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sábado, 13 de janeiro de 2007

“Pio latrocínio”

A Suécia sofreu durante mais de vinte anos roubos sucessivos de peças de arte sacra praticados por um espanhol que acabou por ser detido, o intitulado "ladrão das igrejas". Algumas peças já foram recuperadas, outras, muito valiosas, foram adquiridas por museus espanhóis, estando na mira da justiça a fim de serem "repatriadas", nomeadamente um preciosíssimo relicário de Limoges do século XIII.
Os relicários destinavam-se a colher objectos dignos de veneração, geralmente restos humanos, objectos, ou quaisquer outras pertenças de santos e acontecimentos religiosos. Muito valorizadas, no contexto da altura, eram autênticos focos de atracção de fiéis, de consolidação da fé e do poder.
A leitura desta notícia fez-me recuar ao princípio da década de noventa e recordar o início de uma típica noite compostelana, com alguns colegas meus, ao fim de um dia de trabalho científico. Faltava apenas o Miguens. Tardava em aparecer e informaram-me que devia estar ainda a tomar chá com o arcebispo. Quando ouvi a explicação pensei: - O Miguens a tomar chá com o arcebispo!? É preciso explicar que além de médico e escritor, é um bon vivant, a testar pelo perímetro abdominal, solto de língua, afável, contador exímio de anedotas, com tiradas mordazes a todo o momento. Bom, o arcebispo escolhe os amigos que bem lhe apetece!
Passaram mais uns momentos até que finalmente apareceu com o ar mais sorridente do mundo. - Então Miguens como é que correu o chá com o arcebispo? - Hoje, para variar, dei-lhe cabo da cabeça com o pio latrocínio! Coitado! Ao fim de 900 anos vai ter de devolver as relíquias roubadas à Sé de Braga (1102). Falava do famoso roubo praticado pelo arcebispo de Santiago de Compostela, D. Diego Gelmires, que "levou" de Braga as relíquias de vários santos, enriquecendo o património de Santiago de Compostela a fim de promover a atracção "turística-religiosa" da altura. Sabia fazer política.
De facto, passado algum tempo, a devolução das relíquias fez-se com toda a solenidade. Não queria deixar de relatar um pormenor muito curioso. O desagravo foi parcial, porque só vieram metade dos ossos dos três santos, e que não eram por aí além. Argumentaram que seria lógico que as relíquias ficassem nos dois lugares para serem veneradas. Para proceder à escolha dos ossos, foi chamado um médico antropólogo, o qual procedeu à separação de ossos pares, um fémur para ti, um fémur para mim, e assim sucessivamente. Quando os ossos não estavam aparelhados, seleccionou-os de forma a serem representativos de todo o corpo!
Furtos houveram sempre. Actualmente somos confrontados com verdadeiras epidemias. Aumento dos assaltos, aumento dos impostos, cartelização, passando por sofisticados vigaristas que utilizam as mais altas tecnologias, publicidade enganosa, multiplicação de políticos pouco escrupulosos, até aos apóstolos de falsas promessas, etc.. Mas o pior de tudo é roubarem-nos a esperança. A esperança de melhores dias, de um futuro digno para as novas gerações, a esperança de um "novo" país que já foi grande e que hoje está mais do que plutonizado no contexto europeu.
No fundo, estamos perante "diabólicos latrocínios". Que saudades do pio latrocínio de Gelmires! Hoje, o primeiro arcebispo de Santiago não se atreveria a desviar nem uma relíquia do nosso território, porque poderia correr riscos dos ossos não serem "santos". Não esquecer que, actualmente, em Portugal, o diabo anda à solta, todos os dias, e não apenas no dia de S. Bartolomeu!

2 comentários:

Pinho Cardão disse...

O Miguens já ganhou o céu.Mas, cá na terra, merecia condecoração. Já foi condecorado pelo feito?

Miguel Portela disse...

Ainda falta a galiza devolver algum espolio.