Quando Libânia telefonou à amiga, a soluçar convulsivamente, ela demorou a reconhecer naquele alvoroço a voz plácida e um pouco indolente que costumava ouvir nas breves conversas que trocavam, cada vez mais raras. Há muito que não se encontravam mas conheciam-se desde pequenas, andaram no colégio juntas e sempre souberam uma da outra, as notícias de Libânia chegavam dos vários pontos de Portugal, Continente e Ilhas, num nomadismo ditado pela ascensão do marido na carreira de juíz.
Agora, já chegadas aos oitenta anos, os telefonemas eram cada vez mais espaçados, quase só a marcar as datas que tinham ficado mais firmes na memória, por isso era terrível ouvir aquele som sufocado de angústia com que ela começou de repente a desfiar a sua vida.
-“Tu sabes, sim tu sabes que eu fui um exemplo da geração de mulheres educadas para casar, ter filhos, cuidar da casa e apoiar o marido na profissão com que ele sustentava a família. Vivi apagada na sombra deste homem, meu único namorado, meu único amigo, a ele dediquei os sonhos de juventude, lembras-te como ele se zangava quando eu ria alto, lembras-te como era sisudo e austero? Não gostava de risos nem de barulho, com o tempo deixei até de sorrir, depois passei a calar-me quando ele estava presente, uma vez porque estava cansado, outra porque só ele tinha coisas para contar. Os filhos preencheram-me o tempo vazio dele, mas cresceram ansiosos por se libertarem da tirania do pai, dos seus silências sorumbáticos ou do jeito acusador que trazia da sua profissão. Deixei de ter vida própria, gastava os dias a cuidar da família, vivia a vida dele, como uma sombra, sempre foi assim, era o meu dever.
Sim, é verdade que muitas vezes me revoltei em silêncio com a solidão, a ver a minha vida escoar-se naquela atenção discreta, impiedosa, de quem tinha que estar presente sem se fazer sentir.
Sim, é verdade que sentia como uma ofensa quando ele chegava tarde e mal humorado, resmungava um cumprimento e nem um beijo me dava, foi sendo assim, já não me lembro de alguma vez lhe ter ouvido uma palavra de carinho, um gesto de amor, nunca um presente, um telefonema de saudades, há quanto tempo não saimos juntos? Tu sabes, várias vezes me criticaste por me isolar tanto, mas o queres?, fui-me habituando, não parecia bem sair sem ele...
Fui desculpando com as preocupações da profissão, fui desculpando e esperando pacientemente que chegasse a idade da reforma, talvez então pudessemos sair, reatar amizades antigas ou ir ao cinema. Os meus filhos cansaram-se dos confrontos com o pai, seguiram as suas vidas e passam semanas que nem sei deles, não os culpo, coitados, não os culpo, mas senti-me tão só, nunca fizémos amigos, neste vaguear com a casa às costas.
Mas quando ele se reformou, há uns anos, ainda foi pior, ficava dias a fio sem vir a casa, reuniões, conferências no estrangeiro, uma roda viva, dizia-me secamente arranja-me a mala, amanhã não esperes por mim. E eu ficava aqui, sozinha, a arrumar esta casa já tão velha e tão triste como eu.
Até que ele teve aquela doença súbita, ah,não sabias?, pois foi, quando o teu marido morreu ele já não estava bem, começou a perder o equilíbrio, a não poder guiar, os médicos sem um diagnóstico certo. Voltou a semana passada do hospital, sem poder andar, a depender de mim para tudo, mas mesmo assim seco e mudo como nunca. Não, talvez mais triste, agora que penso nisso, uma tristeza inquieta, uma revolta que atribuí à desgraça de se ver tão velho e tão doente. Tive pena dele, uma pena enorme, sabes?, também me doía vê-lo assim, ele que era tão orgulhoso da sua figura e tão arrogante. Esqueci tudo, os anos de abandono, o mau humor permanente, a brusquidão dos gestos, não era agora, já próximo dos 80 anos, que seria altura de o deixar sem amparo.”
As lágrimas secaram à medida que Libânia falava em atropelo, a voz ganhava força à medida que desfiava a sua vida, já não era indolente nem conformada, na ânsia de se libertar daquele peso que a atormentava e que lhe ditara o impulso de ligar a alguém que a ouvisse.
