Pode ser influência do tempo, mas apetece-me recordá-lo:
"Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro..."
Pessoa, Mensagem
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sexta-feira, 31 de janeiro de 2014
quinta-feira, 30 de janeiro de 2014
Faz o que te digo não faças o que eu faço...
A Alemanha decidiu em 2011 aumentar a idade de reforma dos 65 anos para os 67 anos para responder à evolução demográfica, designadamente ao aumento de esperança de vida, contribuindo assim para melhorar as contas financeiras do sistema de pensões.
Merkel defendeu que os países europeus deveriam adoptar a mesma medida, o que tem vindo a acontecer em muitos países. Nos países intervencionados, como Portugal, o aumento da idade de reforma assumiu, inclusivamente, um carácter urgente, não tendo sido adoptados mecanismos de gradualismo que neste tipo de mudanças são normalmente introduzidos.
Merkel decidiu agora, para satisfazer promessas eleitorais, inverter o caminho. A idade de reforma vai baixar para os 63 anos. Será que Merkel vai ter agora a mesma atitude de 2011 e defender o mesmo aos parceiros europeus? É caso para dizer: faz o que te digo não faças o que eu faço...
Merkel defendeu que os países europeus deveriam adoptar a mesma medida, o que tem vindo a acontecer em muitos países. Nos países intervencionados, como Portugal, o aumento da idade de reforma assumiu, inclusivamente, um carácter urgente, não tendo sido adoptados mecanismos de gradualismo que neste tipo de mudanças são normalmente introduzidos.
Merkel decidiu agora, para satisfazer promessas eleitorais, inverter o caminho. A idade de reforma vai baixar para os 63 anos. Será que Merkel vai ter agora a mesma atitude de 2011 e defender o mesmo aos parceiros europeus? É caso para dizer: faz o que te digo não faças o que eu faço...
quarta-feira, 29 de janeiro de 2014
Não me tinha apercebido, mas hoje reabriram os tribunais...
Há coisas que persistem. Sobre elas em tempos aqui escrevi. Em homenagem ao que permanece, volto a publicar:
- "A sessão solene que assinala o início do ano judicial ocorre em fins de Janeiro. Pensar-se-ia que o ciclo anual da justiça começa em Setembro após as férias judiciais. Ou mesmo no princípio do ano civil. Não. Ocorre quando a agenda dos actores determina, atrasando-se em relação a estes marcos sem outra curial explicação. Este facto simbolicamente retrata, a par da rotina da cerimónia, o desfasamento no tempo e no modo da justiça nacional.
- Mas não é o desfasamento no tempo a causa do mal. É somente uma das consequências de um sistema completamente disfuncional, que tem origens tão conhecidas como dificilmente assumidas por quem tinha o dever de as assumir primeiro".
Da internalização das externalidades negativas e da descarbonização
Acaba de ser criada uma nova Comissão, a Comissão para a reforma fiscal verde. Para além da cor, a Comissão tem um objectivo deveras exótico: promover mecanismos que permitam a "internalização das externalidades negativas". Claro, mas "sem agravar a carga fiscal global para as famílias e as empresas". Isto é, internalizar o negativo, mas sem agravar o que está, eis uma verdadeira quadratura do círculo verde. Como se trata de matéria fiscal, naturalmente a Comissão é presidida por um engenheiro e vai ser apresentada no Ministério do Ambiente. E, muito importante, para além de internalizar as externalidades negativas, a reforma dos impostos deve produzir "uma redistribuição dos incentivos fiscais adequados a promover uma economia de baixo carbono". O preço da energia e a competitividade é coisa de somenos nesta matéria.
No âmbito do Ministério das Finança, terminoram há bem poucos dias os trabalhos da Comissão de Reforma do IRC. Não sei se tinha cor. Foi também já anunciada a Comissão para a reforma do IRS. Ainda não sei a cor. Mas presumo que em ambas terá sido a vermelha, para condizer com as cores da bandeira de um país cuja maior especialidade é a cobrança de impostos até à extorsão.
Claro que o Ambiente não pode ficar atrás das Finanças nesta matéria impositiva. E aí temos o retrato de um governo corporativo, com um ministério a abocanhar competências de outro. Claro que não, tudo ficará explicadinho... Mas se um Ministério a cobrar impostos já faz o que faz, será de fugir de dois Ministérios em concorrência fiscal.
E enquanto China,Índia, Rússia, Brasil e todos grandes poluidores do planeta vão produzindo e concorrendo com a nossa cara energia, nós andamos preocupados com descarbonizações verdes, que já oneram, e de que maneira, os custos de uma energia que, só por si, dificulta a competitividade no mercado global da nossa microcospicamente poluente economia.
E é assim que um governo, não sei se unitário, mas seguramente corporativo, se propõe salvar o mundo, descarbonizando Portugal. Temei, oh gentes! E é caso para ficar verde, mas de medo.
terça-feira, 28 de janeiro de 2014
A neve, esse fenómeno
Verdadeiro serviço público são as reportagens das TV sobre a neve. Sobre a que caiu e sobre a falta dela, sobretudo na Serra da Estrela. Dramatizam-se os centímetros que caem e que tornam ainda mais difícil a vida das gentes, diz o repórter logo desmentido pelo pastor que, de sorriso aberto, vai explicando que neve no inverno por aqueles sítios é o que há de mais comum. Mas verdadeiramente problemático, com direito a longos minutos de declarações em ar de protesto, tristeza, desalento e chocante exibição de crianças lacrimosas no banco de trás do carro, é o encerramento dos acessos ao topo da serra. Por causa da neve, já se vê. E por causa do governo que há muito deveria ter investido pelo menos tanto em limpa neves como as pessoas investem em tabogans de plástico. Mais um direito fundamental, o de usufruir das dádivas da natureza que o governo implacavelmente nega. Insensibilidade social, é o que é!
Mas também é notícia, relatada em direto e por ampla equipa deslocada para a Torre, a falta de neve. Se não nevou naquele fim de semana relata-se a insatisfação dos que vieram debalde. O melhor de tudo são as questões do repórter postas aos peregrinos da neve. Invariavelmente aparece um/a brasileiro/a ou um/a alegre africano/a: "Foi a primeira vez que viu neve?". A pergunta que me encheu as medidas foi esta: "Olhe, porque é que está a fazer um boneco de neve?".
Mas também é notícia, relatada em direto e por ampla equipa deslocada para a Torre, a falta de neve. Se não nevou naquele fim de semana relata-se a insatisfação dos que vieram debalde. O melhor de tudo são as questões do repórter postas aos peregrinos da neve. Invariavelmente aparece um/a brasileiro/a ou um/a alegre africano/a: "Foi a primeira vez que viu neve?". A pergunta que me encheu as medidas foi esta: "Olhe, porque é que está a fazer um boneco de neve?".
segunda-feira, 27 de janeiro de 2014
Humilhação
Deixo-me envolver com facilidade pelo ambiente em que mergulho. Quando as águas são os doentes, com os seus problemas, vivências, interpretações, medos, dores e ansiedade, então, é certo e sabido que consigo sentir uma mistura complexa de sensações, frio, calor, relaxamento, angústia, respeito, deslumbramento e, porque não, uma tremenda e revoltante impotência, não só por não poder ajudá-los mais nas maleitas que invadem os seus corpos mas, sobretudo, os tormentos que minam as suas almas. O que é que se pode fazer face a alguém que é perseguido e humilhado no seu local de trabalho? Não de uma forma exuberante, mas encapotada, temperada pelo poder, tentando provocar uma reação que possa ser "útil" ao autor para estocar ainda mais profundamente no subalterno. O diagnóstico não é difícil de fazer e as manifestações clínicas são fáceis de ver, algumas são mesmo preocupantes. Conversar, dar conselhos, "medicar" um pouco, o suficiente para diminuir a ansiedade e abafar a agressividade em incubação, são algumas medidas, mas tenho a perceção de que não suficientes.Agressividade e intolerância no local do trabalho são preocupações constantes que, nos tempos atuais, se revestem de particular acuidade face à instabilidade laboral. O subordinado sente essa pressão e humilhação. Sofre. Os dias vão passando e as farpas aumentam. Tenta controlar-se. Eu ajudo nesse sentido, mas tenho receio que uma explosão mal pensada possa fazer das suas, aparecendo inopinadamente. Antevendo algumas consequências, ensino e ajudo no que posso. Depois tive de o orientar no sentido de procurar outros tipos de apoios, entre os quais, o legal, obviamente. Não foi fácil. Tive de usar a minha condição médica para conseguir algum tipo de equilíbrio usando o poder que a lei me confere, a lei, mas também a ética e a moral.Em certos momentos somos confrontados com situações complexas e potencialmente perigosas para todos. Hoje fiz o que devia fazer. Na sombra consegui amenizar, confortar, orientar e, quem sabe, prevenir coisas desagradáveis. Terminei o dia pensando, nada disto vem nos livros. Estas coisas não se estudam, aprendem-se. O olhar do trabalhador, um olhar humilde traçado de ansiedade, desfez-se num inesperado muito obrigado.Não disse nada. Sorri e cumprimentei-o.
Anemia
A criatividade não tem limites sobretudo quando se pretende melhorar a saúde das pessoas. Em certos países as carências alimentares são uma realidade com consequências nefastas. Em Camboja a anemia por carência de ferro atinge mais de metade das crianças e mulheres grávidas. Para obstar a tão grave inconveniência bastaria cozinhar em potes de ferro, como os que antigamente eram usados pelos portugueses. Mas os cambojanos não têm essas preciosidades. Houve então um cientista que se lembrou de distribuir pedaços de ferro para serem colocados nas panelas de alumínio para que libertasse ferro para os alimentos e assim contrariar a epidemia de anemia por carência por ferro. O que é que fizeram as pessoas? Olharam para aqueles pedaços de ferro e "viram" que teriam mais utilidade se fossem usados como forma de proteção das portas! Não incorporaram a ideia, simples, e que que poderia ser muito importante. O cientista não desistiu, e, desta feita, mandou fazer figuras de um peixe em ferro, que naquelas comunidades é considerado como um símbolo da sorte. Passaram a cozinhar com o peixe de ferro enfiado nos potes e panelas. Resultado? Nas aldeias em quem foi aplicada esta "técnica" a anemia desapareceu. O peixe em questão é considerado como um símbolo da sorte, saúde e felicidade. Coisa simples, associar a funcionalidade com a cultura popular. Bastou criar um imagem em ferro e colocá-la nas panelas! Uma curiosidade que pode ser replicada noutras partes do Globo, utilizando para o efeito símbolos locais associados com a sorte, com a saúde e a felicidade.
Aqui, em Portugal, não há propriamente epidemia de anemia por carência de ferro, há outras formas de anemias, anemias graves, anemias sociais, anemias económicas, anemias de caráter, anemias de valores, anemias políticas, anemias de honestidade. Seria tão bom encontrar um equivalente semelhante ao "peixe da sorte sob a forma de ferro" utilizado em Camboja...
Seria tão bom!
sábado, 25 de janeiro de 2014
Vale a pena lembrar a Bial
A propósito da súbita polêmica e proliferação opiniática sobre a investigação científica em Portugal, produtividade e utilidade e não sei que mais, vale a pena recordar a Bial, essa empresa que agora todos reconhecemos pelo lançamento e comercialização internacional de um medicamento antiepiletico. Vejam lá o segredo do sucesso...e o que explicou Luis Portela sobre a estratégia seguida, o tempo e o investimento exigidos e, claro, a persistência. Agora sabemos que teve sucesso, mas ao fim de 20 anos, 20! Quantos o aconselharam a desistir, quantos pensaram que ia levar a empresa à falência, quantos o ignoraram por pensarem que nunca conseguiria, em Portugal, tal façanha?
sexta-feira, 24 de janeiro de 2014
Uma rosa e uma cruz...
