No dia 22 de dezembro de 2008 escrevi uma pequena crónica que nunca publiquei. Há dias, em conversa com uma colega, veio-me à lembrança o motivo da mesma. Procurei e consegui encontrá-la. A minha colega pediu-me uma cópia e eu fiz-lhe a vontade. Hoje recebi uma mensagem muito simpática a incentivar-me a publicá-la. Vou respeitar o seu pedido.
“Hoje dediquei o dia à minha neta que vai fazer cinco anitos na próxima semana. Um dia em cheio. De manhã, Parque Verde, um gelado de iogurte com amoras à beira do Mondego, bem agasalhados para nos protegermos da fria brisa que soprava alegremente, seguidos de intensos quinze minutos de exercício nos baloiços e no escorrega como que a preparar o almoço. À tarde rumámos até Penela para ver o maravilhoso presépio animado. Uma fartura para a miúda, uma maçã para mim. Passeámos nas muralhas do castelo desfrutando o calor e a alegria do momento devidamente registado no cartão de memória da máquina. A seguir, nada melhor do que despender o resto das energias da menina nos insufláveis instalados na Praça da República de tão simpática vila. Ao dirigirmos para o carro, onde acabou por adormecer ao fim de duzentos metros de andamento, disse-me que tinha sido um dia muito divertido.
Estas foram algumas das impressões que registei neste dia. Senti-me bem. Mesmo muito bem. Ruminava na cumplicidade avô-neta, quando li uma notícia sobre Bento XVI e a defesa de uma nova “ecologia do ser humano que o proteja da autodestruição”! Comecei a ficar um pouco tenso e, de seguida, apercebi-me de mais uma posição típica do Vaticano. Desta feita tinha a ver com as operações de mudança de sexo, as condutas homossexuais e transexuais.
Reparo que, cada dia que passa, são mais do que evidentes os incómodos provocados pelas descobertas científicas no pensamento do Vaticano. É rara a semana que o papa ou alguém da cúria não venha a terreiro para por em causa os novos conhecimentos. Tudo o que diga respeito à vida, à sua génese, aos embriões e às células estaminais, à contraceção e à morte assistida provocam intensa urticária doutrinária. Para evitar terem de andar, permanentemente a coçar-se, denunciam que certas atitudes são contra as leis de Deus e que o homem pretende “auto emancipar-se da criação e do Criador”. Ainda segundo o papa “o homem quer fazer-se a si mesmo e dispor sempre e exclusivamente apenas daquilo que lhe interessa. Mas desse modo vive contra a verdade, contra o espírito criador”.
Bento XVI defende que temos de “escutar a linguagem da criação”. Deus criou o ser humano como “homem e mulher”. Logo os que se afastam daquela “definição” estão condenados. Não compreendo a falta de sensibilidade e de conhecimentos para aquelas bandas. Muito haveria a dizer sob os pontos de vista biológico, comportamental e sociológico. Muito mesmo. Mas o que ressalta de imediato é a intolerância.
Jantei. E como é habitual fui dar a minha volta. Revivi os acontecimentos do dia. De repente, a propósito da notícia “papal” e da minha neta, tropecei numa conversa havida há poucos dias em Lisboa, no decurso de um almoço. Razões? Muito simples. O meu colega conversava com o que estava ao seu lado direito. Apercebi-me de que falavam de um escritor que também conhecia e que tinha lido com muito agrado e prazer. Sim, porque quando consigo ler um livro até ao fim é porque é bom e se o ler em dois dias de forma compulsiva atinge o grau de excelente. Foi o que aconteceu com esse autor. Esperei o momento oportuno para meter o bedelho na conversa e perguntei-lhe: - Olha lá ele trabalha contigo? – Comigo?! É meu companheiro há trinta anos! Trinta anos, uma vida! Aí, numa fração de segundo, apercebi-me do que se tratava. Não sabia que o escritor era o seu companheiro. Claro que fiz alguns comentários literários sobre a sua obra. Foi então que, na sequência do envio de um pequeno livro de crónicas minhas, que já tinha agradecido logo de manhã, antes do início da reunião, me disse: - Olha, eu não sabia que eras escritor! – Escritor?! Eu?! Respondi meio surpreso, porque, como estávamos a falar de um verdadeiro escritor, que é o seu companheiro, eu não me sentia com capacidades de me colocar ao seu nível. Então respondi-lhe: - Sou antes um “escrevidor”. – “Escrevidor”? Que palavra tão interessante. Disse-lhe que a tinha adotado da minha neta quando lhe perguntaram - tinha ela acabado de fazer quatro anos -, o que é que ela queria ser quando fosse grande. Não fui eu que fiz a pergunta, mas ouvi a resposta: - Pintora e “escrevidora”! Quando ouvi a resposta pensei: bom, pintora é capaz de ser, porque tem uma imaginação criativa e um jeitinho fora do comum. Tem a quem sair, à tia e a uma bisavó. Mas “escrevidora”? Ela nem uma letra sabe desenhar! Mas tive a perceção de que olhava com uma certa ternura e respeito para os livros, para as figuras e para os hieróglifos. Será que já sabe que há qualquer coisa de muito importante naquelas folhas? Foi então que o meu amigo me contou que a mãe, alemã, apesar de falar português, tinha alguma dificuldade numa ou noutra palavra, do género “vou ao cabeleiro”, sempre que queria dizer “vou ao cabeleireiro”. E rimo-nos destes jogos linguísticos. Continuámos com a conversa, focando os livros, as peripécias, as histórias, as dificuldades nas edições e as limitações impostas devido a preconceitos religiosos, já que o companheiro é judeu.
Poderão pensar, o que é que tudo isto tem a ver com Bento XVI? Muito! Duas pessoas fabulosas, responsáveis, cultores de ética, culturalmente superiores, respeitadores dos valores e direitos humanos, precisam de ser protegidos da “autodestruição”? Necessitam de ser adotados pelos princípios da “nova ecologia do ser humano” proposto por Ratzinger? Valha-lhe Deus!
Ia mentalmente a escrevinhar este texto quando entrei na livraria. O passeio tem como pretexto fazer o meu exercício físico diário, mas também contribuir para o exercício mental, pelo que tropeço, amiúde, numa das duas livrarias que se põem descaradamente à minha frente. Entrei, dei três passos, olhei para o lado direito e vi o livro de contos, “Confundir a Cidade com o Mar”, da autoria do companheiro do meu amigo. Agarrei-o, dei mais dois passos em direção à caixa e saí. Presumo que foi a compra mais rápida de um livro que fiz até hoje. Ultrarrápida.
Vou acabar de escrevinhar este pequeno texto e deliciar-me com os contos do escritor. Um dia vou dar a ler à minha neta esta pequena nota embrulhada num livro de contos.”