-“Hoje pediu-me que lhe chegasse o telefone, deu-me um número para marcar e mandou-me sair da sala. E eu, para não o contrariar, fui saindo lentamente, a hesitar se o devia deixar sozinho. Foi então que ouvi como a voz dele mudava de repente, um tom doce, suave, a dizer a alguém do outro lado da linha “minha querida, não te preocupes, sim eu estou melhor, sim, só não quero que te amargures, eu falo, meu amor, descansa, eu falo-te”.Agarrava o telefone como quem se agarra à vida e depois deixou-o cair lentamente, as lágrimas a correr pela cara, chorando sem se conter, dobrado sobre o seu corpo doente como se fosse um farrapo.”
Libânia fez um pausa, para que a emoção deslizasse sem se emaranhar nas palavras que fluiam sem parar. Contou à amiga que o marido não esperou pelas perguntas, que começou a falar pausadamente, secamente, com a voz que usava quando lia sentenças irrevogáveis nos seus tempos de juíz. Disse-lhe que se tinha apaixonado há mais de vinte anos por outra mulher, como tinha sofrido por não poder viver com ela, por causa da família, por causa da vergonha de um divórcio, “por tua causa, sim por tua causa, nunca te faltei com nada, não te podes queixar, já vês como eu sofri”. Disse-lhe que a outra tinha aceite aquela indignidade por amor dele, que tinha renunciado a ter filhos, que tinha compreendido que ele tinha que manter a sua vida, a sua imagem, por ele tinha abandonado tudo.
-“ Só te peço que me deixes falar-lhe de vez em quando, ela também já está velha e doente, não posso pensar que vamos morrer sem voltar a ver-nos. Perdoa-me, mas deixa-me falar-lhe, não será por muito tempo”, e olhava para ela como um condenado a suplicar o último favor.
Foi aqui que Libânia parou de falar, mesmo antes de esperar uma palavra de conforto da amiga. A voz dele soou ao longe, imperiosa e urgente e ela desligou, muito aflita, porque ele estava a chamá-la e devia precisar de alguma coisa.
Agora, já chegadas aos oitenta anos, os telefonemas eram cada vez mais espaçados, quase só a marcar as datas que tinham ficado mais firmes na memória, por isso era terrível ouvir aquele som sufocado de angústia com que ela começou de repente a desfiar a sua vida.
-“Tu sabes, sim tu sabes que eu fui um exemplo da geração de mulheres educadas para casar, ter filhos, cuidar da casa e apoiar o marido na profissão com que ele sustentava a família. Vivi apagada na sombra deste homem, meu único namorado, meu único amigo, a ele dediquei os sonhos de juventude, lembras-te como ele se zangava quando eu ria alto, lembras-te como era sisudo e austero? Não gostava de risos nem de barulho, com o tempo deixei até de sorrir, depois passei a calar-me quando ele estava presente, uma vez porque estava cansado, outra porque só ele tinha coisas para contar. Os filhos preencheram-me o tempo vazio dele, mas cresceram ansiosos por se libertarem da tirania do pai, dos seus silências sorumbáticos ou do jeito acusador que trazia da sua profissão. Deixei de ter vida própria, gastava os dias a cuidar da família, vivia a vida dele, como uma sombra, sempre foi assim, era o meu dever.
Sim, é verdade que muitas vezes me revoltei em silêncio com a solidão, a ver a minha vida escoar-se naquela atenção discreta, impiedosa, de quem tinha que estar presente sem se fazer sentir.
Sim, é verdade que sentia como uma ofensa quando ele chegava tarde e mal humorado, resmungava um cumprimento e nem um beijo me dava, foi sendo assim, já não me lembro de alguma vez lhe ter ouvido uma palavra de carinho, um gesto de amor, nunca um presente, um telefonema de saudades, há quanto tempo não saimos juntos? Tu sabes, várias vezes me criticaste por me isolar tanto, mas o queres?, fui-me habituando, não parecia bem sair sem ele...
Fui desculpando com as preocupações da profissão, fui desculpando e esperando pacientemente que chegasse a idade da reforma, talvez então pudessemos sair, reatar amizades antigas ou ir ao cinema. Os meus filhos cansaram-se dos confrontos com o pai, seguiram as suas vidas e passam semanas que nem sei deles, não os culpo, coitados, não os culpo, mas senti-me tão só, nunca fizémos amigos, neste vaguear com a casa às costas.
Mas quando ele se reformou, há uns anos, ainda foi pior, ficava dias a fio sem vir a casa, reuniões, conferências no estrangeiro, uma roda viva, dizia-me secamente arranja-me a mala, amanhã não esperes por mim. E eu ficava aqui, sozinha, a arrumar esta casa já tão velha e tão triste como eu.