Entraram os olhos, olhos que ofuscaram tudo, olhos tristes, olhos interrogadores, olhos que não escondiam a dúvida, o medo e a ansiedade.
A conversa iniciou-se num tom baixo, mais baixo do que é habitual o que me obrigou a reforçar a atenção, já de si presa ao seu enigmático olhar. Pequenos e curtos cumprimentos deram seguimento à pergunta sacramental. Ao responder, de uma forma inquietante, baixou ainda mais a voz. Tive que fazer um enorme esforço para a entender, mas ouvi, sou uma doente oncológica. Sou uma doente oncológica, repetiu. Não disse nada e procedi ao interrogatório nesse sentido com muito cuidado. Explicou-me que teve um tumor na mama. Foi operada. Fez posteriormente o tratamento complementar que é devido nestas circunstâncias. Mas agora já não está a tomar nada, não é verdade? Sim. Agora não tomo nada. Ótimo, então as coisas estão bem. O exame continuou e ao auscultá-la vi, no lugar onde tinha nascido o seu drama, uma bela tatuagem, uma rosa vermelha com duas folhas verdes a esconder uma cruz inclinada. Que estranho, pensei, uma rosa tão bem desenhada a tentar esconder uma cruz inclinada. Interrompi o meu pensamento para tentar ouvir os sons cardíacos, mas nem sei se os ouvi bem, porque quis interpretar aquela simbologia, a beleza e o amor de uma rosa a querer esconder a cruz de uma vida. Evidentemente que não podia permanecer naquela situação por mais tempo, embora quisesse fazer-lhe algumas perguntas. O exame continuou e, no final, disse-lhe que a reconstrução mamária estava muito bem feita. Explicou-me que tinham tirado a pele do dorso. Foi então que me atrevi a comentar que tinha uma bela tatuagem. Sorriu pela primeira vez e desnudou-se o suficiente para a mostrar. Agora a situação era diferente. Explicou-me que a tinha feito por dois motivos, para tentar esconder a cicatriz e para gravar a "cruz da sua vida". Foi a minha vez de sorrir, foi o que eu pensei, tenho de a felicitar, tem uma tatuagem muito delicada, uma pequena maravilha. Olhou-me e, pela primeira vez, sorriu de uma forma solta, genuinamente livre, com olhos tranquilos e felizes, dizendo um sonoro, muito obrigada! Despediu-se, primeiro os olhos, depois ela. Ainda lhe disse, desejo-lhe muitas felicidades e não se esqueça de sorrir, olhe que tem a mais bela tatuagem que já vi até hoje. Foi então, que os olhos se voltaram novamente para mim, agradecendo de uma maneira que só outros olhos podem ver e sentir e nunca desenhar, porque para isso seria preciso saber tatuar uma alma...
quinta-feira, 23 de janeiro de 2014
CES e Sobrevivência: uma combinação que custa a acreditar...
- clicar em cima do quadro para ampliar -
O quadro apresenta as reduções de pensões de um caso real de
um pensionista que este mês foi apanhado por uma dose suplementar de
corte, + 48% em relação ao corte de 2013. O pensionista em causa não queria acreditar que de Dezembro para Janeiro os cortes subiram de 1.190 euros para 1.713
euros. Perdeu de um mês para o outro mais 25% do rendimento. Ou melhor, depois
de ter compreendido os cálculos que foram feitos, concluiu com amargura “tudo é
possível”. Notei-lhe no rosto cansado a ansiedade de quem não sabe o que pode esperar no próximo
mês, no próximo no verão ou no final do ano. Queixou-se que não consegue viver assim.
Este caso mostra-nos o resultado da aplicação cumulativa do
corte da contribuição extraordinária de solidariedade (CES) e da redução da
taxa de formação da pensão de sobrevivência introduzida no OE de 2014.
O impacto é brutal para este grupo de pensionistas que aufere
simultaneamente uma pensão de reforma e uma pensão de sobrevivência de montante
total superior a 2.000 euros. A explicação é a seguinte:
- Foi alterado o critério de incidência da CES: o escalão,
incluindo o limite a partir do qual há sujeição, para apuramento da taxa a
aplicar é obtido pela soma de ambas as pensões.
- Foi estabelecida uma da taxa de formação da pensão de sobrevivência
quando ambas as pensões somam um montante superior a 2.000 euros.
- A pensão de sobrevivência é duplamente cortada: pela CES e
pela redução da taxa de formação da pensão de sobrevivência.
Em termos de equidade e justiça relativa, estamos perante uma discriminação
negativa perante a morte. Se ambos os cônjuges estão vivos, cada um com a sua
pensão de reforma, a soma dos cortes das pensões é inferior à soma dos cortes quando pela
morte de um deles uma das pensões de reforma dá lugar a uma pensão de
sobrevivência. Quanto maior for o peso da pensão de sobrevivência na soma de
ambas as pensões maior é a penalização.
O governo admite rever esta situação de acumulação de cortes de pensões, segundo informou hoje a ministra das finanças quando
questionada na Assembleia da República. É elementar…
Despertar eleitoral
Há poucos meses, a comissária europeia para os Assuntos Internos alertou em Atenas para os perigos dos extremismos políticos na Europa, o sucesso das ideias da extrema direita, sobretudo entre os mais jovens, ou dos grupos de extrema esquerda, ambos conduzindo, disse, ao perigar dos "valores" da Europa, do que nos uniu e permitiu a construção da União Europeia como referência para outros países e culturas. A comissária disse então que cada cidadão era responsável por lutar contra essa ameaça, que não eram só os governos, enfim, uma catilinária inflamada empunhando a bandeira das nossas vantagens sociais e económicas. Há poucos dias, a mesma comissária alertou para o recrutamento de jovens europeus pela Al Qaeda e há noticia de muitos jovens que aceitam ir combater para a Síria.
Em período de eleições europeias, estas preocupações assumem uma agudização patente. Custa a crer que tais perigos não tenham inquietado os responsáveis europeus antes que tomassem proporções preocupantes, custa a crer que os responsáveis europeus não suspeitassem que os anos de pesada austeridade, perda de expectativas, sofrimento e ausência de oportunidades para os mais jovens, que são em alguns países um exército de desempregados, os levasse a mandar às urtigas os tais valores por não lhes encontrarem qualquer vantagem para a sua vida. É certo que as forças extremistas vivem exclusivamente desse desencanto e dessa revolta, não propõem nada de melhor, bem pelo contrário, aterrorizam sobretudo os que sabem o que vale o que hoje ainda temos, mas as eleições à porta podem trazer uma crua realidade ao seio das instituições, em particular do Parlamento Europeu. Dai o pânico, a reviravolta apressada que deixou de falar na insustentabilidade do Estado Social europeu para exibir progresso económico, crescimento, fim do calvário, acenos aos jovens, medidas para os jovens, pressa em acudir aos jovens. Antes assim, pelos bons ou pelos maus motivos, antes assim, e que tenham muito sucesso, esperemos que não seja tarde demais e que os sensíveis mercados descubram agora que afinal os países europeus, renascidos, são um bom investimento.
Abalroado por um ciclista!
Quando nos confrontamos com um perigo imediato desencadeamos um conjunto de reações na milésima fração de segundo que precede o impacto. Um fenómeno bem estudado e que pode ser bastante útil. Mas há situações em que isto não acontece. Ser-se apanhado "à traição" é horrível e dá-nos a verdadeira sensação do que somos, vidrinhos pensadores ambulantes. Julgamos que dominamos muitas coisas. Não, não dominamos nada, somos apenas seres vulneráveis prestes a quebrar ao menor impacto.
Ia a descer a rua, ladeando o passeio devido à presença das grades de proteção por causa de obras. Olho para o relógio, 13:28. Uma pancada violentíssima nas costas e no ombro esquerdo despertaram-me para uma realidade traiçoeira. A dor misturada com a estupefação obrigaram-me a rodopiar, vi uma face espantada a poucos milímetros da ponta do nariz. Continuei a rodopiar e acabei por me estatelar no meio da rua dois, três metros à frente. Olhei para o céu e não vi estrelas, apenas nuvens cinzentas e brancas. Imerso em dores intensas comecei a gemer. Aproximaram-se jovens que iam para a escola. A confusão que se instalou na mente, quanto ao que me iria acontecer, um auto-diagnóstico feito rapidamente, prognóstico a curto prazo e compromissos a serem cancelados, não me impediram de dizer à jovem, que, entretanto telefonava para o 112, qual a minha situação e que era médico. A jovem que estava nervosa ficou mais tranquila, eu é que não estava, porque as dores roíam-me o tórax e o ombro. Bonito. Ainda consegui fazer um telefonema dando indicação do que estava a acontecer e da "não gravidade" da situação. No entanto, as dores apunhalavam-me sem dó e nem piedade. Apercebi-me, pela conversa, que tinha sido abalroado por um ciclista distraído que, qual Eddy Merckx, julgava estava a descer os Alpes, só que ia a cumprimentar o amigo ou o vizinho. Gemia? Ai não que não gemia. Deitado no meio da rua inclinada, propicia a acelerar qualquer bicicleta, esperei. Esperei e não desesperei, ou quase. Misturar dores com longos minutos é uma estranha combinação. Apareceu o socorro com um jovem amigo da minha terra. Estávamos longe dela, mas o sinistro juntou-nos. Foi coisa que eu imaginei logo de início. O rapaz olhou-me espantado e tive que o "acalmar". Cuidadoso, supercuidadoso, conjuntamente com os dois colegas fizeram o que tinham a fazer. Bons profissionais. Abdiquei da minha condição de clínico, o melhor que se deve fazer, sem deixar de contribuir para estabilizar o ambiente típico destas condições. E, assim, entrei pela primeira vez "deitado" no serviço de urgências de um hospital, registando tudo com se tivesse um gravador e um vídeo na minha cabeça. Tudo registado ao mínimo pormenor, conversas, imagens, cheiros, solavancos, tudo. As más notícias correm à velocidade da luz. Depois, esperei com uma anilha amarela presa ao meu pulso direito. Não a vi, mas senti que alguém me tinha colocado qualquer coisa. Esperei. O tempo é um verdadeiro filho da puta quando um indivíduo está a ser bombardeado com dores. Chegaram. Eram jovens. A moça pega-me no punho direito, eu não conseguia mover o pescoço, trataram-me como se fosse um politraumatizado, e exclamou: - Foi meu professor! Bonito, pensei, o que é que vai sair daqui. Depois veio o chefe, o cirurgião, velho amigo. Espantado com a minha presença naquela cidade pediu-me desculpa por não ter estado presente na tomada de posse do órgão a que presido na Ordem dos Médicos. As dores atormentavam-me sobremaneira, mas, mesmo assim, ainda lhe disse que se soubesse tinha trazido o livro de termos e dava-lhe posse ali mesmo. Brincar nestas circunstâncias é um saboroso analgésico. Ajudei, fiz o que me mandaram e portei-me como qualquer outra pessoa. No final tive alta com uma receita e recomendações passadas por ex-alunos. Saí com dores e o aviso de que iria ter algumas semanas álgicas.
