se perfeitamente que houve algo. Repeti a pergunta com serenidade e o máximo de diplomacia. Os seus olhos lançaram faíscas de desprezo. Comecei a sentir uma dor na alma e a boca a ficar seca. Não me respondeu, mas perguntou com uma soberba que nunca tinha visto: - Como é que estão as análises? Disse com frieza os resultados. O exame continuou sem palavras, apenas com os gestos inerentes ao exame físico. No final, tomou conhecimento do resultado, apta para trabalhar. Assinou a ficha de aptidão e saiu sem se despedir, manifestando um patético desprezo. Já vi, ouvi e vivi muitas coisas ao longo da minha vida profissional, mas tamanho desprezo e falta de educação foi a primeira vez.
Alguns membros da minha espécie são singulares e imprevisíveis. Esta senhora é um caso desses.
O outro grão de areia era diferente, suave, brilhante, parecia um círculo de ouro a querer aquecer a minha alma. Fez-me lembrar o pelo do meu cão. O pelo e o coração! Sorri. O meu cão é meigo, gosta de brincar e, sobretudo, de agradecer. Também adoece, ou tem algum transtorno de quando em vez. Quando acontece, aproxima-se e começa a lamber-me sem parar. Olha-me e volta a lamber como se estivesse a pedir ajuda. Quando a situação passa, suspira, aninha-se e faz as suas habituais lambidelas, mais espaçadas e mais lentas. Sabe quem lhe faz bem e agradece à sua maneira.
Que diferença entre estes dois seres, a querer recordar os dois pequenos grãos, um dourado e o outro cinzento, que ficaram agarrados na palma da minha mão.
Prefiro o primeiro, prefiro o meu cão.
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