Até que ele teve aquela doença súbita, ah,não sabias?, pois foi, quando o teu marido morreu ele já não estava bem, começou a perder o equilíbrio, a não poder guiar, os médicos sem um diagnóstico certo. Voltou a semana passada do hospital, sem poder andar, a depender de mim para tudo, mas mesmo assim seco e mudo como nunca. Não, talvez mais triste, agora que penso nisso, uma tristeza inquieta, uma revolta que atribuí à desgraça de se ver tão velho e tão doente. Tive pena dele, uma pena enorme, sabes?, também me doía vê-lo assim, ele que era tão orgulhoso da sua figura e tão arrogante. Esqueci tudo, os anos de abandono, o mau humor permanente, a brusquidão dos gestos, não era agora, já próximo dos 80 anos, que seria altura de o deixar sem amparo.”
As lágrimas secaram à medida que Libânia falava em atropelo, a voz ganhava força à medida que desfiava a sua vida, já não era indolente nem conformada, na ânsia de se libertar daquele peso que a atormentava e que lhe ditara o impulso de ligar a alguém que a ouvisse.
-“Hoje pediu-me que lhe chegasse o telefone, deu-me um número para marcar e mandou-me sair da sala. E eu, para não o contrariar, fui saindo lentamente, a hesitar se o devia deixar sozinho. Foi então que ouvi como a voz dele mudava de repente, um tom doce, suave, a dizer a alguém do outro lado da linha “minha querida, não te preocupes, sim eu estou melhor, sim, só não quero que te amargures, eu falo, meu amor, descansa, eu falo-te”.Agarrava o telefone como quem se agarra à vida e depois deixou-o cair lentamente, as lágrimas a correr pela cara, chorando sem se conter, dobrado sobre o seu corpo doente como se fosse um farrapo.”
Libânia fez um pausa, para que a emoção deslizasse sem se emaranhar nas palavras que fluiam sem parar. Contou à amiga que o marido não esperou pelas perguntas, que começou a falar pausadamente, secamente, com a voz que usava quando lia sentenças irrevogáveis nos seus tempos de juíz. Disse-lhe que se tinha apaixonado há mais de vinte anos por outra mulher, como tinha sofrido por não poder viver com ela, por causa da família, por causa da vergonha de um divórcio, “por tua causa, sim por tua causa, nunca te faltei com nada, não te podes queixar, já vês como eu sofri”. Disse-lhe que a outra tinha aceite aquela indignidade por amor dele, que tinha renunciado a ter filhos, que tinha compreendido que ele tinha que manter a sua vida, a sua imagem, por ele tinha abandonado tudo.
-“ Só te peço que me deixes falar-lhe de vez em quando, ela também já está velha e doente, não posso pensar que vamos morrer sem voltar a ver-nos. Perdoa-me, mas deixa-me falar-lhe, não será por muito tempo”, e olhava para ela como um condenado a suplicar o último favor.
Foi aqui que Libânia parou de falar, mesmo antes de esperar uma palavra de conforto da amiga. A voz dele soou ao longe, imperiosa e urgente e ela desligou, muito aflita, porque ele estava a chamá-la e devia precisar de alguma coisa.
5 comentários:
"fui-me habituando, não parecia bem sair sem ele..."
Afinal... duas vidas acorrentadas a preconceitos, pés presos no lodaçal castrante do socialmente correcto.
Aproveitou-se apesar de tudo um amor-negro, imposto ainda pela centelha que ficou do início de tudo.
E no fim, desperdiçam-se 3 existências que não puderam cumprir-se na felicidade.
Belíssimo conto, cara Suzana.
(regresse depressa)
Que belo texto, que bela história, que bela lição de vida... carpe diem!
Parabéns a todos pelo espaço.
Abraço,
Sónia Pessoa
Tal como a sónia pessoa diz, um belo texto e uma bela história, sem dúvida.
Mas um pouco amarga para aqueles que têm de a viver, acrescento eu...
Caros comentadores, é uma história um pouco triste, sem dúvida, se bem que talvez menos do que parece porque na realidade é uma história de afectos, se não mesmo de amor.Diferente do conceito de felicidade, no sentido da satisfação de todos os desejos, a cada momento, tal como hoje o encaramos, mas na verdade cada uma destas pessoas foi capaz de se dedicar a outra, mal ou bem, mas não desistiram. Teriam sido mais felizes se não tivessem ficado presos a preconceitos, como diz o caro Bartolomeu? Talvez, mas essa era uma hipótese que contrariava a sua maneira de ver as coisas, provavelmente também não se sentiriam felizes se o tivessem feito. A vida das pessoas dava imensos romances, caro Paulo, mesmo as que aparentam não ter história nenhuma, mas tomo boa nota do seu desafio!
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