Registei muitas outras histórias dentro desta história. Algumas muito curiosas que dariam pano para mangas. De qualquer maneira, o sistema funciona, há competência, há atenção, há cuidados e há coisas que nos incomodam, incomodam por uma razão muito simples, as dores fazem expandir o tempo, esse sacana que se lembrou de me trair num momento particular e que se divertiu comigo naquela tarde.
Agora tenho de aguentar.
Paciência, é o que acontece quando se é atropelado por um ciclista "à traição"...
quarta-feira, 22 de janeiro de 2014
Bolseiros profissionais e de coisa nenhuma
Há uma bolseira que anda a estudar os efeitos das alterações climáticas sobre os moluscos, conforme ela própria referiu ao DN e o jornal publica.
Há bolseiros que que se dedicam a investigar rolas e cagarras, naturalmente sabendo tudo sobre o seu nascimento, alimentação, acasalamento e, porventura, vida sexual em caso de não encontrarem parceiro. E há bolsas para investigação rigorosa sobre linces e alcateias.
Também há bolsas para doutoramentos em pronomes possessivos, o que me leva a suspeita fundada que também as haja para a investigação dos pronomes pessoais ou interrogativos. E relativos, com certeza.
Há bolsas para os doutoramentos mais exóticos e há bolsas pós-doc para fazer sobreviver doutorados.
Há bolseiros que se profissionalizaram na obtenção de bolsas e pós-docs, como se daí pudesse resultar alguma actividade que passasse os limites da precariedade.
E isto passa-se em todas as áreas, das humanidades às tecnológicas.
Queixam-se muitos bolseiros de falta de emprego. Mas é claro que muitos não o arranjam porque não querem saber nada que interesse a alguém, a não ser a eles próprios. E exigem que seja a sociedade a financiar, quantas vezes, um capricho meramente privado. Em nome da ciência.
Nota: Sei muito o que é investigação, pura e aplicada. Na minha vida profissional, comparticipei em decisões de financiamento de investigação e de investigadores. Mas não entro na fraude de aplaudir inutilidades. Também o meu post não pretende visar directamente os bolseiros, mas sim a política "gaguiana" em que acabaram por se enredar e de que se tornaram vítimas.
Em defesa dos planos especiais de ordenamento do território (*)
A
Assembleia da República aprovou na generalidade, nos finais de novembro do ano
que passou, a proposta de lei que visa substituir a velha e ineficaz Lei dos Solos
(Decreto-lei n.º 794/76, de 5 de novembro) e a Lei de Bases da Política de
Ordenamento do Território e de Urbanismo (Lei n.º 48/98, de 11 de agosto). A par
de algumas proposições positivas que por si justificam a alteração do atual
quadro legal, o Governo propôs e a Assembleia da República aceitou quase sem
discussão, uma solução infeliz quanto ao papel da administração central no
planeamento do território. Papel que já hoje é supletivo, mas ainda assim
essencial no quadro do sistema de gestão territorial que conjuga e articula competências
do Estado, das regiões autónomas e dos municípios em razão da natureza dos
interesses públicos a defender e prosseguir.
A
iniciativa que a AR acolheu extingue a figura dos planos especiais de ordenamento do território enquanto instrumentos
de caráter regulamentar, diretamente vinculativos dos particulares. O elevador
da responsabilidade do Estado que em 1999 tinha subido ao patamar certo e que
ao longo de década e meia vinha sendo afinado e aperfeiçoado, vê-se agora
substituído por um modelo em que essa responsabilidade é endossada aos
municípios. Ao Estado passará a caber, somente, a definição de diretrizes que
as autarquias verterão para os seus planos locais, adquirindo aí normatividade.
Abdicar
da força jurídica plena dos planos
especiais é enfraquecer a vertente do sistema de gestão territorial em
vigor que assegura a prevalência do interesse geral sobre os interesses locais.
Passaremos a ter o planeamento do nosso litoral repartido pelos mais de 60
planos diretores municipais, contrariando todos os diagnósticos que consideram
a pulverização de poderes administrativos sobre a costa portuguesa um dos fatores
responsáveis pela fraca resposta dada aos problemas que assolam o litoral
português e as zonas estuarinas. Passaremos a ter as albufeiras, e, logo, a
garantia da qualidade da água para usos primários, entregues ao poder
planificatório dos municípios e à mercê da sua capacidade de transformarem
diretrizes em boas e efetivas normas. O mesmo ocorrerá com a defesa recursos
bióticos e abióticos de interesse primevo, da biodiversidade presente nos
parques e reservas naturais e nas áreas protegidas. É, pois, uma opção que
ignora que estes valores e recursos não conhecem as fronteiras administrativas
dos municípios, nem estas foram traçadas em função daqueles.
A
avaliação das políticas ambientais das últimas décadas demonstra que a demissão
por parte da administração central das responsabilidades de intervenção em
defesa de valores e bens de interesse nacional, longe de contribuir para a coesão
nacional, faz com que se exacerbem os localismos e se gerem desigualdades
gritantes entre os municípios que prosseguem políticas de ocupação racional dos
solos, e outros que optam por as secundarizar (com o paradoxal benefício
financeiro destes últimos). O legislador parece igualmente desconhecer este
dado.
Uma
nota final para assinalar uma falácia. A alteração é feita com o argumento do
reforço do poder local. Mas não é assim. Em primeiro lugar porque sempre que o Estado se exonera de responsabilidades nunca existe
verdadeira descentralização. Descentralização não significa demissão ou desrespeito
pela repartição constitucional de poderes e funções, sendo um movimento que só
deve ocorrer quando se reconheça que o interesse geral é melhor prosseguido noutros
patamares de administração. Depois porque, como os municípios cedo descobrirão,
é mais uma oferenda embrulhada no lustroso e atraente papel da autonomia, mas corresponde,
como outros no passado, a um presente envenenado. O esforço que o novo quadro
vai exigir, em especial aos impreparados pequenos e médios municípios (em cujos
territórios se situa a maior parcela dos valores e recursos a preservar),
jamais encontrará contrapartida no apoio que a administração central estiver
disposta a prestar.
Eis,
pois, uma daquelas opções políticas que à razão tudo deve, com a agravante de
não ser, como outras, neutra nos seus efeitos. Com a sua consumação, todos
ficam a perder.
(*) artigo de opinião publicado na edição do jornal i de 22/01/2014
Incógnitos porquê?
Dantes, até 1977, havia os filhos de pai ou mãe "incógnito", ficava no registo de nascimento a ilegitimidade, eram filhos nascidos "fora do casamento" numa época em que ter filhos sem o devido registo matrimonial prévio era muito mal visto na sociedade. Nos casos mais comuns, era o pai o "incógnito" ou porque já fosse casado e não quisesse assumir o "mau passo" ou porque não lhe interessava assumir essa responsabilidade. Não era só a criança, a mãe solteira era marginalizada e o fardo social prolongava-se em dramas tantas vezes glosados na literatura e no cinema. Eram crianças que ficavam, por assim dizer, partidas ao meio, na lógica de Salomão, faltava-lhes uma parte, que até podia muito bem cumprir todas as obrigações e devoções a que um pai ou uma mãe estavam obrigados ou dedicados mas não a assumia e a sociedade virava a cara para o lado. Esta ignomínia foi abolida e os registos já não inscrevem "ilegítimo", entretanto a moral e os costumes evoluíram e hoje parece ridículo que houvesse crianças e adultos a sofrer com tal estigma, tal como já poucos se importam que uma criança nasça antes ou depois do casamento, ou mesmo sem casamento nenhum. Como diz a minha mãe, tantos dramas, tantos suicídios ou tantas vidas desfeitas por causa de uma coisa a que hoje ninguém dá valor.
Entretanto também se aceitam práticas médicas de procriação com recurso a doadores, há barrigas de aluguer e há muitas pessoas que optam por ter filhos sozinhas, sem ter que acertar as suas vidas com outra pessoa. E também há pessoas que casam ou vivem com pessoas do mesmo sexo, que têm filhos deles que não têm registado o outro progenitor, ou que já o perderam, e que querem partilhar essa criança, a responsabilidade e a devoção que um filho exige, com a pessoa com quem partiham a vida. Podiam viver assim, sem querer formalizar nada, nem casamento, nem guarda e cuidado dos filhos de um deles, mas é natural que não lhes chegue, que queiram assumir formalmente a parte que se dispõem a cumprir, não aceitam que um fique "incógnito" por preconceito incompreensível ou falsos moralismos que um dia nos pareceriam completamente absurdos.
Além disso, se o padrão que reconhecemos sem dificuldade é o do "benefício" de ter uma pai e uma mãe, assim mesmo, um de cada sexo, há que convir que há milhares de crianças a viver sem um deles, o que é bem pior do que ter duas mães, ou dois pais, que livremente decidem que a criança fica dos dois, para a amarem, protegerem e acompanharem ao longo da vida.
Se dois homens, ou duas mulheres, que vivam juntos ou sejam casados, quiserem assumir o filho de um deles como se fosse seu, através da co-adopção, porquê insistir em deixá-lo "incógnito"?
terça-feira, 21 de janeiro de 2014
Vida desprezada
Todos os dias mergulham nas minhas mãos temas e anzóis que me permitem escrevinhar histórias e ficar preso a muitas outras. Tropeço nelas como um bêbado nas pedras da calçada. Algumas fazem-me rir e outras fazem-me chorar, afinal não é mais do que o comportamento típico de um bêbado quando combina a natureza do seu estado de espírito com a qualidade do vinho que emborcou. São tantas as ofertas que chego a ponto de as deixar fugir, talvez para não ficar dependente, talvez por não querer sofrer, talvez por mero esquecimento, talvez por nada de tudo isto.
Olhei. Homem simples, velho na aparência, sofrido no olhar, lento no pensar, educado no falar e humilde no vestir. Olhei e cumprimentei-o. Já nos conhecíamos. A última vez que o ouvi foi há um ano, na altura foi fácil diagnosticar vários problemas, entre os quais uma grave hipertensão. Já sei de antemão que muitos trabalhadores "guardam religiosamente" os seus problemas, infelizmente. Apercebi-me que tudo estaria na mesma. Um atrás de outro mantinha-se tudo inalterado. De todos os fatores o que mais me preocupava era a sua hipertensão, grave, muito grave. Tudo na mesma. Perguntei-lhe se não tomava medicamentos, se não fazia tratamento. Disse-me que sim, que fazia, mas perante aqueles valores, muito preocupantes, acabou por dizer que ultimamente não tinha tomado com a regularidade necessária. Adiantou-se na explicação ao dizer que não tinha dinheiro e que a farmácia não lhe fiava. Mas assim, disse-lhe, vai ter graves problemas em breve. O medicamento que toma é caro, perguntei-lhe. Respondeu-me que sim. Não tive tanta certeza de que o medicamento fosse assim tão caro, apesar de não me ter dito qual era. Mas antes que continuasse a conversa, adiantou-se, coçando a cabeça, onde pairavam tufos de cabelos brancos secos e desnutridos, dizendo: - Na sexta-feira recebo e vou à farmácia buscar o medicamento. Olhei para a sua face triste, olhei para os valores da pressão arterial, olhei para a idade, olhei para o futuro, olhei para todos os lados e fiquei sem ver onde andava a solução. Saiu cabisbaixo arrastando consigo uma humildade ultrajada pela pobreza de uma longa vida e pelo desprezo de uma sociedade que nunca se irá lembrar dele.
Fiquei com a sensação de ser um médico a quem roubaram o coração.
Acerca do genes do Estado português. Das suas congénitas doenças.
