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domingo, 8 de julho de 2018

"Insultos"....


O anúncio da morte de pessoas conhecidas, e chegadas, perturba-me como a qualquer um. Torna-se mais doloroso porque houve, e há, partilhas de dias, de momentos, cruzamentos de vidas e intimidades. Não fico surpreendido com os efeitos, devastadores e diabólicos. Emergem sempre as mesmas imagens, as mais relevantes, as que nos definem e a que nos "siamesam".
Por mais voltas que o mudo dê nunca conseguirei entender muitos fenómenos da vida, embora os aceite com a mais natural das fatalidades. Dói e exige grande esforço para as viver. Nunca sabemos o que nos espera, mas o que acontece aos outros também acontece a nós. A vida tem um enorme defeito, ofende qualquer um, a todo o momento, com agressividade e "maldade". Maldade está entre aspas, porque não podemos atribuir à natureza tal atributo. Não devemos esquecer que a natureza ignora completamente os seres humanos. Sendo assim, todos os acontecimentos que nos marcam, e que envolvem sofrimento e morte de seres humanos, são mais do que perturbadores, são uma "ofensa" à nossa pretensiosa "origem divina". Eu, que não me pauto por esta corrente, fico tolhido no pensamento e ferido na alma.
Desapareceu um familiar, mais nova do que eu, sorriso lindo, mulher cheia de fé e de esperança. Quando soube do seu mal, antevi o que iria acontecer. Recordo o dia em que ao entrar no quarto da minha mãe, gravemente doente e alheia do mundo, a vi debruçada sobre ela. Fazia-lhe festas e sussurrava-lhe algo aos ouvidos de uma mente surda. Não disse nada. Não interrompi aquele estranho diálogo. Há diálogos em que não devemos intrometer-nos. De repente olhou para a porta e viu-me. Sorriu à sua maneira. Momento inesquecível. Mal sabíamos que menos de meia dúzia de anos depois iria por acabar de "beber" as dores do sofrimento e a humilhação de uma morte precoce.
Mais novo do que eu, também. Chegou ao país era ainda bebé, cinco, seis meses. Grande, cabeçudo e praticamente sem cabelo. No quarto do hotel, a mãe deu-me um biberão de leite para as mãos. - Podes dar-lhe o leitinho? Perguntou. Nunca tinha pegado num biberão. Do alto dos meus onze anos, espigadote, fiz o que tinha a fazer, como se tivesse feito tal coisa toda a vida. Coloquei-o em posição e enfiei-lhe na boca a tetina. Fiz os cálculos à inclinação do biberão em relação ao corpo e, depois, zás! O puto mamou com uma sofreguidão típica de quem estava esfomeado. - Ó tia. Já bebeu tudo. Parece que ainda bebia mais. Preparou mais um que seguiu o caminho do primeiro. Em seguida, arrotou que nem um abade, bolsando. Esta parte não foi muito agradável, quanto ao arroto assustei-me. Não estava à espera de tamanho ruído. Depois, ao longo da vida fui sempre à frente. Acompanhei o seu crescimento com as peripécias inerentes a qualquer ser humano, algo de pessoal e intransmissível. Agora, aguardo o desfecho da natureza, fria, cruel e indiferente à condição humana,
Dói. O que ainda dói mais é que não vai parar por aqui, até que um dia passe a ser eu a provocar sofrimento nos outros, e despedir-me da indiferença de uma natureza cheia de "atributos".
Atributos? Não, insultos...

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