1. Ouço gente que respeito e admiro - alguns dos meus mais ilustres Mestres - acusar de excessivo o discurso do PR. Declarações que me levaram a relê-lo em busca de parte ou partes que os Dr.s Mario Soares e Jorge Sampaio não subscrevessem nas respetivas circunstâncias. Não encontrei nada. Posso estar enganado. Aliás, estes dias obrigam a por em causa o que sempre tive por adquirido, mas tenho a sensação que, dissesse Cavaco Silva o que dissesse, sempre desencadearia a reação que mais mediatizada foi. É, por estes tempos, do universo do politicamente correto malhar em Cavaco. Um cavalgar de onda por parte dos que precisam de tratar de si próprios, porque foram derrotados e veem por aí uma saída para a humilhação eleitoral, e para os que querem sair vitoriosos e desde já se previnem contra os custos de ser contra o que julgam ser o mainstream. Sobretudo a estes não convém que se diga que entendem que o PR andou bem, que disse e fez o que era devido fazer e sobretudo dizer. Desde candidatos ás próximas presidenciais à direita e à esquerda, até a comentadores políticos tidos como próximos do Prof. Cavaco Silva, todos cavalgam a onda...
2. Invoca-se a Constituição como coisa sagrada. Mais do que fazê-lo em vão, quem invoca o santo nome da Constituição contra a decisão do atual PR de designar quem nas urnas ganhou eleições, ou rasga as vestes perante a revelação, clarinha, dos motivos pelos quais o PR recusou a alternativa frentista dos partidos derrotados, revela afinal não conhecer a Lei Fundamental. E revela esse conveniente desconhecimento num aspeto nuclear do nosso sistema: o poder discricionário que os constituintes atribuíram ao Chefe do Estado para, com legitimidade democrática igual à da Assembleia da República, nomear o PM após a audição dos partidos com representação parlamentar e ponderação sobre o significado do veredito eleitoral.
3. Discricionariedade não pode ser confundida - como absurdamente tem sido por alguns responsáveis partidários - com arbitrariedade. Seria, esse sim, arbitrário, o ato de PR que designasse como PM quem perdeu as eleições. Como arbitrário seria o PR nomear o líder de um partido derrotado assumindo que não valia a pena nomear um PM porque estava anunciada a imediata queda no Parlamento, rendendo-se assim à lamentável fuga do PS às responsabilidades que o eleitorado lhe atribuiu seja para negociar uma base de entendimento de modo a aproximar projetos de governação com quem não obteve credencial eleitoral para governar sozinho ou sem negociação, seja para liderar a oposição, opção absolutamente legítima e tão relevante para a democracia como governar.
4. Mas se é inaceitável a afirmação de que o ato do PR foi arbitrário ante a clara fundamentação da rejeição de uma hipótese de governo assente numa maioria de esquerda parlamentar, é incompreensível que se pretenda que o Prof. Cavaco Silva constitui, hoje, o principal fator de divisão entre os portugueses. Faz algum sentido dizer que Cavaco Silva, com o seu discurso, alargou um abismo entre esquerda e direita? Mas de que esquerda e direita fala esta gente? Acaso existiu, nestes 40 anos de democracia, algo que, nos programas, no ideário ou na prática política aproximasse leninistas, estalinistas, trotskistas e recentes declinações, do socialismo democrático, respeitador dos princípios, esses sim, enformadores da nossa Constituição, que é a Constituição da afirmação da dignidade da pessoa humana acima do materialismo? Depois dos governos dos Eng.ºs António Guterres e José Sócrates restou alguma dúvida de que os valores que norteiam o projeto político do PS cavam diferenças insanáveis em relação ao projeto de sociedade subscrito, por exemplo, pelo PCP? Poderia, pois, o PR - este ou qualquer outro - considerar que se respeita a vontade popular viabilizando um governo constituído por grupos que só se respeitam por cálculo e tática, mas que nos 40 dias de campanha eleitoral puseram mais uma vez, perante o povo, as suas inconciliáveis diferenças?
5. Andou bem o PR. Andou bem não só porque ponderou o que é suposto que um Chefe do Estado responsável pondere em função não só dos condicionalismos políticos decorrentes das eleições, mas da especialmente delicada situação económica que o País vive e que parece que só ele PR, por estes dias reconhece. Andou bem porque se ateve ao desenho constitucional do sistema, mas também porque tomou a decisão equilibrada e racional, interpretando os resultados eleitorais em razão dos programas políticos sufragados. O que se lhe exigia, portanto.
6. O que suceder no próximo futuro, pouco tem que ver com o modo como o PR usou dos seus poderes. Terá que ver com a circunstância de em Portugal a política andar a reboque de interesses individuais de meia dúzia de iluminados que os aparelhos procriam. É assim há décadas, não é de hoje e é transversal aos sistema partidário. Nunca, porém, tivéramos como admissível que interesses e ambições das lideranças pusessem em causa o adquirido constitucional - que não resulta só do texto constitucional mas de práticas até agora consensuais, que nada têm que ver com tradições contrariamente ao que por aí se diz. E isso, sim, é uma rotura no sistema.
7. Não sou dos que entende que o sistema vigente é nariz de santo, intocável. Mais: não considero o próprio regime intangível, bem pelo contrário (ou não faria sentido escrever num blogue que se batizou de IV República). Julgo, porém, que as alterações de momentos basilares das leis fundamentais ou da sua consensual prática, não podem ser feitas a golpe nem para satisfação de ambições pessoais ou de grupo. Têm, como deve ser nas democracias, de resultar evidentes do sufrágio. E esta, que se prepara, não resulta, digam-me o que disserem os respeitáveis Mestres, os comentadores do regime ou os reputadíssimos candidatos presidenciais da direita ou da esquerda.