Aproveitem esses minutos livres e leiam - bastam as primeiras páginas - o relatório do orçamento do reino para o ano de 1836 para que aponta o link.
A insustentável leveza constitucional da igualdade
Em nome da igualdade, os açoreanos funcionários públicos ficaram ontem constitucionalmente autorizados a receber uma remuneração complementar que os continentais funcionários ou os madeirenses funcionários não podem receber.
Por certo, é também em nome da igualdade que os açoreanos não funcionários nem sequer pensam em que poderiam usufruir de tal benesse funcionária, e é também em nome da igualdade que correm o risco de serem despedidos, em contraponto aos funcionários que asseguraram emprego para a vida.
O princípio da igualdade, mesmo com a densificação que o Constitucional se tem comprazido em revesti-lo, apresenta-se de volatilidade extrema. Levita e foge e escapa a uma normal compreensão.
A igualdade constitucional é de uma insustentável leveza. E, aqui, não creio que a culpa seja da Constituição. Mas de humores e circunstâncias de momento. Mas, pelos vistos, é na discricionariedade que se afirma o poder.
A Inevitável Realidade
Já fui criticado por alguns dos meus oponentes em debates em que participei
devido ao facto de os confrontar com a realidade – e de chegar à conclusão que
tudo o que defendem no campo económico pode ser muito estimável (embora eu
discorde da maior parte) mas não é possível concretizar.
Que sou resignado;
que desisto com facilidade; que é lastimável ver alguém com responsabilidades
políticas vergar-se à realidade – foram algumas das expressões que me foram
dirigidas...
... Que,
evidentemente, não levei a mal, nem tomei como críticas – porque não é disso
que se trata. É que, em minha opinião, não há pior do que expressarmos aquilo
que defendemos, as nossas ideias e soluções, as nossas alternativas, sem que
elas tenham o mínimo de exequibilidade porque... não descemos à realidade.
Atenção, o que
acabei de referir não deve ser confundido com conformismo ou resignação – que,
evidentemente, não professo. Deve-se sempre tentar que as coisas possam correr
como defendemos ou desejamos – mas não de forma que se torne irrealista.
E nada melhor do que
contactarmos com a realidade para percebermos que podemos estar... muito enganados.
Como mostram os dois casos que a seguir aponto: um, a nível nacional; outro,
internacional (em França).
Durante vários anos,
Bernardino Soares, por quem tenho consideração e simpatia, foi Deputado do PCP
e líder da bancada comunista na Assembleia da República. Durante todo esse
tempo, teve apenas que difundir soundbites, na maior parte das vezes
contra o “grande capital” e os “grupos económicos”, bem como contra o "Pacto
de Agressão" que constitui, para o PCP, o Programa de Assistência
Económica e Financeira (PAEF), e a austeridade a ele associada (nomeadamente os
cortes nas prestações sociais e na massa salarial na esfera pública). Sucede
que, desde Outubro passado, Bernardino Soares é presidente da Câmara Municipal
de Loures. E desceu à terra: ao tomar posse, deparou-se com um município
depauperado, com uma situação financeira “dramática” (nas suas palavras), e a
absoluta necessidade de tomar medidas que, na maior parte dos casos, são o
contrário do que anos e anos a fio defendeu no Parlamento. Veja-se: realização
de uma auditoria à gestão e à situação financeira do município; adopção de
“inevitáveis medidas de redução da despesa”; avaliação das avenças e da
prestação de serviços; reajustamento dos serviços da câmara... E mais: “temos
de ver onde podemos reduzir os custos”; “estamos a arrumar a casa"; “há
que fazer muito com pouco”. E decidiu também não aumentar o IMI para os
residentes no concelho, porque isso lhes “dificultaria ainda mais a vida”. Ou
seja: cortar na despesa e não aumentar impostos para não degradar a economia do
concelho – quem diria, hein?!...
O segundo caso que
aponto tem a ver com o Presidente Francês, François Hollande que, depois de já
ter desiludido os que depositaram nele a esperança de contrabalançar a gestão,
digamos, muito alemã que tem sido feita da crise das dívidas soberanas na Zona
Euro (nomeadamente para os países periféricos, nos quais se inclui Portugal),
apresentou, na semana passada, um plano de austeridade que passa por uma ampla
reforma do Estado – nas suas estruturas e funções – e por cortes mais profundos
na despesa pública, designadamente nos "excessos e abusos" na saúde e
prestações sociais, incluindo pensões. Tal significa, depois dos cortes de
cerca de EUR 15 mil milhões na despesa pública programados para 2014, reduções
adicionais de cerca de EUR 50 mil milhões para o período 2015-2017 (quase 2.5
pontos percentuais do PIB). Tudo isto com o objectivo de anular progressivamente
o défice público e o peso do Estado na economia, de modo a criar margem para
baixar os impostos sobre as empresas. E porquê? Porque, de acordo com Hollande,
só as empresas são “capazes de gerar empregos sustentáveis”, sendo que o combate
ao desemprego, que afecta quase 3.3 milhões de franceses, é a sua prioridade. Voilà.
Depois das promessas da campanha eleitoral, François Hollande tem vindo
progressivamente a perceber a realidade em que caiu e, face a ela, o que é
necessário fazer para colocar “nos carris” uma economia estagnada e com um
nível de endividamento público que começa a ser preocupante.
Creio que os dois
exemplos são paradigmáticos e falam por si – mas ainda os posso reforçar com a
minha experiência: como se sabe, tenho defendido que o PAEF de Portugal deveria
ter sido melhor negociado de início e melhor modificado – tornando-se mais
realista – ao longo do tempo. Teria sido benéfico para todos – mas,
infelizmente, não foi essa a leitura da Troika, que nos está a financiar e que
tem “a faca e o queijo na mão”. E, como tal, o que melhor tínhamos (e temos) a
fazer era... mostrar vontade de cumprir e procurar alcançar resultados. Porque,
pragmaticamente, dada a realidade, qualquer outra opção seria muitíssimo pior.
Quando não temos que
lidar com a realidade (como sucedeu com Bernardino Soares e François Hollande
antes de serem eleitos), tudo parece fácil – incluindo apontar potenciais
caminhos e soluções que, depois, afinal... têm que ser metidos na gaveta. Por
mim, procurarei sempre não me afastar da realidade – porque entendo que só
assim conseguirei apresentar soluções concretizáveis. Quer enquanto economista,
quer como professor ou político.
Nota: Este texto foi publicado no Jornal de Negócios em Janeiro 21, 2014.
segunda-feira, 20 de janeiro de 2014
Aparências
A juventude está associada a um impulso de mudança ditada por uma forma de olhar o mundo à sua volta sem o lastro da memória, sem medo de quebrar convenções, preconceitos ou formas tradicionais de fazer. Está associada à capacidade de acreditar sem ter medo de sofrer desilusões, à frescura de um novo olhar, irreverente, crente e corajoso. Por isso se conta com a capacidade dos jovens para abrir novos horizontes e trazer esperança aos que já olham cansados o caminho, por isso se espera que critiquem velhos métodos, que não se conformem com o ter que ser e antes tenham o arrojo de lutar lealmente no confronto de ideias e nas decisões que daí resultem. A mera aparência das coisas costuma ser uma das fontes de rebelião dos jovens, eles clamam pela verdade, querem entender e exigem ser parte, insubordinam-se com a deturpação das coisas e são impiedosos a confrontar quem os tenta enganar. Não se é jovem apenas porque se tem poucas décadas de vida, ou porque se empurra os mais velhos para o lado quando já não se podem defender, a força física ou a força do número nunca fizeram um mundo melhor, a juventude sim, mas a de atitude, a de espírito, a da lealdade e da coragem, essa sim, é que nos pode dar esperança. São as atitudes e a mentalidade que são jovens ou velhas, não são os bilhetes de identidade mas, se não forem assim nos verdes anos, o que serão quando forem velhos?
Pensões e capital de confiança...
Há já muito tempo que sou de opinião que é preciso revisitar o nosso sistema de Segurança Social. A última vez que o fizemos foi em 2006/2007. Incluo aqui não apenas o sistema de pensões do sector privado, mas também o sistema de pensões da função pública cuja convergência com o primeiro tem vindo há já muitos anos a fazer gradualmente o seu caminho. E incluo também as contingências imediatas - desemprego e doença - e o universo de apoios sociais que visam proteger as pessoas e as famílias em situação de carência económica e de vulnerabilidades várias.
Os factores da demografia e da economia que estiveram na origem dos sistemas de repartição contemporâneos em que as contribuições dos trabalhadores e das entidades patronais financiam as pensões sofreram evoluções que introduziram problemas nos modelos de financiamento contributivos. Basta que pensemos nas consequências económicas e sociais do declínio demográfico e nas alterações significativas ocorridas na organização económica e do trabalho. Estes não são fenómenos conjunturais, são tendências estruturais há muito identificadas.
Temos visto afirmar com insistência - mas nem por isso com o necessário debate - a questão da necessidade de garantir a equidade e solidariedade intergeracional entre gerações sucessivas. Estamos de acordo com o princípio e a necessidade de o praticarmos. No fundo está em causa saber como podemos garantir que os trabalhadores que estão hoje no activo e os jovens que entrarão, entretanto, no mercado de trabalho terão no futuro os mesmos níveis de pensões que hoje são pagos aos seus pais e avós. Será possível?
Não é solução a opção por um caminho de incerteza sobre o futuro das pensões e de desconfiança no Estado que não é capaz de assegurar que os contratos implícitos entre gerações sejam cumpridos. Nenhum sistema de segurança social sobrevive num clima de desconfiança e de permanente instabilidade causada pela mudança arbitrária das regras e em soluções políticas que invariavelmente reduzem pensões. O capital de confiança na Segurança Social perdeu-se.
Um sistema de segurança social no qual ninguém acredita está condenado nas suas funções de coesão e protecção social, dele também não se pode esperar que ajude a economia. E sem economia não se produz riqueza e não havendo riqueza não há para (re)distribuir.
Impõe-se, portanto, que seja feita uma avaliação séria da situação, distinguindo os efeitos conjunturais da crise dos factores estruturais que influenciam no médio e no longo prazo a evolução do sistema. Uma coisa parece ser certa, para manter a equidade e solidariedade intergeracional temos que ter mecanismos de ajustamento do equilíbrio financeiro do sistema, com base em regras claras e definidas, que assegurem uma repartição justa dos benefícios e custos ente as gerações. Mas temos que ter também os incentivos para que as pessoas e as empresas canalizem contribuições e poupança para a reforma, seja para os sistemas públicos de pensões seja para sistemas privados. Mas sem um quadro regularório e fiscal de compromisso, estável e previsível não haverá confiança.
É por isto e muito mais que a confiança é fundamental à sustentabilidade dos sistemas de pensões...
Uma questão de perfil
A moção de estratégia que o dr. Passos Coelho vai apresentar ao congresso do partido que lidera e liderará, discorre sobre o perfil do futuro candidato a apoiar pelo PSD às eleições para a presidência da república que ocorrerão daqui a uns largos meses. Pretende-se que o candidato encare o futuro presidente, no exercício da função, "mais como um árbitro ou moderador, evitando tornar-se numa espécie de protagonista catalisador de qualquer conjunto de contrapoderes ou num catavento de opiniões erráticas em função da mera mediatização gerada em torno do fenómeno político" ou da "popularidade fácil".
No seu espaço habitual de comentarista, o professor Marcelo Rebelo de Sousa, respondendo a uma pergunta de um vulgar mas muito arguto e perspicaz cidadão, desistiu de se fazer candidato porque achou que este perfil lhe assentava. Passos Coelho já se mostrou surpreendido com a atitude do professor recusando enfiar-lhe a carapuça.
Confesso-me pelo menos tão surpreendido como o dr. Passos Coelho. Então o professor Marcelo acha que encaixa na categoria dos que têm do PR a ideia do "protagonista catalisador de contrapoderes" (ainda por cima "de qualquer conjunto"!)? Julga-se "um catavento de opiniões erráticas"? Admite ser visto como alguém funcionalizado à "mera mediatização gerada em torno do fenómeno político" ou da "popularidade fácil"? Pelo que entendi, parece que sim, ao considerar que aquele perfil é o seu.
Mas mais espantosa é a razão que julga estar na base da vontade de Passos Coelho excluir o candidato a candidato Marcelo. Diz o professor que o PM pensa que pode ganhar as eleições legislativas pois as coisas estão a correr-lhe bem, e por isso sente-se com força para desde já afastar quem não gosta. Imaginava eu que Marcelo candidato se afirmava acima dos partidos, sem renegar, porém, o seu apoio. E imaginava também que o candidato, quando decidiu que o era, passou a acender pelo menos uma vela por dia ao santinho da devoção para não ter ao seu lado na campanha eleitoral o atual PM.
Com esta minha notória falta de acuidade, vou-me subtrair por uns tempos ao exercício de interpretar factos e vontades das nossas elites.
"Sexo e outras deficiências!"...
Diz Fernando Sebastian, futuro cardeal, que "a homossexualidade é uma forma deficiente de exprimir a sexualidade, porque esta última tem uma estrutura e um objetivo que é a procriação ". Ainda por cima o senhor compara esta "deficiência", homossexualidade, com outra "deficiência", a hipertensão que sofre e que, como tal, tem de corrigir. Mal sabe o senhor que muitas doenças que atingem o ser humano e, também, os animais, são a tradução de fenómenos adaptativos que permitiram que chegássemos onde estamos, ou seja, o que está na base da hipertensão, por exemplo, são mecanismos que permitiram há centenas de milhões de anos a saída dos animais do meio hídrico para poderem viver em terra. Mal sabe o senhor que certas doenças metabólicas, as tais "deficiências", segundo o seu juízo, que são muito prevalentes hoje em dia, caso da diabetes, hipercolesterolemia e obesidade, não são mais do que a expressão adaptativa, outrora benéfica e vantajosa em termos evolutivos, mas que agora, face aos estilos de vida que adotámos e ao facto de vivermos cada vez mais, acabam por se manifestar de forma deletéria. Mesmo o facto de conseguirmos chegar a idades avançadas, caraterística da sociedade ocidental, constitui um fenómeno "contranatura" mas que acaba por ser muito agradável ao permitir mais anos de vida, mais anos para aprender e mais anos para amar.
O senhor desconhece que a homossexualidade existe noutras espécies animais, largas centenas, logo, não pode vir a terreiro afirmar que o "objetivo principal e único da sexualidade é a procriação". No caso da nossa espécie não é, serve para isso, naturalmente, mas serve para muito mais, para reforçar laços, sentir a beleza da existência e contribuir para cimentar e perpetuar o amor.
Poderia dissertar um pouco mais sobre estes assuntos, mas julgo ser suficiente. De qualquer modo, não posso deixar de manifestar que certas individualidades, ao apontarem para certas "deficiências" na adoção de certos comportamentos, deveriam aprofundar mais os seus conhecimentos. Para terminar, e dado que se aproxima a hora de jantar - estou com fome! -, penso que o prazer gastronómico deveria ser considerado também como uma "deficiência". Bastava aos seres humanos ingerirem "matéria orgânica comestível", que está ao nosso alcance, para satisfazer a necessidade fisiológica primordial que é "matar a fome" e sobreviver. Falo de gastronomia, porque existe, como é fácil de compreender, um certo paralelismo entre o sexo e a alimentação. Para já são os dois mais poderosos motores que garantem a existência do indivíduo e da espécie, em segundo, nós, os humanos, fomos capazes de os transformar em deliciosas fontes de prazer, e há mesmo momentos em que é difícil separá-los...
Vá lá senhor futuro cardeal, trate da sua hipertensão com muito cuidado, não abuse do sal e não permaneça muito tempo à mesa, pode-lhe ser fatal e, quem sabe, se não é, também, na sua perspetiva, mais uma "deficiência" a corrigir...
Eu vou corrigir a minha e quanto antes. Não quero ficar fechado na faculdade.
Bom apetite e ótimo jantar para todos.
Isto está a virar!...
Ontem, domingo, 18 de Janeiro, algures entre Viseu e Guarda, na A25, pelas
11 horas da manhã.
-Já viste a quantidade de
camiões que estamos a ultrapassar? - disse eu para um dos meus
companheiros de viagem, muito experimentado naquela estrada, por sinal o
condutor da viatura...
-Vinha a reparar nisso, respondeu o meu amigo. Mas não é de agora, há já
uns tempos que venho notando...
-E então?
-Então? Então é que isto está a virar!...(e entrou numa explicação técnica para evidenciar
que o facto de esse movimento de TIRs se efectuar ao domingo assumia ainda um
maior significado). E continuou: as
empresas estão a trabalhar mais, se não havia este movimento e, se trabalham
mais, empregam mais ou pagam mais. É bom, porque, mais tarde ou mais cedo, vai chegar a todos...
O meu amigo não sabe muito bem, nem porventura muito mal, o que é o PIB, mas tem uma ideia nítida do que é a actividade económica. Ao contrário de muitos e variados famosos economistas e catedráticos, que saberão vagamente o que é o PIB, mas nada sabem do que seja actividade económica. E ainda há dias um deles, o Director, insigne por certo, de uma Faculdade de Economia do centro do país, perorava sobre os malefícios absolutos da evolução positiva da balança de pagamentos...
Uma viagem pela A25 com o meu amigo não lhes faria, por certo, mudar
de ideias. Mas, em dia de neve na serra, até era capaz de lhes refrescar a
cabeça.
É que a economia, mesmo hostilizada por um Estado que a suga até ao tutano, mais uma vez mostra que sabe reagir.
Mais uma vez é a economia, a dos bens transaccionáveis, e não a política, que nos vai valer.
É que isto está mesmo a virar!...Só catedrático e bem pensante é que não vê.
domingo, 19 de janeiro de 2014
Sabor a marmelada
Senti o convite da solidão de domingo para que o preenchesse. Afinal o domingo à tarde também sofre de depressão. Falta-lhe algo que preencha e justifique o seu respirar. O domingo não foi feito para descansar, mas sim para meditar, brincar, amar e sonhar. Fiz-lhe a vontade e trabalhei. Em troca deu-me uma moeda de ouro de paz. Gostei da oferta. Com ela, no bolso da imaginação, fiz o que faço a meio da tarde de um domingo. Subi a encosta e as escadas e dei um pouco de conversa. Em troca deram-me lembranças que já não me recordava. - Sabes. Disse-me uma senhora que me cumprimentou de forma efusiva e que me incomodou. Não a reconheci a princípio. Só ao fim de alguns instantes é que me apercebi quem era. Não tinha, na altura, os neurónios ligados na área do reconhecimento facial e oral, embora julgue que, mesmo que os tivesse a funcionar em pleno, iria ter alguma dificuldade. Estava diferente, em tudo, na cara, claro, e numa desinibição preocupante. Mas ia lá, sem dúvida. Olhei-a e fui dar-lhe um beijinho. - Sabes. Num tom alto para que todos pudessem ouvir. - Em pequeno dei-te uma valente palmada no rabo. Vi logo que não ia sair nada de bom. Um generoso riso de orgulho e de gozo inundou-lhe a face, como quem diz, "eu bati naquele senhor que está ali sentado". Quem diria, não é verdade? - Sabem porquê? Agora não era para mim que se dirigia mas para a pequena multidão em redor. - Eu vivia perto da casa dele quando era pequeno e a mãe teve de sair e pediu-me para tomar conta do rapaz. Eu disse-lhe que sim. Passado algum tempo reparei que as malgas de marmelada que a mãe tinha feito estavam todas furadas com o dedo. O rapaz andou a experimentar todas as malgas! Quando vi aquilo fiquei varada e dei-lhe uma valente palmada no rabo. Pois, teve que ser. Já viram o que ele fez, e ainda por cima a mãe tinha-me pedido para tomar conta dele. A satisfação com que contava a história era mais do que evidente. Olharam todos para mim para ver como é que reagia o rapador de marmelada caseira. Sorri e não disse nada. Limitei-me a navegar no tempo e, sinceramente, não me recordo da palmada. Talvez com algum esforço pudesse lá chegar, mas como levava tantas, esta deverá ter passado despercebida. No entanto, subiu-me ao miolo algumas imagens de malgas com marmelada acabada de fazer e que estavam a "secar". Todas elas tinham algo em comum, um buraco. Deve ter sido verdade, porque a outra memória, a do "gosto", estremeceu de prazer com o sabor da marmelada armazenada, um sabor de longa data que ainda está em boas condições. Se está!
Afinal, a moeda de ouro que o domingo me ofereceu não era de ouro, mas de uma saborosa marmelada feita pela minha mãe.
Um sabor que perdura...
Coisas que acontecem...
Foi noticiado recentemente que uma freira de 32 anos, salvadorenha, deu à luz um menino num hospital italiano. Foi acometida de fortes dores abdominais e ao chegar às urgências do hospital o diagnóstico foi fácil de fazer, estava em trabalho de parto. Pariu um menino. A freira desconhecia que estava grávida e, às tantas, nem soube como é que as "coisas" aconteceram.
Sorri perante este episódio e recordei um outro ocorrido há muitos anos, talvez em 1975 ou 1976, no decurso do processo da vinda dos "retornados". Era um jovem médico do internato geral. Estava de serviço às urgências e fazia equipa com mais uma colega de curso. Foi no velho hospital da Universidade de Coimbra, na altura ainda não funcionava no rés-do-chão, mas no primeiro andar. Entrou uma jovem negra a queixar-se de fortes dores abdominais. Deitámo-la na marquesa da primeira sala e procedemos ao interrogatório e exame físico. Levantei-lhe as saias e vi que tinha um abdómen um pouco volumoso, mas nada de especial. Quando ia a começar a fazer a apalpação, com a natural hipótese de apendicite aguda a bailar nos neurónios frescos e cheios de informação, olhei para a linha média e vi que naquela escuridão, própria da etnia a que pertencia, ainda estava mais escura. Sobrepus aquela imagem à que já tinha observado nas grávidas e fiquei de boca aberta com as mãos levantadas como se estivesse pronto a começar a fazer uma prédica no templo da vida. Olhei para a minha colega e apontei-lhe para a linha do meio com uma cor de chocolate mais negra do que a pele em redor. Continuei a examiná-la e perguntei-lhe se estava grávida.
- Grávida?! Quem? Eu? Respondeu-me com muita surpresa.
- Sim.
- Não!
- Não?
- Não. Que coisa mais estúpida.
- Há quanto tempo não tem o período?
- Não sei, não sou regular. Entretanto ia palpando o abdómen e não me foi difícil apanhar um pé a querer fazer desenhos na barriga. O safado estava de cabeça para baixo e não deveria faltar muito para ver a luz do dia. Pedi à minha colega que fosse interrogar os acompanhantes, depois de lhe ter perguntado quem é que tinha vindo com ela.
- Os meus padrinhos.
- Vai lá ver o que é que se passa. Voltou passado uns minutos.
- Olha, o melhor é tu ires falar com eles.
- Porquê?
- Porque sim. Há ali qualquer coisa que não bate certo.
- Está bem, mas o melhor é pedires uma ambulância para levar a cachopa, que tinha 15 anos, para a maternidade. Não me apetece fazer um parto aqui, era o que mais me faltava. Saí e falei com o casal. Já tinham passado a meia-idade, uma meia-idade avançada. Perguntei o que é que se tinha passado com a rapariga, convicto de que poderiam saber mais sobre o estado dela. Mas a forma como davam explicações não me permitiram concluir nada de especial. Era afilhada e tinha vindo de Angola com eles.
- Sabem se a rapariga tem namorado?
- O quê? Disse de uma forma enxofrada o padrinho.
- Namorado? O que é que o senhor quer dizer com isso? Eu não lhe admito coisas dessas, ouviu? Ela está aqui por causa de dores na barriga, está tão doente e aflita e o senhor a perguntar se tem namorado. Mas isso faz algum sentido? Atrapalhado, comentei:
- Desculpe, tenho de ir lá dentro, eu já volto, vou tratar da sua afilhada.
- Vá, vá. E eu fui. Entrei e perguntei à minha colega:
- Trataste de tudo?
- Já. Telefonei para maternidade. Estão à espera da garota.
- Ainda bem! Respirei fundo. Entretanto, tinham chegado dois maqueiros e dei-lhes ordem para se despacharem.
- Com certeza, senhor doutor. E lá foram. Olhei para a minha colega e disse-lhe:
- Queres apostar comigo que daqui a pouco vai nascer um mestiço.
- O quê?
- Vais ver. Quando sairmos do turno vamos dar uma saltada à maternidade. Combinado? A Rosa ria que nem uma perdida.
- Não me digas que o padrinho...
- Sim, vai ser promovido a pai.
Demos uma saltada à maternidade para vermos como estaria a "doente". Deitada, sem dores, olhava com muita admiração para um saudável menino "café au lait", muito bonito. Rimos discretamente, sem antes ver se em redor não estaria o enxofrado do padrinho transformado em pai.
Os colegas da maternidade assistiam ao nosso "diagnóstico".
- Um milagre. Não acham?
- Um milagre da Santa Milagrança! Ripostei.
- E bem pode dizer. Ainda tinha os "três" intacto.
Por isso, coitada da freira, às tantas nem soube o que lhe aconteceu. Há certos "ares" que podem ser mesmo "pestilentos"..."
Sorri perante este episódio e recordei um outro ocorrido há muitos anos, talvez em 1975 ou 1976, no decurso do processo da vinda dos "retornados". Era um jovem médico do internato geral. Estava de serviço às urgências e fazia equipa com mais uma colega de curso. Foi no velho hospital da Universidade de Coimbra, na altura ainda não funcionava no rés-do-chão, mas no primeiro andar. Entrou uma jovem negra a queixar-se de fortes dores abdominais. Deitámo-la na marquesa da primeira sala e procedemos ao interrogatório e exame físico. Levantei-lhe as saias e vi que tinha um abdómen um pouco volumoso, mas nada de especial. Quando ia a começar a fazer a apalpação, com a natural hipótese de apendicite aguda a bailar nos neurónios frescos e cheios de informação, olhei para a linha média e vi que naquela escuridão, própria da etnia a que pertencia, ainda estava mais escura. Sobrepus aquela imagem à que já tinha observado nas grávidas e fiquei de boca aberta com as mãos levantadas como se estivesse pronto a começar a fazer uma prédica no templo da vida. Olhei para a minha colega e apontei-lhe para a linha do meio com uma cor de chocolate mais negra do que a pele em redor. Continuei a examiná-la e perguntei-lhe se estava grávida.
- Grávida?! Quem? Eu? Respondeu-me com muita surpresa.
- Sim.
- Não!
- Não?
- Não. Que coisa mais estúpida.
- Há quanto tempo não tem o período?
- Não sei, não sou regular. Entretanto ia palpando o abdómen e não me foi difícil apanhar um pé a querer fazer desenhos na barriga. O safado estava de cabeça para baixo e não deveria faltar muito para ver a luz do dia. Pedi à minha colega que fosse interrogar os acompanhantes, depois de lhe ter perguntado quem é que tinha vindo com ela.
- Os meus padrinhos.
- Vai lá ver o que é que se passa. Voltou passado uns minutos.
- Olha, o melhor é tu ires falar com eles.
- Porquê?
- Porque sim. Há ali qualquer coisa que não bate certo.
- Está bem, mas o melhor é pedires uma ambulância para levar a cachopa, que tinha 15 anos, para a maternidade. Não me apetece fazer um parto aqui, era o que mais me faltava. Saí e falei com o casal. Já tinham passado a meia-idade, uma meia-idade avançada. Perguntei o que é que se tinha passado com a rapariga, convicto de que poderiam saber mais sobre o estado dela. Mas a forma como davam explicações não me permitiram concluir nada de especial. Era afilhada e tinha vindo de Angola com eles.
- Sabem se a rapariga tem namorado?
- O quê? Disse de uma forma enxofrada o padrinho.
- Namorado? O que é que o senhor quer dizer com isso? Eu não lhe admito coisas dessas, ouviu? Ela está aqui por causa de dores na barriga, está tão doente e aflita e o senhor a perguntar se tem namorado. Mas isso faz algum sentido? Atrapalhado, comentei:
- Desculpe, tenho de ir lá dentro, eu já volto, vou tratar da sua afilhada.
- Vá, vá. E eu fui. Entrei e perguntei à minha colega:
- Trataste de tudo?
- Já. Telefonei para maternidade. Estão à espera da garota.
- Ainda bem! Respirei fundo. Entretanto, tinham chegado dois maqueiros e dei-lhes ordem para se despacharem.
- Com certeza, senhor doutor. E lá foram. Olhei para a minha colega e disse-lhe:
- Queres apostar comigo que daqui a pouco vai nascer um mestiço.
- O quê?
- Vais ver. Quando sairmos do turno vamos dar uma saltada à maternidade. Combinado? A Rosa ria que nem uma perdida.
- Não me digas que o padrinho...
- Sim, vai ser promovido a pai.
Demos uma saltada à maternidade para vermos como estaria a "doente". Deitada, sem dores, olhava com muita admiração para um saudável menino "café au lait", muito bonito. Rimos discretamente, sem antes ver se em redor não estaria o enxofrado do padrinho transformado em pai.
Os colegas da maternidade assistiam ao nosso "diagnóstico".
- Um milagre. Não acham?
- Um milagre da Santa Milagrança! Ripostei.
- E bem pode dizer. Ainda tinha os "três" intacto.
Por isso, coitada da freira, às tantas nem soube o que lhe aconteceu. Há certos "ares" que podem ser mesmo "pestilentos"..."
sábado, 18 de janeiro de 2014
Escuridão da alma
Os sábados têm o condão de me oferecer algum descanso e propiciar conversas a relembrar que também poderia transformar-me numa espécie de Sherazade. Conheço-os há muito tempo. Têm medo de viver, apesar de já terem vivido muito. Quanto mais vivem mais medo têm do futuro. Confundem as dores e a ansiedade das suas almas como se fossem manifestações do seu corpo. Compreendo-os perfeitamente. É difícil a um ser vivo saber onde acaba um e começa a outra. Se bem que não saiba o que é o nascer da alma, embora tenha visto partir algumas, não me é complicado ver onde paira o mal, mas antes tenho de "provar" que o corpo não está tão doente como julgam, às vezes está um pouco amarelecido ou enferrujado pelo tempo, mas ainda brilha e funciona com vontade de viver. Conheço-os tão bem. Deixo-os falar. Falam libertos de qualquer medo e ansiedade. Falam de tudo, de pequenas coisas, contam e recontam as suas histórias vezes sem conta. Falam da sua vida, do seu passado, de histórias que ouviram dos seus antepassados, alguns dos quais nunca conheceram. Falam, e eu deixo-os falar. Expurgam, mesmo que momentaneamente, o pus de abcessos que atormentam as suas almas. Histórias ricas, desconhecidas, perdidas e que nunca serão achadas. Oferecem-mas sem as pedir. O tempo passa, e a conversa alastra-se impregnando o narrador de compreensão, de alguma felicidade e, até, de esperança. Eu ouço-os. Deveria dizer, eu ouço-as, sim, é melhor dizer, ouço-as, talvez porque as almas femininas sejam diferentes, gostam de se desnudar sem qualquer pudor. Hoje passei a tarde a ouvir duas almas femininas que sofrem de dores da existência, cada uma à sua maneira. A uma delas consegui convencer que o seu mal estava na alma.
- A sua alma está negra.
- E agora, senhor doutor, o que é que tenho de fazer?
- Não sabe? Pense bem o que é que tem de fazer. Olhou-me fixamente. O facto de ser uma mulher do campo não lhe rouba ou limita as suas capacidades de encontrar as soluções para os seus males.
- Só o senhor doutor é que consegue fazer-me rir sem vontade.
- Então, quais são as soluções? Após alguns segundos, imersa numa interrogação silenciosa, enumerou-as de forma exemplar.
- Viu? Sim senhora!
- E o meu joelho? Já agora, gostava que o visse. Replicou, tentando escapar à conversa.
- Joelho?! Fiquei surpreso, porque tinha aparecido à última hora. - Deixe isso comigo. Só quero saber se compreendeu o que é que tem. Compreendeu onde está o seu mal? Sorriu, baixando a cabeça.
- Sei.
- Ora vamos lá ver, então, o que é que se passa com o seu joelho. Uma ninharia face ao historial de "doenças" que vinha desfiando desde há algum tempo. Agora deverão desaparecer, mas a do joelho, não. Também é uma forma de se sentir viva e um pouco enferrujada. Dali não vem grande mal ao mundo e, sobretudo, à sua alma...
- Ora vamos lá ver, então, o que é que se passa com o seu joelho. Uma ninharia face ao historial de "doenças" que vinha desfiando desde há algum tempo. Agora deverão desaparecer, mas a do joelho, não. Também é uma forma de se sentir viva e um pouco enferrujada. Dali não vem grande mal ao mundo e, sobretudo, à sua alma...
sexta-feira, 17 de janeiro de 2014
"Contar histórias"
Quando escrevo tenho por hábito contar alguma história cuja essência possa ajudar quem lê, despertando sentimentos, provocando emoções, dar alguma significado à vida ou semear esperanças para enfrentar o futuro escondido na indiferença, na traição e na incompreensão, mas, ao mesmo tempo, prometendo lançar luminosos e amorosos balões de S. João. Escrever não é complicado nem difícil. Uma simples observação, uma frase, um olhar, um comentário, um qualquer tropeção é mais do que suficiente para acordar a vontade de escrever, um despertar estremunhado ou mesmo alucinado. Outras vezes, a vontade de escrever emerge das profundezas de um estado espírito que procura o alívio através do desenho analgésico de palavras escorridas e enlouquecidas, sequiosas de sol, calor, afeto, amor e de paz.
Gosto de contar histórias pela simples razão de que todo o ser humano precisa de se alimentar do trigo da vida dos outros. Gosto de contar histórias porque ajudam a aperfeiçoar-nos, dão-nos alguma tranquilidade, despertam tristeza, provocam alegria e auxiliam a visualizar os nossos defeitos e virtudes. Gosto de contar histórias e de entrar nas histórias que conto. Não me é difícil nem muito complicado pela simples razão de gostar de ouvir histórias. Afinal não sou diferente dos outros. Ainda bem. Quanto conto uma história conto-a com prazer, com humildade, sem preconceitos, sem outro objetivo que não seja reviver as emoções e os sentimentos que senti quando a ouvi. Não sou diferente de qualquer outra pessoa. Pode haver quem não concorde com a descrição dos meus sentimentos, observações, análises e comentários, mas não pretendo ofender quem não se revê nos mesmos, porque quando escrevo não faço por soberba, vaidade ou superioridade, mas apenas por uma questão de necessidade de contar, de partilhar e de ajudar. Gosto de contar histórias, preciso de as contar e se for caso disso posso escrever apenas para mim. Porquê? Porque preciso de contar histórias e, sobretudo, de as ouvir, nem que seja as que escrevi...
A Praga
Algum dos meus doutos amigos pode informar-me o que é um "constitucionalista" (para além, obviamente, dos professores ou autores credenciados pela obra neste domínio)? É que vejo pelas TV desfilar um rol imenso de pessoas a quem os jornalistas ouvem como "constitucionalistas".
Não estive muito atento ao programa "Novas Oportunidades", por isso...
Avante, Kamarada Hollande!...
Confesso que começo a simpatizar com
Hollande. Eleito, em nome da cartilha socialista de fim das restrições
orçamentais e invocando uma virtual agenda para o crescimento, com mais
despesa pública, grandes projectos e eurobonds, passado menos de um ano começou
a abjurar do erro, por verificar a insensatez das medidas que defendera.
Afinal,
nesse curto lapso de tempo, a dita agenda transmudou-se no corte da despesa
pública, no aumento dos impostos e numa austeridade bem real, apresentada
solenemente na Assembleia Nacional. Para
que o PIB possa crescer, sustentou, na ocasião.
Também para que o PIB pudesse crescer,
passou a considerar necessária a flexibilização laboral e iniciou negociações
com os sindicatos para esse efeito. E se
os parceiros não concordarem, então lamento, mas o Estado vai assumir as suas
responsabilidades, referiu Hollande.
Pois agora
Hollande propõe-se aprofundar a sua renúncia definitiva às doutrinas que sustentou
na sua candidatura, anunciando diminuição de impostos e mais redução
da despesa do Estado.
Tenho sempre
consideração por quem consegue mudar de uma orientação errada para um caminho
certo, embora não esqueça o enorme prejuízo para a democracia e para os povos das
ilusões criadas por demagogias infrenes, como foram as de Hollande. Mas
persistir no erro é bem pior: junta teimosia, sem tino nem senso, à demagogia
inicial.
Claro que a esquerda o acusa agora de “viragem para os braços do liberalismo. E, coincidentemente ou não,
os media franceses que tanto zelavam pelas públicas virtudes e tanto escondiam
os privados pecados dos governantes do socialismo, a começar por Miterrand e a
acabar em DSK, já vão tratando os pecados de Hollande à moda dos pecados dos governantes
de direita. Esconder pecados privados, sim, mas só à “nossa” gente, de que
Hollande, pelos vistos, deixou de fazer parte.
Por mim,
embora ainda desconfiado, começo a
acreditar em Hollande. Um bocadinho, pouco, mas a acreditar. Avante, pois, Kamarada
Hollande!...
quinta-feira, 16 de janeiro de 2014
Pneumonia
Tenho tido ao longo do tempo explicado e dissertado sobre os riscos de incompreensão que os médicos irão sofrer no futuro.
O médico deixou há muito de ser um semideus. Saiu de um pedestal e acabou por se colocar em pé de igualdade com o comum dos seres humanos. É certo que tem a missão de ajudar quem precisa, tratar, curar e aliviar o sofrimento com o mais elevado respeito que qualquer um merece. Ser humanista deveria ser o denominador comum de qualquer um de nós, mas o médico precisa dessa faceta tanto como o domínio da patologia, da terapêutica, da prevenção e da compreensão.
A posição do médico sofreu muitos dissabores nos nossos dias. Já não é um semideus, mas também não é um qualquer, porque quando as coisas correm mal é atacado como se fosse a personalização da maldade, o diabo em pessoa. São muito curiosas as transformações que têm ocorrido e continuam a ocorrer. Ser-se médico é aceitar certos riscos, até riscos de errar. O erro está sempre presente nas nossas atuações e não pode ser considerado como negligência, nem de perto nem de longe. Explico muitas vezes aos meus alunos que o erro está, probabilisticamente falando, nas nossas decisões, e, até, é possível, matematicamente, de o quantificar. O problema é quem está do outro lado que interpreta o erro, ou uma evolução desfavorável, como sendo sinónimos de negligência ou de incompetência. Atendendo à forma como estão estabelecidas as relações entre a população e os médicos, é fácil de compreender o que pode acontecer. Para agravar este fenómeno, não é, também, estranho o papel "divulgador" e mediático que a comunicação social utiliza para se abastecer de audiências e alimentar as tragédias humanas.
Qual foi a razão de escrevinhar estes considerandos? Muito simples. Uma colega confidenciou-me a história de uma jovem médica que viu um senhor de idade. Foi num centro de saúde. Examinou-o e aconselhou-o, caso não melhorasse com a terapêutica instituída, a se deslocar a um serviço de urgência para fazer um raio-X visto não existir naquela unidade de saúde. Passados uns dias recebeu uma carta da filha do octogenário a insultá-la de uma forma que eu classifico verdadeiramente obscena culpando-a de o pai sofrer uma pneumonia e ter ficado hospitalizado. Os termos em que se expressou revelam uma personalidade malévola que provocou profundo mal-estar e sofrimento na jovem médica que acabou por perder o seu avô no dia seguinte devido, também, a uma pneumonia depois de ter saído do hospital.
A queixosa, enfurecida, descarregou sobre uma jovem médica a sua ignorância, que é o menos, mas deixou transpirar o seu verdadeiro caráter. A jovem colega, que poderá ter sido minha aluna, atuou de acordo com a legis artis. Certas situações não são diagnosticáveis num determinado momento porque não atingiram o estado florido, logo, não é possível detetá-las precocemente.
Gostava de a confortar e de a ajudar. Chora pela injustiça e ofensas que lhe foram feitas e chora pela morte do seu ente querido. Nada que me espante conhecendo como conheço a natureza humana.
quarta-feira, 15 de janeiro de 2014
"Não entendo, mas não faz mal"...
Já os conheço, quase que poderia dizer de ginjeira. Sempre a mesma coisa, não aprendem, não acreditam, não assimilam e borrifam-se para os mais elementares e evidentes conselhos e orientações. Não conseguem entender o que digo, será porque não querem, não podem ou têm uma mundividência própria, com as suas própria "leis", interpretações fisiológicas e noções de causalidade que me transcendem? Não sei, só sei que respiram uma indiferença que diria quase patética e que me perturba. No entanto, se começar a falar de certas coisas do dia-a-dia, assuntos sociais, políticos e desportivos, mesmo tendo em conta a tradicional baixa instrução, revelam uma lógica que entendo perfeitamente, sendo mesmo criativos. Então, por que carga de trabalhos não entendem, não interiorizam e não acreditam no que lhes digo em termos de saúde e que podem comprometer as suas vidas a curto e a médio prazo? Não sei, embora me passem pela cabeça muitas e simples explicações. Algumas incomodam-me, porque me levam a tecer considerações pouco abonatórias dos sujeitos, mas não sei se não será uma forma de viver e de ver o mundo através de lentes que não consigo encontrar. É pena, porque de ano para ano vão cometendo os mesmos disparates permanecendo indiferentes e incrédulos ao futuro que em breve lhes irá toldar a alma e desfazer o corpo. Olho-os ao sair convicto de que não irão mudar um milímetro do que quer que seja, embora tenham afiançado que sim, que iriam mudar os comportamentos, que deixariam de beber, que iriam tomar a medicação, e muitas mais coisas. Para o ano, se formos vivos, vamos partilhar as mesmas conversas e eu vou relembrar os efeitos que me produziram nos anos anteriores. Tudo irá ficar na mesma, até que um dia um deles me diz, lembra-se de fulano, aquele que..., sim lembro-me muito bem. Que é feito dele? Oh, está muito mal, coitado, já não trabalha, não sai de casa. Pois, compreendo. Era de esperar, quantas vezes o avisei, quantas, meu Deus. Olhe, se o senhor não seguir os meus conselhos, sabe o que é que lhe irá acontecer? Sabe? Não sabe? Pois, vai-lhe acontecer qualquer coisa parecida. Ah, não me diga! Digo, digo. O olhar retrai-se, o silêncio impera por breves segundos e fico com a nítida sensação de que a conversa não foi suficiente para mudar o que quer que seja. O "delator", que partilha os mesmos tiques que o sinistrado acabado de denunciar, sai convicto de que eu não passo de um parvo. Acontecer o mesmo a mim? Este médico é um parvalhão, só pode ser. Ouço perfeitamente o arrazoado do seu pensamento no silêncio da saída da consulta...
Corrigir um erro pode fazer toda a diferença...
Esteve bem o Provedor de Justiça em recomendar ao governo que os estudantes do ensino superior não devem ser excluídos de apoios sociais - bolsas de estudo - se os pais ou outros membros do agregado familiar têm dívidas ao fisco e à segurança social. Fez bem o governo em acatar esta recomendação, terminando com a inelegibilidade que desde 2012 penalizava aqueles alunos de terem apoios sociais para poderem estudar. Fica assim corrigido um erro que tanta polémica levantou.
terça-feira, 14 de janeiro de 2014
Deputado
Estou a ver o "cinco para a meia noite" em quem o "bastonário" dos TOC fez a seguinte afirmação, "A Assembleia da República é a melhor escola da vida para quem trabalha (lá, na AR)". É verdade. Eu, na minha longa vida profissional e académica, confesso que foi a maior e a mais gratificante experiência que tive até hoje. Trabalhei e dei o meu melhor pelos meus concidadãos enquanto deputado. Uma honra que nunca irei esquecer. Escrevo aqui, preto no branco, a seguinte afirmação, nunca tive experiência igual a esta, a mais rica, a mais nobre, a melhor de toda a minha vida. Trabalhei? Sim. Dediquei a todos o meu esforço? Sim, dei. Arrependido? Nunca. Agradeço a oportunidade de ter caído naquele espaço.
À espera...
Esperar é deixar que o tempo corroa lentamente a alma. Esperar é aproveitar para mal pensar. Esperar é desejar não saber e nem querer existir. Esperar é uma espécie de tormento à espera da paz de uma boa notícia. Esperar é mesmo desesperar. Eu espero e desespero.
O tempo teimou em passar devagar, lento e torturante como só ele é capaz de fazer. Delicia-se com a angústia do próximo. Fiz de conta que não percebi. Fiz esforço para o ignorar, não sei se consegui, mas pelo menos tentei enganá-lo, coisa que não senti. Olhava e esperava. A espera, longa e enigmática, teimava em desesperar-me. Vi o mundo de forma diferente. Vi a noite a cair sobre mim de forma diferente. Tudo pareceu, de repente, ser diferente. A vida é muito diferente quando nos confrontamos com a nossa vida e a vida dos que são queridos. Não quero ser diferente, quero apenas a tranquilidade e o sossego do silêncio do meu momento. Eu tenho os meus momentos, muitos assustam-me, outros alegram-me e alguns ajudam-me a compreender a beleza e a simplicidade da vida.
O que é que eu quero desta vida? Pouco, muito pouco, apenas viver de forma simples e apreciar a beleza.
Pouco? Sim, pouco, mas eu não sou louco, sou apenas uma breve alma à espera de ouvir, sentir e embebedar-me com a essência de seres que não sejam ocos.
Não preciso mais.
Pouco? Sim, pode ser pouco, mas eu não sou louco, nem quero enlouquecer, apenas desejo viver...
Revalorizar a representação
Este artigo de Paulo Rangel é de destacar e de aplaudir. Antes de mais pela coragem que o seu autor revela ao denunciar as razões que justificam a inércia na reforma do sistema político, situando-as nos partidos, sem exclusão do seu, o PSD. Mas é também de aplaudir porque Paulo Rangel, retomando as propostas que o politólogo Pedro Magalhães fez renascer há dias sobre o voto preferencial (com ecos na imprensa mais qualificada e nas redes sociais), chama a atenção para a necessidade premente desta reforma na revitalização da democracia representativa.
Apesar dos contributos que chegam do mundo académico, e não só, sobre o aperfeiçoamento dos sistemas (político e partidário) que dependem de alterações do sistema eleitoral, a verdade é que, como escreve Rangel, "a experiência das últimas décadas prova e comprova que os partidos dificilmente são capazes de se reformar por sua própria iniciativa. Existe uma inércia interna, feita de uma cultura de aparelho de poder, que os torna hostis e renitentes a qualquer mudança. Eis o que explica que não adoptem espontaneamente práticas de equilíbrio de género, não promovam motu propriu a limitação e renovação de mandatos executivos, sejam relapsos a qualquer esquema de selecção de candidatos que possa envolver não militantes", bem como a outras propostas que possam por em causa o status quo, o poder dos diretórios e o caciquismo partidário.
É um dado de facto que no Parlamento não existe quem, com força, prestígio e peso político, queira ou esteja em condições de quebrar a inércia, lançando um debate sem complexos, do qual não se exclua qualquer das soluções de reforma do sistema eleitoral (nem aquela que Rui Rio hipotizou há semanas, de fazer refletir a abstenção na composição do Parlamento).
Demitindo-se o Parlamento por clara conveniência dos partidos, resta a quem, na sociedade civil, tem acesso a alguns meios, contribuir para formar uma opinião pública pressionante, que encontre no interior dos partidos outras vozes como a de Paulo Rangel, que amplifique os estudos, debates, reflexões feitas na academia e fora dela. Ou desperte no senhor Presidente da República o sentimento de que pode aí desempenhar um papel relevante na regeneração da República, lançando através da Presidência iniciativas que favoreçam este debate. Em exercício do seu último mandato e afastado do mundo dos partidos, o PR poderá bem com as críticas de ingerência em atribuições do parlamento que facilmente se adivinham.
O efetivo poder
As TV colheram e exibiram dezenas de depoimentos de cidadãos franceses. Unanimidade: na senda do tradicional liberalismo de costumes, para os franceses o episódio da vida privada do seu chefe do Estado pouco lhes interessa do ponto de vista da qualificação de Hollande para o desempenho de funções. É um fait divers que não desvia das reais preocupações nem influencia o juízo individual e coletivo sobre as suas responsabilidades na condução política no seu país. Contudo, os media tomaram posição diferente e ergueram a alegada infidelidade do senhor a assunto de Estado de primordial relevância. Fazem-no com pormenores verdadeiramente caricatos como estas interrogações que dão lastro ás mais fantásticas análises: sendo o homem solteiro, pode verdadeiramente falar-se em infidelidade à primeira dama? E não sendo casado com a primeira dama, a primeira dama tem o direito ao estatuto?
Cada vez é mais evidente que é a comunicação social que dá ou retira dimensão política aos factos. Não admira, pois, que tantos façam gestão política em função da comunicação social.
segunda-feira, 13 de janeiro de 2014
"Oração"
Telefonaram-me há dias perguntando se a podia ver. Lembrei-me de imediato quem era e fiquei surpreendido, ainda estava viva. Explicaram-me os motivos, e eu, naturalmente, disse que sim. -Tem 97 anos e está com alguns problemas motores. Pensei que queriam que fosse a casa vê-la. - Então, nesse caso vamos aí para a semana. As surpresas somavam-se umas atrás de outras. Tratava-se de uma senhora que vive sozinha há muitos anos, fina, delicada, mas que que trabalhou no duro no estrangeiro durante muitos anos. Apesar de não ter muita instrução, tinha, e continua a ter, traços de uma espontânea e encantadora aristocracia, a que não é estranho a inteligência, superior aos demais, e uma alma verdadeiramente cristã. Não é comum recordar a vida das pessoas, mas neste caso, talvez pela singularidade da sua vida e forma de estar, recordei as últimas vezes que a vi há cerca de oito anos. Vi-a mentalmente, uma senhora socialmente soberba, quer no raciocínio quer no trato e na forma como se exprimia.
Fisicamente não me foi difícil verificar que a sequela de um acidente vascular cerebral impedia-a de executar as suas lides domésticas e cuidados pessoais. Não tem ninguém, nenhum familiar direto ou afastado. Não tem dificuldades financeiras, apesar de não ser rica. Presa e amante de sua casa, recusa-se, obstinadamente, de acordo com a acompanhante, a ir para uma instituição. A sua situação causou-me não perplexidade mas uma profunda perturbação. Fiquei num estado de ansiedade. A situação era mais social do que médica. A senhora queria que lhe desse "força" naquela perna para poder fazer o seu dia-a-dia. Depois de inspirar fundo tive de lhe dizer abertamente que não podia continuar a viver sozinha. Não foi fácil, reagiu, debateu-se, chorou, e implorou para continuar a viver na sua casa. As mãos juntaram-se e elevaram-se na prece mais sentida que vi, ouvi e senti até hoje, colocando-me num hipotético altar de um qualquer nobre templo, como se fosse um representante do divino. Comoveu-me aquele pedido e oração. Desci do altar e expliquei-lhe as razões da minha decisão. As lágrimas brotaram-lhe dos olhos e o carinho e respeito como continuava a tratar-me perturbaram-me sobremaneira. Senti estranhas sensações, cumprir com o meu dever, tentar demovê-la dos seus intentos sem a ferir, criar confiança no futuro e não a fazer sofrer foram algumas das minhas intenções. Tinha que fazer algo, tentar justificar que as instituições que se dedicam a cuidar de idosos são idóneas, cristãs e respeitadoras das necessidades de qualquer pessoa que precise de carinho, cuidado e atenção permanente. Foi difícil, muito difícil, tive que personalizar a situação descrevendo a minha experiência a vários níveis, coisa que habitualmente nunca faço. Fi-lo com o objetivo de a convencer. Fi-lo e prometi-lhe que até ao último dia da sua existência lhe daria todo o cuidado e atenção que necessitasse, mas em troca teria de aceitar o meu pedido. Foi dramático, muito dramático. Conversámos. As suas mãos, sempre na posição de oração, viraram-se mais uma vez para mim, acompanhadas de belos olhos que lacrimejavam gotas de compreensão, e, finalmente, um doce e tranquilo sorriso resplandeceu naquele velho rosto, agradecendo e dando a entender que ouviu ou sentiu a força de alguém ou algo que eu não ouvi nem senti. Quando vi o novo olhar e o sorriso brilhante, lançados através de um longo beijo atirado com as suas mãos enrugadas, senti um agradável conforto no silêncio da despedida. Respirei fundo.
domingo, 12 de janeiro de 2014
ADSE: que futuro para os seus beneficiários?
O aumento da contribuição a cargo dos trabalhadores e
reformados da função pública para a ADSE estabelecido no Orçamento do Estado para
2014 de 2,25% para 2,5% foi agora corrigido pelo governo para 3,5% para
compensar parte da redução da despesa obtida com o corte de 10% das pensões em
pagamento chumbado pelo Tribunal Constitucional. Foi esta a opção do governo, juntamente com o
aumento da Contribuição Extraordinária de Solidariedade que irá atingir adicionalmente
mais cerca de 140.000 pensionistas (CGA e Segurança Social).
Com aquele aumento, o Estado passará a assegurar apenas uma
contribuição de 0,25%, tendo sido anunciado que esta parcela será transferida
para os beneficiários em 2015, deixando o Estado de suportar quaisquer custos com a ADSE. Mas
o Estado deixando de ter custos com este sistema de saúde, continua a ter poupanças
com a despesa do SNS. Os beneficiários da ADSE resolvem as suas necessidades de
serviços de saúde não recorrendo ao SNS. Não entrar em linha de conta com estas poupanças na equação da partilha de custos entre trabalhadores e reformados –
que também pagam impostos - e o Estado penaliza os primeiros e distorce a decisão política por apenas considerar uma parte da realidade.
A subida significativa das contribuições para a ADESE – mais
do dobro dos 1,75% em vigor até Julho do ano passado - vem somar-se aos
cortes nos salários e nas pensões. Mas os efeitos poderão não se ficar por
aqui.
Segundo o governo, a ADSE é auto-sustentável com uma contribuição
de 3,75% calculada sobre os salários e as pensões. Não há, no entanto,
explicações sobre quais são as condições que permitem com uma contribuição de
3,75% manter em equilíbrio financeiro no médio e longo prazo a ADSE. Estas
condições têm que ver, como acontece com quaisquer sistemas de saúde, com a
dimensão do grupo abrangido, a sua composição etária e as coberturas de saúde praticadas
(por ex. oncologia). Também não se conhecem os estudos que comparam os custos
da ADSE com os custos praticados por outros sistemas de saúde, nomeadamente seguros.
Com um aumento para 3,5% já em 2014 e 3,75% em 2015, o equilíbrio
financeiro da ADSE corre o risco de se alterar, com agravamento dos custos no
futuro e/ou redução das coberturas de saúde. Vejamos o que poderá acontecer:
- Os grupos de trabalhadores mais novos e com maiores rendimentos
poderão sair porque encontram melhores alternativas, incluindo não ter seguro
de saúde. Por serem mais novos são, por regra, contribuintes líquidos do
sistema.
- Os grupos de trabalhadores mais velhos e os reformados
poderão sair por incapacidade de fazer face ao aumento da contribuição e neste
caso irão utilizar o SNS. A concretização da opção por um seguro de saúde é difícil,
uma vez que as seguradoras não aceitam ou colocam elevadas restrições à
contratação de seguros de saúde de pessoas idosas.
A combinação destes movimentos e outros e dos seus efeitos irá
ditar a evolução financeira da ADSE e a oferta dos seus cuidados de saúde. Uma
evolução que poderá ser desfavorável, levando a que quem não sai – por não ter
outra opção que não fosse o SNS, que atingirá especialmente os rendimentos mais
baixos e os grupos dos trabalhadores mais velhos e os reformados - tivesse que
suportar custos insustentáveis que inviabilizariam o sistema.
Passando a ADSE a ser financiada totalmente por receitas
privadas – a partir de 2015, em 2014 3,5% privadas e 0,5% públicas – o Estado deixará
de ter responsabilidades na sua gestão, cabendo aos beneficiários a sua escolha,
assim como eventuais resultados positivos da actividade deixam de ser
transferidos para o Estado para passarem a ser, como acontece nos seguros,
distribuídos pelos beneficiários. Espera-se que assim seja.
O futuro da ADSE apresenta-se incerto, gerando incerteza nos
seus beneficiários, em especial nos mais vulneráveis. Pergunto o que aconteceria ao SNS
se tivesse que prestar cuidados de saúde a centenas de milhares de pessoas que
hoje estão protegidas pela ADSE?
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